15 mar, 2017 - 01:26 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Vistas da Europa, nem sempre as diferenças ideológicas entre republicanos e democratas nos Estados Unidos são notórias. Mas a situação começou a alterar-se desde que há mais de dez anos o Partido Republicano começou uma deriva à direita, liderada pelos adeptos do Tea Party, que o tornaram refém de uma agenda ideológica muito conservadora.
A entrada de Donald Trump na política americana, com toda a atenção mediática que despertou, e sobretudo a sua chegada à Casa Branca, vieram tornar mais claras as clivagens ideológicas na América. Hoje, para os europeus mais atentos é relativamente fácil distinguir entre as posições de republicanos e democratas, entre a direita e a esquerda americana, afinal.
Um assunto em que a tradicional divisão direita-esquerda é patente é o sistema de saúde. Não há na América um Sistema Nacional de Saúde e a prestação de cuidados médicos é uma área de negócios próspera, baseada em seguros de saúde e/ou carteiras bem recheadas. Uma lógica que não divide a direita e a esquerda tradicionais, porque ambas aceitam este tipo de funcionamento de mercado no âmbito da saúde.
A excepção é Bernie Sanders, que defende a criação de um Serviço Nacional de Saúde à semelhança do europeu. Mas Sanders perdeu as primárias para Hillary Clinton e a generalidade dos membros do Partido Democrático bate-se pela melhoria do actual sistema e não pela sua alteração radical, como seria a adopção de um Serviço Nacional de Saúde. Uma utopia no actual contexto americano.
Uma questão de vida ou morte
Mas os democratas têm hoje um património a que se agarram com orgulho — o sistema de saúde criado pelo Presidente Obama, o Affordable Care Act (ACA), mais conhecido por Obamacare. Ele constituiu a primeira fórmula eficaz de alargar os cuidados de saúde a milhões de americanos que a eles não tinham acesso por incapacidade financeira.
Obama foi o 7º Presidente americano a tentar criar um sistema de saúde tendencialmente universal. Antes dele, desde Roosevelt a Hillary Clinton quando foi primeira-dama, todos os esforços acabaram frustrados. Só Obama teve sucesso e mesmo assim parcial.
Graças ao Obamacare mais 23 milhões de americanos passaram a ter direito a seguro de saúde — em 2010 havia 50 milhões sem ele e em 2016 eram 27 milhões. Um número muito significativo num país em que ter ou não ter seguro de saúde pode significar a diferença entre a vida e a morte. Há milhares de casos de americanos que morreram sem assistência médica — ou porque não fizeram diagnósticos atempados ou porque não tiveram tratamento adequado.
O sistema é muito complexo, mas o ACA de Obama baseou-se em três princípios essenciais: criar concorrência entre as seguradoras para fazer baixar os preços dos seguros; subsidiar aqueles que não têm dinheiro suficiente para comprar seguro; multar quem não adquirir seguro.
Os custos de saúde nos EUA são exorbitantes e daí a necessidade de subsidiar aqueles que ganham menos. Obama apostou por isso em subsídios a quem tem menores rendimentos e em fazer baixar os prémios dos seguros através de leilões a nível estadual. E aqui surgiu logo um primeiro problema.
A cada leilão só podem concorrer as seguradoras que operem no respectivo estado. Ora, nos estados menos populosos por vezes só operam duas seguradoras, o que anula a concorrência na prática. Um terço dos municípios do país só tem uma seguradora. O Alasca, por exemplo, é o estado com os seguros mais caros justamente porque não há concorrência entre seguradoras.
E estes são também, em regra, os estados onde o nível de rendimentos é menor, o que resulta num paradoxo — onde há menos dinheiro é onde os seguros são mais caros. Um exemplo eloquente: no Nebrasca, quem ganhe 20 mil dólares por ano (um rendimento bastante baixo na América) é subsidiado em 18.470 dólares para poder ter seguro de saúde. Ou seja, o preço do seguro é quase o rendimento anual do beneficiário.
Este factor dá uma ideia do preço do sistema, que Obama tentou minimizar de duas formas: multando quem não adquira seguro para fazer entrar mais gente no mercado (nomeadamente os jovens) e baixar os preços; obrigando os empregadores a pagar o seguro dos seus empregados a troco de deduções fiscais.
Eis, em termos simples, a filosofia do Obamacare. Respeitando o mercado segurador da saúde, assenta na intervenção governamental através de subsídios e penaliza quem não adere ao sistema, multando.
