06 out, 2016 - 22:07 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Uma jornalista americana muito experiente na cobertura das Nações Unidas perguntou- me na quarta-feira por que é que António Guterres não fazia uma declaração depois de se saber que ia ser o próximo secretário-geral. Respondi que a declaração seria feita na quinta-feira após a confirmação pelo Conselho de Segurança da sua nomeação.
"Talvez ele agora esteja a pensar: oh meu Deus, no que me fui meter?!?!", respondeu ela, meio a sério, meio a brincar. Retorqui que Guterres não era esse tipo de pessoa, que era extremamente auto-confiante e determinado e quando avançou para esta corrida tinha plena consciência daquilo em que se ia meter.
A sua opção por não fazer qualquer declaração antes da confirmação oficial da escolha era coerente com o tipo de campanha que fez: muito cautelosa, discreta, propositadamente "low profile", sem a tentação dos holofotes mediáticos e sem se por em bicos de pés. Graças a essa atitude discreta a campanha tinha sido muito eficaz e não tinha aparentemente cometido quaisquer erros.
É essa foi também a sua força. A força de alguém que vem de um pequeno país europeu, solidamente democrático, um estado de direito, de cultura humanista, sem contenciosos internacionais e que justamente por ser pequeno não ameaça ninguém. Uma força que em certo sentido deriva daquilo a que Joseph Nye chamou o "soft power" por contraposição ao "hard power" militar e económico das grandes potências. Um "soft power" cada vez mais importante nas relações internacionais que, no fundo, aposta na capacidade de atracção, na sedução pelo exemplo, pela abertura, pela cultura e não na exibição do músculo, da coacção ou da ameaça.
António Guterres encarnou este espírito na sua candidatura. Discretamente, modestamente, correu as capitais a expor o seu programa, a falar das suas ideias e da sua experiência, sem esmorecer com os patrocínios de grandes potências a alguns concorrentes, nem se intimidar com negociatas de bastidores para "inventar" candidatos de última hora. Era nas suas qualificações que apostava e na experiente e competente máquina diplomática portuguesa. E, claro, no processo público e transparente que as Nações Unidas decidiram adoptar este ano para escolher o novo secretário-geral. A sua proverbial capacidade de comunicação, o domínio completo dos dossiers e das línguas francas mundiais, o conhecimento da máquina da ONU adquirido nos dez anos que passou em Genebra como Alto Comissário para os Refugiados fizeram o resto.
Em pouco tempo, Guterres convenceu a generalidade dos países membros do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral que era o melhor candidato em presença. A primeira votação reflectiu isso mesmo e as restantes confirmaram-no em pleno. Seis vezes foi a votos e seis vezes venceu destacado sem que surgisse sequer um rival a ameaçar a sua liderança.
É curioso analisar as declarações do embaixador russo ao anunciar a aprovação do candidato português por aclamação no CS. Interrogado sobre as razões por que não tinha sido escolhida uma mulher ou alguém do Leste europeu, Vitaly Churkin lembrou que metade dos candidatos tinham sido mulheres e que a Rússia até estava numa posição incómoda porque era um país do Leste europeu e preferia um candidato daquela região. Mas tinha havido um grande consenso no seio do Conselho de Segurança quanto a Guterres e o mais importante de tudo era escolher o melhor.
Não o disse com ar resignado, disse-o até de modo firme e convicto, mas o que se conclui das suas palavras eh que o CS se rendeu as qualidades de Guterres, que foram suficientemente valorizadas para superar todas as intenções e pressões no sentido de escolher alguém de Leste ou uma mulher. Com dois handicaps inultrapassáveis a partida -- nem mulher nem do Leste europeu -- a candidatura portuguesa teve a força suficiente para os levar de vencida, para além de ter resistido as jogadas de bastidores que foram surgindo ao longo destes meses.
Mas regressemos a exclamação da jornalista americana. Saberá Guterres no que se meteu? A resposta só pode ser afirmativa, como é óbvio, mas isso não significa que a tarefa seja simples ou agradável. Depois de dois mandatos baços e sofríveis de Ban Ki-moon, as expectativas são altas em relação a Guterres. O que significa que o potencial de desilusão da sua acção é enorme. Sobretudo se se atribuir ao secretário-geral uma capacidade de decisão e de resolução de conflitos que ele não tem.
Nesta quinta-feira alguém perguntou ao embaixador russo, quando ele fez o anúncio da aclamação do novo secretário-geral, se o entendimento entre as grandes potências quanto a Guterres era o prenúncio de um melhor entendimento e de um diálogo mais profícuo entre russos e americanos para resolver o conflito na Síria. Churkin respondeu de forma diplomática, dizendo que continua a trabalhar com a sua homóloga americana, Samantha Power, para resolver o conflito sírio, mas elogiou Guterres como um homem de mente aberta, muito dialogante e experiente que pode dar um contributo importante para solucionar os problemas.
Ou seja, Guterres ainda não tomou posse e já é visto como alguém que pode até distender as tensas relações russo-americanas quanto ao conflito sírio. Um desígnio que, não sendo em teoria inviável, parece bastante irrealista nos dias que correm.
Num mundo onde alguns conflitos devastadores entraram já na rotina dos nossos quotidianos, a margem de manobra de um secretário-geral é bem menor do que muita gente nele projecta. E se no período pós-guerra fria foi possível fazer prevalecer aqui e ali o direito a proteger populações ameaçadas pelos seus próprios governos, esboçando uma nova ordem mundial sob tutela americana, com a nova tensão que emergiu entretanto entre a Rússia e o Ocidente esses tempos acabaram. Sobretudo depois da intervenção na Líbia, em 2011, ter ultrapassado, na opinião de Moscovo e Pequim, o mandato conferido pelo Conselho de Segurança.
É pois num mundo quase de novo bipolarizado, quase de novo em clima de guerra fria, que António Guterres vai exercer o cargo mais difícil do globo. Talvez seja um mundo um pouco mais previsível do que o do pós-guerra fria, mas será igualmente um mundo com mais conflitos congelados, que se arrastarão no tempo perante a impotência e, por vezes, o desespero da comunidade internacional. Que o mesmo é dizer das Nações Unidas. Que o mesmo é dizer do seu secretário-geral.
Mas Guterres sabe bem naquilo em que se meteu.