01 fev, 2017 - 11:05 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
A ordem executiva de Donald Trump para impedir a entrada de refugiados e imigrantes provenientes de sete países muçulmanos nos Estados Unidos foi apresentada como uma medida provisória que vigoraria até serem criados mecanismos mais eficazes de escrutínio dos candidatos a viver no país.
O próprio Presidente anunciou a medida como indispensável até que haja um novo processo de selecção mais exigente aos imigrantes e refugiados. Mas à medida que se vão conhecendo mais pormenores sobre a forma como tudo foi pensado e executado pelo seu gabinete vão ficando mais claras as intenções e motivações da ordem executiva.
A medida foi criticada basicamente em dois planos: no dos princípios e no da aplicação prática. Comecemos por este último. A precipitação com que entrou em vigor é inédita e revela a obstinação dos seus autores.
Trump assinou a ordem na sexta-feira à tarde e deu instruções aos serviços de fronteira para a pôr de imediato em prática. Daqui resultou que pessoas que estavam em pleno voo para os EUA foram barradas à chegada ao país, enquanto outras foram impedidas de embarcar no aeroporto de origem pelas companhias aéreas, apesar de terem a documentação em ordem.
Confusão interpretativa
E porquê? Porque ninguém sabia em rigor em que circunstâncias é que um nacional dos sete países abrangidos pela ordem executiva poderia entrar nos EUA.
Quando um advogado da ACLU, American Civil Liberties Union – grupo de luta pelos direitos cívicos mais activo na América – perguntou a um funcionário do aeroporto JFK, em Nova Iorque, com quem devia falar para esclarecer a questão, a resposta que obteve foi esta: “Com o Presidente. Fale com o Presidente”.
Ninguém sabia portanto como interpretar a directiva presidencial, mas os juristas do Departamento de Segurança Nacional, depois de uma reflexão conjunta, terão concluído que os possuidores de autorização de residência (o chamado “green card”) deveriam ser autorizados a entrar.
Uma conclusão que desagradou a alguns círculos da Casa Branca, nomeadamente a Stephen Bannon, o conselheiro de Trump para a estratégia política, que vem da extrema-direita americana, e que parece ser o mais influente assessor do presidente. Bannon e os seus apaniguados na Casa Branca terão dados indicações ao Departamento de Segurança Nacional para que fosse impedida a entrada também aos detentores de “green card”.
Ao adoptarem esta interpretação, os funcionários fronteiriços fizeram tábua rasa da lei e entraram no terreno da arbitrariedade. Disso se terá apercebido o chefe de gabinete de Trump, Reince Priebus, que no domingo de manhã numa entrevista televisiva afirmou que os detentores de “green card” não estavam abrangidos pela ordem executiva.
A preocupação de Reince Priebus entende-se como estratégia de controlo dos danos que a medida estava a causar no país, mas também se explica pelo facto de ele ser um conservador “mainstream”, que dirigiu o Partido Republicano até à vitória de Trump, em Novembro.
Mas o mesmo não pode dizer-se de Stephen Bannon, cujo fanatismo ideológico se sobrepõe à noção de respeito pela legalidade e até ao mais elementar bom senso. Enquanto inspirador da ordem executiva, ele foi o responsável pela sua interpretação e pela precipitação com que foi aplicada, provocando a maior onda de indignação que uma administração há uma semana em funções jamais enfrentou.
No plano dos princípios, o seu objectivo tem um alcance muito mais vasto. Ele visa alterar radicalmente a política de imigração do país de modo a criar dificuldades intransponíveis aos “indesejados” que pretendam residir na América. O que passará pela adopção de medidas idênticas à desta ordem executiva de forma definitiva.
Não repetir a Europa
No fundo, trata-se de transformar uma experiência de três meses em regra definitiva, garantindo que a obtenção de vistos ou de “green cards” para muçulmanos se torna de tal forma difícil que será virtualmente impossível emigrar para os EUA no futuro. Impedir toda uma geração de muçulmanos de virem para a América é o objectivo de Bannon, que os considera não assimiláveis pela sociedade americana.
Bannon não é o único a pensar assim na ‘entourage’ de Trump. Stephen Miller, outro assessor do presidente, e o general na reserva Michael Flynn, conselheiro de segurança nacional, têm visões semelhantes sobre a imigração muçulmana para os EUA. Eles entendem que a continuação dos actuais fluxos migratórios de muçulmanos criaria “ghettos” semelhantes aos que existem em cidades francesas, alemãs ou belgas, que se tornariam viveiros de terroristas.
Se isso acontecer, argumentam, dentro de algumas décadas a principal característica desses locais será uma “ameaça multidimensional e multigeracional” de terror. “Não queremos ter, daqui a 20 ou 30 anos, ataques terroristas regulares, lojas fechadas, bombas a explodir em aeroportos, pessoas trucidadas por carros e coisas do género”, disse um funcionário da administração citado pelo “Los Angeles Times”.
