05 jan, 2017 - 01:19 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
A 15 dias da mudança da administração americana, os democratas actuaram esta quarta-feira como se já estivessem na oposição, enquanto os republicanos agiram como já estando no poder.
O pretexto foi aquela que o Partido Republicano promete ser a sua primeira medida quando Donald Trump entrar na Casa Branca, no próximo dia 20 – a revogação do sistema de saúde aprovado pelo Presidente Obama, vulgo Obamacare.
Naquele que foi o primeiro dia de trabalho a sério no Congresso pós-férias de Natal, quer o Presidente cessante Obama, quer o vice-presidente eleito Mike Pence, deslocaram-se ao Capitólio para debater com os respectivos partidos a agenda política dos próximos tempos e aquilo que sobressaiu foi claramente a questão do Obamacare.
Se a presença de Pence não pode ser considerada estranha uma vez que dirige a equipa de transição de Trump e está encarregado das ligações ao Congresso – e na qualidade de vice-presidente liderará o Senado nos próximos quatro anos –, já a presença de Obama numa reunião das bancadas democratas do Congresso não sendo inédita surge como inusitada.
Não é hábito o Presidente deslocar-se ao Congresso para reuniões partidárias, mas foi exactamente isso que Obama fez, numa missão que o projecta muito mais como líder da oposição do que como presidente ainda em exercício.
E a crer nas fontes citadas pelos média americanos sobre o que se passou na reunião, não restam dúvidas de que Obama foi dizer aos membros eleitos do seu partido que é preciso defender, com unhas e dentes, o sistema de saúde aprovado em 2010 e fazer do Obamacare a grande batalha política dos próximos dois anos, com repercussões nas eleições intercalares de 2018 para o Congresso.
Replicar Tea Party
Olho por olho, dente por dente, parece ser a estratégia de Obama para evitar que o seu sistema de saúde seja revogado, já que o Presidente terá sugerido aos seus correligionários que recorram a todos os mecanismos obstrucionistas existentes nos regulamentos do Congresso para bloquear (ou pelo menos protelar) qualquer decisão, tal como os conservadores fizeram nos dois primeiros anos do seu mandato quando estavam em minoria.
Obama terá mesmo afirmado que os democratas devem fazer agora o que o Tea Party (a ala mais radical do Partido Republicano que sempre recusou qualquer compromisso com os democratas) fez nessa altura.
Convencido que a revogação do Obamacare será altamente prejudicial para o povo americano, o Presidente encorajou os democratas a não colaborarem na formulação de uma nova lei, a não ajudarem os republicanos a rever o actual sistema.
“Não socorram” os republicanos no desenho de uma nova lei, terá dito Obama, que sugeriu ainda que qualquer nova lei de saúde que saia do Congresso deverá ser denominada pelos democratas como “Trumpcare” para que fique claro para todos os americanos quem é responsável pelos seus efeitos nefastos.
Obama propôs ainda aos democratas que se desdobrem em reuniões pelo país fora a explicar ao público americano as vantagens do seu sistema de saúde, à semelhança da campanha que fez o Tea Party, em 2009, justamente contra a lei.
Esta recusa de qualquer compromisso com os republicanos na revisão da lei ficou simbolizada após a reunião numa expressão usada pelos dirigentes democratas que parafraseia o slogan de Trump na campanha eleitoral: “Fazer a América doente de novo”.
A estratégia democrata sugerida por Obama levanta problemas sérios aos republicanos, que ontem [quarta-feira] se mostraram cautelosos na revogação da lei. Mike Pence referiu-se sempre à sua substituição e não apenas revogação, explicando que o processo seria feito quer por via legislativa no Congresso, quer por via executiva do Presidente.
Cautelas republicanas
Mas quando interrogado sobre se já tinha alguma lei alternativa ao Obamacare para avançar, Pence disse apenas que havia muitas ideias no ar e que delas surgiria uma lei mais consentânea com os princípios do mercado e com a doutrina conservadora.
Há vários anos que os republicanos advogam o fim do Obamacare – e Trump fez disso uma bandeira da campanha eleitoral – mas nunca apresentaram uma proposta alternativa, o que leva muitos observadores a notar que a complexidade do assunto torna uma missão quase impossível uma mudança total do sistema sob pena de o tornar ingerível.
Talvez por isso, quer o vice-presidente, quer o speaker da Câmara de Representantes, Paul Ryan, sublinharam mais do que uma vez que tudo será feito com as devidas cautelas e que “não tiraremos o tapete a ninguém”, na expressão de Ryan.
Uma expressão que revela a consciência que existe entre a liderança republicana de que o Obamacare favoreceu muita gente e que uma eventual revogação súbita lançaria o caos no sistema de saúde.
O próprio Donald Trump parece preocupado com esta ameaça e escreveu no Twitter que “os republicanos têm de ter cuidado. O desastre do Obamacare tem de ficar nas mãos dos democratas”.
Entre as vantagens do sistema estarão o facto de mais de 20 milhões de americanos terem tido pela primeira vez acesso a um seguro de saúde (entre os quais 6,1 milhões de jovens entre os 19 e os 25 anos), o ter proibido as seguradoras de recusar seguro de saúde a quem tenha antecedentes de doenças crónicas ou fatais, o ter admitido que os filhos até aos 26 anos possam usufruir do seguro dos pais, e a melhoria de condições criadas no planeamento familiar.
Ora, se a liderança republicana quiser reformular a lei e manter alguns destes aspectos vai necessitar do apoio de alguns democratas para aprovar certos artigos que requerem uma maioria qualificada de 60 senadores e os republicanos dispõem apenas de 52.
É aqui que a estratégia sugerida por Obama de recusar qualquer compromisso pode causar dificuldades aos republicanos. No fundo, o que o Presidente estará a sugerir aos democratas no Congresso é uma espécie de tudo ou nada no que toca ao sistema de saúde – ou permanece o Obamacare ou o que vier a seguir será mau para os americanos e deve ser denominado Trumpcare. Não há meios termos.
Tudo indica, pois, que esta vai ser a grande batalha dos primeiros tempos de Trump na Casa Branca. E de Obama na oposição.