11 jan, 2017 - 06:48 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
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Um discurso de despedida é suposto fazer o balanço do cargo que se exerceu, certo? Errado. Ou melhor, nem sempre.
Na terça-feira à noite, em Chicago, e após oito anos como Presidente dos Estados Unidos, esperava-se que Barack Obama fizesse o balanço dos seus dois mandatos, mas apenas resumiu em cinco minutos a passagem pela Casa Branca. Nos restantes trinta minutos ocupou-se do futuro. A razão é simples: o homem que lhe vai suceder no cargo chama-se Donald Trump.
Por isso, Obama optou por alertar os seus concidadãos para aquilo que considera serem as “ameaças à democracia” com que o país vai ser confrontado. Num discurso muito hábil e bem elaborado, o ainda Presidente enumerou uma série de fenómenos em curso (ou a emergir) na sociedade americana, que assentam como uma luva naquilo que Donald Trump se propõe fazer nos próximos quatro anos.
Sem nunca nomear o sucessor – apenas o fez para dizer que a transição de poder tem sido pacífica e suave – Obama contrastou permanentemente os valores americanos plasmados na Constituição com aquilo que Trump tem anunciado. Foi essencialmente um discurso sobre valores, aquele que o Presidente fez na hora da despedida.
Começou pelas questões económicas e pelo sentido de solidariedade que é suposto existir numa sociedade, para dizer que não se resolvem os problemas culpando o comércio internacional pela falta de empregos ou colocando os trabalhadores contra as empresas. Criticou as desigualdades existentes, mas alertou para o agravamento que se prevê com a descida de impostos para os mais ricos.
Depois falou das relações raciais, hoje bem melhores do que há dez, vinte ou trinta anos, mas ainda longe do satisfatório. Disse que era preciso parar a discriminação, mudando não só as leis, mas também os corações e ligou o tema à imigração.
O que se diz hoje dos negros ou dos imigrantes latinos ou quaisquer outros é o mesmo que se disse dos irlandeses, dos italianos ou dos polacos em épocas diferentes, lembrou Obama. “Eles amam o país tanto como nós” e contribuem para o progresso tanto como qualquer um de nós, garantiu.
Pouco depois apelava à rejeição da discriminação contra os muçulmanos americanos. A democracia “abraça todos, não só alguns”.
Ainda na linha da crítica a uma lógica tribalista do “nós contra eles” que verberou durante todo o discurso, Obama aludiu à questão das redes sociais, falando de como as pessoas se acantonam nas suas “bolhas” e aí tendem a achar que a opinião da sua tribo é a única válida, desprezando todas as outras.
A ausência de espírito de tolerância e de diálogo que daqui advém mereceram a sua reprovação. O desculpar nos “nossos” aquilo que condenamos nos “outros”.
Um dos aspectos mais extremos desta atitude é talvez aquele que se reflecte na negação das alterações climáticas. “Negar o problema é negar o espírito iluminista em que se fundou o país, é negar a ciência, o espírito inovador que nos levou à conquista do espaço ou aos computadores”, salientou.
Para Obama, o aquecimento global é uma questão tão óbvia e tão urgente que “os nossos filhos já não vão ter tempo de debater o assunto, vão ter de lidar com ele”.
Vigiar sem medo
“A ciência e a razão contam”, proclamou o Presidente, porque foram nelas que se basearam os princípios fundadores da América: o Estado de direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a tolerância e o respeito pelo outro.
Mas hoje “estes valores estão a enfraquecer” e “estão a ser postos em causa não só por fanáticos como os terroristas, mas também por gente em algumas capitais que deles desdenha”.
Daí que Obama apele à vigilância contra “os que atacam os nossos valores”. Com uma advertência: “Devemos estar vigilantes, mas não com medo”. Porque “a democracia só está ameaçada quando a damos por garantida”.
“Guardiões da democracia” foi como o Presidente classificou os cidadãos que se mobilizam para “dar poder à Constituição”, que se batem para que os seus princípios sejam aplicados e exercidos. E a eles apelou para que não se mobilizem apenas quando estão em causa interesses próprios, nem se limitem a exprimir opiniões na internet, mas recolham assinaturas e concorram a cargos eleitos, travem batalhas políticas, percam, ganhem, envolvam-se na democracia e na defesa dos valores americanos, acreditem na sua capacidade de trazer mudanças ao país.
Porque Obama, esse, acredita neles. Mantém intacta a sua “fé na América”. “Estou mais optimista do que quando comecei” e “não vou parar”.
Um anúncio de activismo político que, de certo modo, já tinha sido dado na semana passada quando o Presidente se deslocou ao Congresso para uma reunião com os eleitos do seu partido a quem exortou que lutem afincadamente pela manutenção do seu sistema de saúde, conhecido como Obamacare.
Nesse encontro, Obama deixou subentendido que vai liderar a estratégia do Partido Democrático contra a tentativa de revogação da lei, que aliás já definiu como uma espécie de tudo ou nada. Ou os republicanos aceitam o essencial do sistema em vigor ou não contarão com a colaboração dos democratas para fazer uma lei alternativa.
Democracia é difícil
Naturalmente que o Obamacare foi um dos pontos focados pelo Presidente na curta parte do discurso em que se referiu ao seu legado. Os outros foram a recuperação económica desde a Grande Recessão de 2008 – a maior criação de empregos de sempre –, o acordo nuclear com o Irão, o acordo de Paris sobre o clima, a abertura a Cuba, a morte de Bin Laden, a igualdade dos casamentos entre o mesmo sexo.
“Se há oito anos vos dissesse que iríamos conseguir isto tudo, vocês diriam que estava a pôr a fasquia muito alta. Mas foi o que fizemos, foi o que vocês fizeram”, sublinhou.
Com a eleição de Donald Trump como seu sucessor, algumas destas decisões estão hoje em xeque. Justamente por isso é que Obama fez um discurso voltado para o futuro, apelando e antecipando a resistência liberal à ofensiva conservadora que aí vem.
Se Hillary Clinton, a sua sucessora natural, tivesse vencido as eleições, Obama bem poderia ter-se concentrado mais no passado, mas preferiu dar testemunho do seu empenho futuro.
“A democracia é difícil. Por vezes dá dois passos atrás para depois dar um em frente”, explicou o Presidente, conformado com o desfecho eleitoral mas não com as eventuais consequências.