Os três conselheiros citados são o núcleo duro de uma ala marcadamente ideológica que se sente imbuída de uma missão na Casa Branca: travar a crescente diversidade étnica no país e restaurar o monopólio do poder da América branca.
Pouco lhes importa que o cenário apocalíptico que traçam seja desmentido pelos especialistas em contraterrorismo, que lembram que as comunidades muçulmanas nos EUA se integraram bem melhor na sociedade do que as da Europa. E que há décadas haja milhões de muçulmanos a viver no país sem que nada disso tenha acontecido.
Ou que as situações de disrupção que atribuem à Europa existam, em dose reforçada, em muitas cidades americanas provocadas pela pobreza e pelo uso indiscriminado de armas de fogo. Ou que desde o 11 de Setembro tenham morrido 9 pessoas por ano em ataques terroristas, mas todos os anos morram 13 mil vitimadas por armas de fogo.
Para Bannon, Miller e Flynn é clara a associação entre imigração e insegurança, mais especificamente entre muçulmanos e terrorismo, uma associação típica da xenofobia, que marcou, de resto, todo o discurso de campanha de Trump. Instalados agora na Casa Branca, estes três ideólogos têm oportunidade de levar a cabo a sua cruzada contra todos os grupos étnicos “indesejáveis”.
Com o beneplácito e entusiasmo do presidente, em pouco mais de uma semana já foram hostilizadas três minorias: os latinos, com a decisão de construir o muro na fronteira sul e fazer o México pagar por ele; os muçulmanos, com a ordem executiva de os impedir de entrar no país; os judeus, quando no dia da evocação do Holocausto Trump divulgou uma mensagem em que não fazia qualquer referência às suas principais vítimas.
Talvez o inspirador da mensagem tenha sido Stephen Bannon, que em matéria de anti-semitismo tem créditos firmados. Chamou “judeu renegado” a William Kristol, editor do Weekly Standard, um destacado neoconservador muito crítico de Trump. E enquanto dirigiu o site Breitbart nunca se inibiu de atitudes “racistas” e “anti-semitas”, segundo alguns ex-colaboradores.
Quando foi nomeado para a Casa Branca, a organização judaica Anti-Defamation League reagiu à escolha: “É um dia triste quando um homem que liderou o primeiro site de ‘alt right’ [extrema-direita que defende os supremacistas brancos] é escolhido para ser um importante membro na ‘casa do povo’”, disse o director executivo Jonathan Greenblat.
Conselheiro de Segurança
Apesar de tudo isto, Donald Trump nomeou-o seu conselheiro estratégico e acaba de lhe garantir um lugar permanente no Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgão que mais frequentemente reúne com o presidente sobre questões de defesa e segurança.
O CSN é composto por representantes institucionais das várias agências ou departamentos ligados à defesa e à intelligence (serviços de informação) e não por assessores ou conselheiros. Os secretários de Estado, da Defesa, do Tesouro e da Energia, os chefes militares, os directores dos vários serviços de espionagem, entre outros, são os responsáveis com assento no CSN.
Mas Trump, não só colocou Bannon no CSN, como excluiu dele como membros permanentes o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas e o director-coordenador da ‘intelligence’ nacional. Perante o coro de críticas que a decisão provocou, a Casa Branca argumentou que estes dois responsáveis seriam chamados ao CSN sempre que as discussões envolvessem questões sob a sua tutela.
Acontece que os assuntos debatidos no CSN são, por definição do órgão, sobre segurança e defesa e não se compreende como esses debates podem prescindir dos principais responsáveis pelas respectivas áreas. Sobretudo porque nele são analisadas as informações mais secretas recolhidas pelas agências de ‘intelligence’.
Por outro lado, o director da CIA ficou também excluído do CSN num primeiro momento, mas mais tarde a decisão foi corrigida. Segundo o porta-voz da Casa Branca, “o presidente tem tanto respeito pelo director [Mike] Pompeo e pelos homens e mulheres da CIA que decidiu emendar a ordem e voltar a colocar a CIA no CSN”. Ou seja, não foi por razões institucionais que Trump recolocou a CIA no CSN, mas por consideração pessoal pelo seu director.
Este é o padrão de comportamento do novo presidente, para quem o que conta acima de tudo é a confiança e a lealdade pessoal e não a competência ou a adequação às funções. E neste aspecto, Stephen Bannon está acima de muitos responsáveis institucionais de Washington, o que faz dele o homem mais influente, mais poderoso, desta administração ao fim de escassos dias de poder.
A tal ponto que nesta terça-feira o “New York Times” publicou um editorial com o seguinte título: “Presidente Bannon?”.