24 jan, 2017 - 01:32 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
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O porta-voz da Casa Branca deu esta segunda-feira uma conferência de Imprensa em que esteve mais de uma hora a responder a perguntas e em que prometeu “não mentir” aos jornalistas e ao povo americano.
A iniciativa foi uma espécie de “mea culpa” de Sean Spicer por, no sábado, ter atacado os média pela cobertura que fizeram da cerimónia de posse de Donald Trump, que garantiu ter sido a que mais público reuniu em Washington desde sempre.
Naquele que foi o primeiro contacto com a comunicação social na qualidade de porta-voz oficial do Presidente, Sean Spicer acusou a imprensa de ter feito relatos “deliberadamente falsos” e de ter mostrado imagens que iludiam a realidade com a intenção de “semear a divisão” no país.
“Esta foi a maior audiência que jamais assistiu a uma cerimónia de posse, ponto final”, disse Spicer. O porta-voz estava particularmente irritado com a publicação de duas fotografias, lado a lado, que mostravam as claras diferenças na multidão entre a cerimónia de posse de Obama em 2009 e a de Trump na sexta-feira. Enormes clareiras sobressaíam na multidão deste ano, que não chegava a ocupar metade do Mall, o parque frente ao Capitólio, enquanto em 2009 toda a área estava ocupada.
O contraste entre as fotos não deixa margem para dúvidas, mas mesmo assim Spicer – certamente instruído pelo Presidente – não teve pejo em negar a realidade.
Depois usou três argumentos que também eram falsos. O primeiro consistiu em afirmar que o contraste entre as duas fotos se devia ao facto de este ano terem sido usadas, pela primeira vez, placas para proteger a relva e que era o seu efeito visual que induzia em erro. Falso. As placas já tinham sido usadas em 2009, havendo inúmeras fotos a comprová-lo.
O segundo argumento foram os dados das viagens de metro em Washington DC no dia da “Inauguration”. Spicer disse que este ano tinha havido 420 mil passageiros, enquanto em 2009 não tinham passado dos 317 mil. Ambos os números são falsos. Este ano houve 571 mil passageiros, enquanto em 2009 houve 782 mil, revelou a Autoridade Metropolitana dos Transportes.
O terceiro foi que as medidas de segurança este ano tinham sido mais exigentes e tinham impedido “centenas de milhares de pessoas” de chegar ao Mall, onde decorreu a cerimónia. O Serviço Secreto informou que as medidas foram praticamente iguais às de 2009 e que não tinha havido relatos de número significativo de pessoas impedidas de chegar ao local.
“Os média têm falado muito sobre a necessidade de responsabilizar o Presidente, mas estou aqui para vos dizer que isso funciona em ambos os sentidos, também vamos responsabilizar os média”, concluiu, saindo da sala sem responder a perguntas dos repórteres, o que é inusitado nos “briefings” da Casa Branca.
Trump na CIA
Nessa mesma tarde de sábado, o Presidente fez uma visita à sede da CIA, onde disse que estava “em guerra” com os jornalistas, que classificou como “alguns dos mais desonestos seres humanos na Terra”. E culpou-os pela desconfiança existente neste momento entre a comunidade de espionagem e ele próprio. “Eles deram a ideia de que eu tinha uma contenda convosco”, afirmou Trump, garantindo que a CIA contará com “enorme apoio” da sua parte.
A contenda por que responsabilizou os média foi causada pelo próprio Trump em, pelo menos, duas ocasiões. Quando foi divulgado o relatório de várias agências de “intelligence” a garantir que houve interferência da Rússia na campanha eleitoral, Trump desprezou-o, escrevendo que os autores do relatório eram os mesmos que tinham dito que havia armas de destruição maciça no Iraque.
A poucos dias de ser empossado, a 11 deste mês, Trump acusou as agências de estarem por trás de uma campanha contra ele através de fugas de informação, perguntando se vivia na “Alemanha nazi”. Uma afirmação que caiu muito mal entre os responsáveis da “intelligence”.
Na mesma visita, Trump atacou ainda os média por, alegadamente, terem feito uma cobertura “desonesta” da cerimónia de posse na véspera, ao salientarem algumas partes do seu discurso em vez de outras e ao subestimarem a dimensão da multidão.