Uma filosofia a que os republicanos se opõem desde o início. Para eles, há demasiado estatismo no Obamacare e mesmo coacção na obrigatoriedade em adquirir seguro de saúde. Por isso, a sua proposta de lei quer substituir os actuais subsídios para comprar seguros de saúde por créditos fiscais e acabar com as multas a quem o não compre individualmente, bem como aos empregadores que não forneçam seguro aos empregados.
Trumpcare para quem quer. E para quem pode
Os subsídios directos para comprar seguros são algo que sempre esteve na linha de mira dos conservadores. Contraria a sua ideologia anti-estatista e daí a substituição pelos benefícios fiscais. Só que os créditos fiscais previstos estão a milhas dos montantes dos subsídios de hoje. Além de que têm muito pouco significado para quem tem baixos rendimentos. Retomemos o exemplo do Nebrasca: quem ganha 20 mil dólares/ano hoje recebe 18.470 para o seguro de saúde, mas com a nova lei receberá apenas quatro mil dólares de benefícios fiscais. O que significa deixar de poder pagar seguro de saúde pura e simplesmente.
O mesmo se prevê que suceda com o fim das multas individuais e aos empregadores que não adquirirem seguro. Hoje a maioria dos americanos tem seguro através do emprego, mas desaparecendo a penalização esse benefício acabará para muitos. A previsível saída de muitos milhares de pessoas deste mercado levará ao aumento do preço dos seguros entre 20 a 25%, segundo a Kaiser Foundation, especializada em questões de saúde.
Os custos do sistema eram uma das críticas mais severas dos republicanos ao Obamacare. Agora, os estudos sobre a sua proposta de lei apontam para custos ainda mais altos. Mas o maior impacto prende-se com a cobertura do sistema que irá diminuir drasticamente, voltando aos números anteriores ao ACA.
Segundo a análise do Congressional Budget Office (CBO), uma entidade independente que tem como missão analisar o impacto orçamental de todas as propostas de lei para a aprovação no Congresso, o novo diploma republicano deverá atirar para fora do sistema 14 milhões de pessoas já no próximo ano e mais dez milhões até 2026. Ou seja, 24 milhões em dez anos, um número praticamente igual ao dos que entraram no sistema graças ao Obamacare. Será o regresso aos tempos em que cerca de 50 milhões de americanos não tinham seguro de saúde.
Uma questão ideológica e eleitoral
Como estão a reagir os republicanos a este impacto? Varia de acordo com o seu grau de conservadorismo ideológico ou em função do círculo político por onde foram eleitos. Se os seus eleitores forem penalizados pela nova lei, o congressista ou senador tende a opor-se-lhe porque quer garantir a reeleição. E a ironia do caso é que a nova lei penalizará sobretudo eleitores de área rurais e de baixos rendimentos, justamente aqueles que deram a vitória a Trump.
Mas se a reeleição não estiver em jogo, é o grau de conservadorismo do legislador que conta. E nesse aspecto, muitos republicanos já se manifestaram a favor do diploma, argumentando que ele garante a liberdade individual e evita que seja imposto ao cidadão um seguro de saúde que ele pode não querer comprar.
Paul Ryan, o “speaker” da Câmara de Representantes, foi claro: “o nosso papel não é obrigar as pessoas a fazer uma coisa que não querem. O nosso papel é criar um sistema em que toda a gente possa dispor de uma cobertura acessível se a quiser ter ou não”.
A tónica está, portanto, na liberdade individual de optar por ter ou não ter seguro de saúde, ignorando os que poderão deixar de o ter por falta de dinheiro.
Mas a tónica está ainda na outra parte do estudo do CBO, que diz também que a nova proposta poupará 337 mil milhões de dólares ao orçamento federal. Um número que Paul Ryan classificou como “encorajador”, reflectindo a maior preocupação dos republicanos com as finanças públicas do que com a cobertura de saúde dos cidadãos.
Se, de facto, como aponta o estudo do CBO, houver mais 24 milhões de americanos sem seguro, os cofres federais vão certamente poupar muito dinheiro porque o sistema de saúde é caro.
Uma preocupação financeira que já não se aplica quando se aborda a questão das reduções fiscais prometidas por Trump. Segundo alguns estudos, as reduções fiscais previstas para quem ganhe mais de 250 mil dólares por ano (alguém que pode considerar-se rico) podem ter um impacto orçamental de 600 mil milhões de dólares, isto é, quase o dobro do que a nova lei de saúde poupará.
Talvez fiquem assim mais claras, aos olhos europeus, as diferenças ideológicas entre republicanos e democratas.