31 jan, 2017 - 02:52 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Não é habitual, quebra a tradição, mas o aviso tinha sido feito em devido tempo. No discurso de despedida dos americanos, Barack Obama avisou que interviria publicamente se sentisse que poderiam estar em causa os valores americanos.
Talvez o ex-Presidente não pensasse que dez dias depois de deixar a Casa Branca seria impelido a fazê-lo, quebrando uma tradição institucional de manter discrição e silêncio após abandonar funções.
A decisão da administração Trump de impedir a entrada nos Estados Unidos de refugiados durante quatro meses (e, por tempo indeterminado, de refugiados sírios) e suspender por 90 dias a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana levou Obama a tomar posição através de um porta-voz, rejeitando comparações entre esta medida e medidas tomadas pela sua administração.
Em 2011, Obama reforçou os mecanismos de avaliação dos pedidos de residência nos EUA de cidadãos do Iraque na sequência da descoberta de dois iraquianos que tentavam reinstalar-se no país e que tinham ligações ao terrorismo. O processo de concessão de vistos tornou-se então mais demorado e complexo por razões de segurança, mas a atribuição de vistos não esteve suspensa.
Ao vir agora dizer que a sua medida se inspirara na de Obama em 2011, a administração Trump provocou um desmentido. “O Presidente [Obama] discorda fundamentalmente da noção de discriminação contra indivíduos por causa da sua fé ou religião”, disse o porta-voz. Que acrescentou que Obama se sentia “encorajado com o nível de envolvimento surgido em comunidades por todo o país”.
“Cidadãos a exercer o seu direito constitucional de se reunirem, organizarem e fazerem ouvir a sua voz através dos seus representantes eleitos é exactamente o que se espera ver quando os valores americanos estão em causa”, declarou Obama.
Uma declaração curta mas muito significativa que põe em xeque a nova administração, ao desmenti-la, e ao mesmo tempo apoia e incentiva as manifestações contra a medida de Trump.
Uma medida que, de resto, desencadeou reacções de todo o tipo e de todas as proveniências. Além de Obama, o Partido Democrático, na oposição, anunciou uma iniciativa no Congresso para anular a ordem executiva de Trump e na segunda-feira ao fim da tarde apoiou uma marcha em Washington a exigir a revogação da mesma.
Republicanos contra Trump
Mas entre os republicanos não faltou também quem se insurgisse contra a medida, com destaque para senadores como John McCain, Lindsey Graham e Ben Sasse. Graham, em particular, usou palavras bastante duras, dizendo que não estava à procura de uma terceira guerra mundial, mas sim de vencer a guerra em que os EUA estão envolvidos – a guerra ao terrorismo.
Graham e McCain pensam que esta medida, ao contrário de facilitar o combate aos terroristas, é “uma ferida auto-infligida na luta contra o terrorismo”.
O mesmo pensa mais de 100 diplomatas americanos que já serviram em administrações de ambos os partidos. Num memorando divulgado na segunda-feira, afirmam que fechar as portas do país a 200 milhões de viajantes legítimos não tornará o país mais seguro, além de ir contra os valores americanos.
Estes diplomatas, funcionários do Departamento de Estado, tiveram direito a um convite desabrido do porta-voz do Presidente. Interrogado sobre o assunto, Sean Spicer disse que eles tinham duas opções: ou cumpriam a ordem ou se abandonavam o serviço público.
Quem parece contente com a ordem executiva são os próprios jihadistas. Um ex-militante da causa, citado pela CNN, disse que a medida vai de encontro à propaganda jihadista “ao tornar claro para quem ainda tinha dúvidas de que se trata de uma guerra ao Islão e a todos os muçulmanos”. E outro ex-militante da Al-Qaeda na Síria acrescentou que Trump “ajudou imenso o ISIS, de certo modo tornou-se um instrumento deles”.
Fantasma do terrorismo esbarra nos números
A ordem para impedir a entrada nos EUA de pessoas provenientes da Síria, Iraque, Irão, Líbia, Iémen, Somália e Sudão foi apresentada pela administração Trump como uma necessidade urgente de proteger o país contra atentados terroristas e verbalizada como se estivesse iminente qualquer acção desse tipo.