Todas estas afirmações foram feitas perante cerca de 300 funcionários da CIA e frente a um painel de homenagem aos agentes que morreram em serviço ao longo dos anos. Várias fontes da agência deram conta do descontentamento e perplexidade que tal atitude tinha causado na comunidade de “intelligence”. O director cessante John Brennan disse através de um porta-voz que o Presidente “devia ter vergonha” daquilo que fez.
Um local que requer dignidade e reconhecimento por aqueles que perderam a vida em missões de defesa do país acabava de ser palco de uma intervenção em que o Presidente se vangloriava dos seus feitos, atacava a comunicação social, falava dos apoios políticos de que dispõe e elogiava a sua capacidade mental. Quanto a homenagear os mortos ou encorajar a acção da agência, Trump disse nada.
Quer esta visita, quer as declarações surpreendentes de Sean Spicer, ocorreram quando em Washington DC uma multidão gigantesca se manifestava contra a nova administração. Uma multidão, que especialistas citados pelo “Washington Post” dizem ter sido três vezes maior do que a da “Inauguration”. No sábado terão estado no Mall cerca de 470 mil pessoas, enquanto na véspera não terão passado das 160 mil. O Metro registou um milhão de passageiros, que comparam com os 571 mil da tomada de posse.
A chamada Marcha da Mulheres, que aliás não se confinou a Washington mas se estendeu a inúmeras outras cidades americanas onde reuniu em conjunto milhões de pessoas, marcou o início de um movimento de activismo que parece empenhado em fazer oposição firme a Trump.
Factos alternativos
Com a sua proverbial tendência para se irritar quando algo lhe corre mal, Trump percebeu como a dimensão das manifestações em todo o país ofuscou a sua “Inauguration” e terá decidido ripostar de forma inábil, expondo o seu porta-voz a uma situação de descrédito total.
Com isso mesmo foi confrontada uma das suas principais conselheiras num dos programas políticos de maior audiência, “Meet the Press”, da NBC, no domingo de manhã.
Interrogada por que razão tinha o Presidente mandado o seu porta-voz, no primeiro encontro com os média, dizer “falsidades” ao país, Kellyanne Conway respondeu que Spicer tinha dado “factos alternativos” àqueles que os média tinham divulgado. Chuck Todd, o autor do programa, surpreendido, ripostou: “Factos alternativos?! Factos alternativos?! Factos alternativos não são factos, são falsidades”.
As horas subsequentes foram pródigas em humor nas redes sociais sobre “factos alternativos” à realidade nua e crua. Talvez por ser um atento frequentador dessas redes, sobretudo o Twitter, Trump terá decidido arrepiar caminho e na segunda-feira o seu porta-voz disponibilizou-se durante mais de uma hora para um briefing em que respondeu a todas as questões. Aí garantiu que “a nossa intenção é nunca vos mentir”. Estava feito o “mea culpa”.
Em qualquer caso, dada a inconstância de Donald Trump e o seu registo de incoerências, falsidades e distorções dos factos durante a campanha eleitoral e já depois de eleito, os principais média americanos estão a tomar medidas para melhorar o seu escrutínio do Presidente.
Os dois principais jornais, o “New York Times” e o “Washington Post”, decidiram reforçar as equipas que cobrem a Casa Branca. Ambos passam agora a ter seis repórteres em “full time” naquela tarefa, sendo que no caso do “Times” significa mais um repórter, mas no caso do “Post” significa duplicar a equipa.
O “Post” anunciou ainda, há algumas semanas, a criação de uma equipa de “resposta rápida” de investigação com oito jornalistas para escrutinar toda a acção presidencial.
E o “Wall Street Journal” vai criar também um grupo na sua redacção de Washington que estará atento à área onde a acção governativa se cruza com os interesses em negócios. Uma área que poderá ser a mais sensível na nova administração.
O “New York Times” já fez contas e reforçou com cinco milhões de dólares o orçamento que tinha previsto para a cobertura do Presidente.
Trump terá a vigilância dos média que a sua prática recomenda.