04 out, 2016 - 06:47 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Foi uma candidata mais fluente em russo do que em inglês aquela que se apresentou esta segunda-feira perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, aqui em Nova Iorque. Uma candidata que pode ter inúmeros méritos, mas não necessariamente o de boa comunicadora.
Kristalina Georgieva foi a única candidata que se exprimiu em russo e não o fez por acaso, como é óbvio. Ela corporiza a única candidatura cujo lançamento mereceu críticas a Moscovo pela forma como foi lançada. Por isso, Georgieva quis mostrar que era fluente em russo, num piscar de olhos aos senhores do Kremlin. Afinal, não é só a sua compatriota Irina Bokova, a directora-geral da UNESCO que se mantém na corrida, que tem familiaridade com a língua e a cultura russas. Cortejar Moscovo faz parte da sua estratégia dado que paira sobre a sua candidatura o espectro de um veto russo.
A ex-comissária europeia (e o prefixo ‘ex’ aqui talvez não seja muito adequado dado que Georgieva tem uma licença de 30 dias na Comissão onde regressará caso falhe a aposta para secretário-geral da ONU) admitiu o carácter “tardio” da sua candidatura, disse que gostaria de se ter apresentado mais cedo, mas não explicou por que se apresentou tão tarde.
“Quero ser julgada pelos meus méritos e não pela duração da minha candidatura”, afirmou, elogiando o processo aberto e transparente em curso para a escolha do novo secretário-geral. E entre os seus méritos incluiu um de que a ONU bem necessita: “Sou uma pessoa que faz as coisas acontecerem”. Uma pragmática, com uma grande experiência em instituições internacionais como o Banco Mundial e a Comissão Europeia.
Nestas duas instâncias, Georgieva foi já responsável por pastas que são vitais nas Nações Unidas: desenvolvimento, ambiente e direitos humanos, três pilares em que assenta grande parte da actividade e da razão de ser da ONU nos dias de hoje. Os objectivos de desenvolvimento sustentado incorporados agora na Agenda 20/30, o problema do aquecimento global e a aplicação do Acordo de Paris recentemente assinado, e a defesa dos direitos humanos onde quer que estejam em xeque são as acções que movem mais meios das Nações Unidas pelo mundo.
Mas apesar de se definir como uma pragmática, não foi muito concreta na maioria das respostas que deu. Pelo contrário, algumas das perguntas tiveram respostas vagas e abstractas. Foi o caso da pergunta sobre a implementação das resoluções que condenam os colonatos israelitas na Cisjordânia, da pergunta sobre o que pode a ONU fazer neste momento em relação à tragédia de Alepo, e da pergunta sobre a reforma do Conselho de Segurança. E se esta última era o tipo de pergunta com que nenhum candidato se quer comprometer, já as restantes e muitas outras sugeriam algo mais concreto.
Mais concreta foi em questões como a tolerância zero para com os capacetes azuis que tenham comportamentos criminosos durante as operações de paz em que são envolvidos, ou a denunciar as responsabilidades das Nações Unidas na epidemia de cólera que assolou o Haiti.
Pontos em comum com Guterres
Dois pontos em comum com o programa de António Guterres merecem referência. Georgieva insistiu na necessidade de prevenir conflitos em vez de reagir a eles – mais prevenção e menos reacção, repetiu – e a necessidade de atacar as raízes do problema do terrorismo e dos refugiados, quer evitando conflitos armados, quer proporcionando condições de vida nos países de origem que evitem a emigração e a fuga.
No caso concreto da vaga de refugiados provenientes da Síria defendeu uma ajuda mais sistemática a países que se têm disponibilizado para acolher os refugiados como a Turquia, o Líbano e a Jordânia. Assim como a sua integração nessas sociedades.
Interrogada já no final pelos jornalistas sobre a recusa do seu país, a Bulgária, em acolher refugiados provenientes de países muçulmanos, Georgieva lamentou a atitude. Lembrou que a Bulgária tinha sido bastante hospitaleira ao longo do século XX acolhendo arménios e judeus quando foram perseguidos e atribuiu a diferente atitude desta vez ao facto de o país ter estado mais de 40 anos fechado na “cortina de ferro” e os seus cidadãos se terem habituado a uma sociedade homogénea.
Não sabem lidar com a diferença, lamentou, acrescentando que a época é propícia aos populismos que jogam com os medos das pessoas e estabelecem a confusão entre terrorismo e refugiados. Um problema a que acresce ainda o facto de a União Europeia não ter sido eficaz a proteger as suas fronteiras externas, o que levou muitos países, sobretudo no Leste, a proteger as suas fronteiras internas.
De resto, Georgieva defendeu a necessidade de na ONU se caminhar para a paridade de género nos cargos de responsabilidade e também no que toca a equilíbrios regionais. Em ambos os casos remeteu para a Carta das Nações Unidas, que garantiu irá “levar à letra”.
Reiterou o seu compromisso com o multilateralismo apanágio da organização. E definiu as Nações Unidas como a entidade que mais luta pelo bem da humanidade, mas que isso nem sempre é evidente para os cidadãos. Georgieva tem uma tese sobre o assunto: “O nosso problema de hoje é que a bondade está calada e o ódio está a gritar. O meu trabalho seria amplificar a voz da bondade”, disse.
Veremos na quarta-feira como é que o Conselho de Segurança avalia a bondade da sua candidatura tardia. Os 15 países membros do CS votarão pela sexta vez, mas desta feita com duas novidades: Georgieva estará na lista de candidatos e os cinco membros permanentes votarão em boletins com cores diferentes, permitindo assim avaliar se há potenciais vetos e a quem.