08 fev, 2017 - 10:14 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Não será exagerado dizer que a esmagadora maioria dos americanos não é capaz de nomear um único nome de ex-secretários da Educação.
Mas a nova secretária da Educação da administração Trump talvez seja uma excepção a esta regra. Betsy DeVos entrou esta terça-feira para a história política americana como a primeira pessoa que precisou do voto de desempate do vice-presidente para poder ser confirmada no cargo pelo Senado.
DeVos, uma multimilionária do Michigan que vai dirigir o ministério da educação dos Estados Unidos, esteve até à hora da votação em risco de ser chumbada, porque além dos 48 senadores democratas, tinha a oposição declarada de duas senadoras republicanas, o que empatava a contagem nos 50-50. O vice-presidente, que por inerência do cargo preside ao Senado, teve por isso de usar o seu voto para desempatar a contenda e garantir a nomeação.
A oposição a DeVos veio em crescendo desde que o seu nome surgiu como a escolha para o cargo. E não só dentro do "establishment" político. Os senadores democratas fizeram todos os esforços para evitar que o seu nome passasse, incluindo passarem a noite de segunda para terça-feira a discursar no Senado, tentando desesperadamente nas últimas 24 horas obter o apoio de pelo menos mais um senador do campo republicano para chumbar a multimilionária. Em vão.
Mas desde o movimento sindical até aos especialistas em educação, passando por milhares de cidadãos anónimos que inundaram o Senado com telefonemas para os seus eleitos insurgindo-se contra DeVos, houve de tudo um pouco em termos de mobilização cívica. As pressões chegaram a gerar a expectativa de que Trump deixasse cair o seu nome. O presidente, contudo, manteve a escolha, arriscando um desaire no Senado.
Por tradição os nomes propostos pelo presidente eleito para a sua administração passam no Senado, mesmo quando a maioria na câmara alta do Congresso não coincide com a presidencial. Os secretários de Educação sempre foram aprovados por margem folgada. Mas algumas das escolhas de Trump foram de tal modo controversas que, desta vez, a tradição esteve em risco.
Só escolas privadas
Nenhuma, porém, foi tão controversa quanto a de Betsy DeVos, uma multimilionária de 59 anos, que dedicou boa parte da sua actividade a combater a escola pública. Feroz adepta das escolas privadas e da política de “vouchers”, cheques-educação que subsidiam os pais para poderem escolher livremente a escola dos filhos, a nova secretária da Educação nunca teve qualquer experiência no sector público e nunca teve qualquer filho a frequentar uma escola pública. Ela própria só frequentou escolas privadas.
A sua ideologia anti-escola pública gerou receios entre os senadores democratas e entre a generalidade da comunidade educativa. “Estou seriamente preocupada com uma pessoa que só esteve envolvida num dos lados da equação, tão empenhada em favorecer os "vouchers" que até pode desconhecer aquilo que tem tido sucesso na escola pública, mas também o que tem falhado e como se pode corrigir”, declarou a senadora Lisa Murkowski, do Alasca, uma das duas republicanas que votaram contra DeVos.
Um receio que se pode traduzir no desvio de verbas destinadas a escolas públicas em favor de subsídios a famílias para colocarem os filhos em escolas privadas ou nas chamadas “charter schools”, um regime misto em que a escola é subsidiada pelo erário público mas é gerida por privados e teoricamente não pode discriminar alunos com base na raça, género ou deficiência. Uma espécie de parceria público-privada.
David Kirkland, um professor da Universidade de Nova Iorque, considera que “o seu extenso conflito de interesses e o seu registo de retirar dinheiro aos estudantes vulneráveis e colocá-lo nos bolsos dos ricos tornam-na inadequada para o cargo”.
Má experiência do Michigan
Este especialista em questões educativas referia-se ao plano que DeVos pôs em prática no Michigan, donde é natural. Graças a esse plano muitas escolas públicas passaram ao regime misto e hoje há zonas muito extensas onde a oferta de escola pública é quase inexistente.
O que só por si não seria problema, se a qualidade do ensino tivesse melhorado. O problema é que os alunos dessas escolas mistas apresentam hoje os piores índices do estado, o que colocou o Michigan entre os estados com ensino mais fraco do país.
DeVos e a família fizeram durante anos “lobbying” fortíssimo a favor da criação de “charter schools” e dos “vouchers”. A aposta nos “vouchers” custou-lhes 5,6 milhões de dólares em campanhas, mas nunca foram aprovados no Michigan. Já os “charter schools” tornaram-se uma indústria próspera de gestão de escolas com administradores bem pagos e fracos resultados dos alunos.
Uma investigação exaustiva do jornal “Free Press”, de Detroit, concluiu que não há mecanismos de avaliação destas escolas mistas, que continuam a operar e vêem os contratos renovados apesar dos maus resultados apresentados. Não surpreende por isso que o Michigan se tenha tornado o estado que mais atrai este tipo de investimento.
Os defensores da nova secretária da Educação argumentam que ela será a reformadora de que o ensino carece. E foi essa lógica que terá levado Donald Trump a escolhê-la para o cargo, já que durante a campanha o presidente defendeu várias vezes a necessidade de apostar numa política de “vouchers” e de “charter schools”.
Porém, a avaliar pelo Michigan a estratégia não funcionou. Apresentada por DeVos como a solução para os maus resultados da escola pública, o que se verifica hoje é que os “charter schools” apresentam resultados idênticos aos que apresentavam as escolas públicas. A tal ponto a experiência correu mal que hoje muitos defensores da filosofia dos “charter schools” se tornaram críticos da mesma.
A tudo isto acresce que Betsy DeVos teve uma prestação desastrosa na audição no Senado. O desconhecimento que revelou em relação a matérias elementares da educação pública, o visível embaraço com que enfrentou algumas questões e a forma caricata como respondeu a outras deixou muita gente perplexa.
Respostas caricatas
Apenas dois exemplos. Em 1975, foi aprovada uma lei que impõe a todos os estados a obrigatoriedade de ter educação especial para alunos deficientes. A lei foi aprovada no âmbito do alargamento dos direitos cívicos a todos os extractos da população, impedindo discriminações de qualquer tipo e criando igualdade de oportunidades.
Interrogada sobre se concordava que todas as escolas públicas devem cumprir a lei, Betsy DeVos respondeu que o assunto “deve ser deixado ao cuidado dos estados”. O que é justamente o que a lei de 1975 quis evitar, impedindo eventuais arbitrariedades discriminatórias por parte dos estados.
O outro exemplo foi ainda mais caricato. Interrogada sobre se concordava com a ideia lançada pelos sectores mais conservadores de que devem ser autorizadas armas nas escolas, respondeu que a decisão devia ser deixada ao critério dos estados e admitiu que algumas escolas devem precisar de armas para se defenderem de ataques dos ursos pardos.
Não surpreende, pois, que algumas das suas respostas tenham sido alvo do humor corrosivo dos “talk shows” televisivos e se tenham tornado também virais nas redes sociais. Mesmo antes de ter entrado na história por ter sido o primeiro membro de um governo a precisar de um desempate no Senado, ela tornou-se famosa pelas afirmações que fez na audição para a nomeação.
Ao longo dos anos, Betsy DeVos sempre pôs a carteira ao serviço do Partido Republicano para cujas campanhas contribuiu com 200 milhões de dólares. Chegou agora a vez de pôr a cabeça ao serviço do partido.
A celebridade, essa, já não lhe escapa. E se mantiver o padrão que evidenciou no Senado poderá mesmo disparar.