Mas de nenhum dos países afectados proveio até hoje qualquer actor de um atentado terrorista nos EUA, e os ataques que houve no país foram todos executados por indivíduos nascidos na América. Segundo as contas feitas pelo “think tank” CATO Institute, a probabilidade de um americano ser morto por um estrangeiro é de um em 3,6 milhões.
Desde o 11 de Setembro, os atentados terroristas em solo americano praticados por muçulmanos mataram uma média de 9 pessoas por ano, enquanto o uso indiscriminado de armas de fogo mata quase 13 mil pessoas por ano.
A agitação do fantasma dos atentados terroristas pela administração não resiste a uma análise dos números, como se verifica. Acresce que a forma precipitada como a ordem executiva foi aplicada viola todas as normas jurídicas em vigor. O Presidente assinou-a na sexta-feira ao fim da tarde numa cerimónia no Pentágono e nessa mesma noite vários muçulmanos que voavam para os EUA foram retidos na fronteira à chegada.
Medida impediu entrada de pessoas com autorização
Alguns deles eram pessoas que já viviam no país há muitos anos, tinham visto de residência e tiveram o azar de estar no estrangeiro nesta altura. Foi o caso de um homem que trabalhou para as tropas americanas no Iraque e que tem uma situação legal nos EUA há vários anos. Ao chegar da sua terra natal viu-se impedido de entrar no país.
Ou de uma mulher iraniana, também possuidora de “green card” (autorização de trabalho e residência), que se deslocou ao Irão para celebrar o aniversário de um familiar e quando regressou foi barrada na fronteira. Toda a família vive nos EUA há nove anos.
Ou de jovens provenientes de alguns dos países afectados que se preparavam para vir estudar para os EUA ao abrigo de bolsas universitárias que lhes tinham sido concedidas.
Alguns destes casos acabaram por ser desbloqueados graças à acção da ACLU, uma organização de luta pelos direitos cívicos, cujos advogados se prontificaram de imediato para preencher providências contra a ordem de Trump. Uma juíza de Brooklyn, onde entraram os primeiros pedidos, acabou por suspender a ordem executiva com o argumento de que ela causava “danos irreversíveis” aos atingidos.
A ordem de Trump criou assim uma situação bizarra do ponto de vista jurídico porque permitiu impedir a entrada no país a pessoas possuidoras de documentação que as autoriza a entrar. Ou seja, ignorou o estado de direito, introduzindo a arbitrariedade.
A confusão foi tal que no domingo de manhã o chefe de gabinete de Trump, Reince Priebus, disse a uma televisão que os possuidores de “green card” podiam continuar a entrar nos EUA. Ora, eram justamente pessoas possuidoras de “green card” que tinham sido barradas na fronteira. As companhias aéreas não deixam embarcar ninguém para os EUA que não possua visto legal e portanto aqueles que foram surpreendidos à chegada tinham sido devidamente fiscalizados à partida.
Depois da declaração do chefe de gabinete do Presidente ficou claro que entrar ou não entrar nos EUA para os residentes dos sete países visados na ordem executiva passou a estar dependente da arbitrariedade dos funcionários da fronteira. Alguns dos quais, aliás, ignoraram a decisão de juíza de Brooklyn e continuaram a impedir entradas.
Donald Trump tem dito que todos os anos entram nos EUA milhares de refugiados sem que se saiba quem são e o que tencionam fazer. Uma afirmação desmentida pelos factos. O processo de aprovação de um refugiado demora em média dois anos porque qualquer candidato passa por um escrutínio muito exigente.
Aliás, ao argumentar que estava a basear a sua ordem executiva num antecedente da administração Obama, Trump de certo modo reconhece que o processo já era exigente no tempo de seu antecessor. E a verdade é que, como ficou dito, não houve até hoje qualquer atentado provocado por um refugiado.
Vários analistas observaram ainda que países donde têm saído mais terroristas como a Arábia Saudita, o Egipto e o Paquistão não foram abrangidos pela ordem executiva. Dos 19 terroristas que fizeram o 11 de Setembro 15 eram sauditas e Bin Laden esteve escondido no Paquistão durante anos após o atentado ao World Trade Center.
Por tudo isto, esta ordem executiva desencadeou a maior vaga de oposição a Trump desde que ocupou a Casa Branca há pouco mais de uma semana. E ameaça continuar a fazer estragos na nova administração.