17 mai, 2017 - 21:12 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
Se na semana passada havia um cheirinho a Watergate em Washington, esta semana o cheiro intensificou-se bastante e o espectro de um processo de “impeachment” do Presidente passou a dominar as conversas na capital americana.
Na origem do problema está o comportamento errático de Donald Trump, que tem surpreendido o país e o mundo, quase todos os dias, com declarações, atitudes ou medidas nada consentâneas com o cargo que desempenha. Mas desta vez, o caso é bem mais grave e pode configurar uma obstrução à justiça, logo uma ilegalidade.
O “New York Times” noticiou que James Comey, o director do FBI recém-destituído pelo Presidente, foi pressionado por Trump para deixar cair a investigação ao ex-conselheiro nacional de segurança, Michael Flynn, sobre as ligações à Rússia. A pressão aconteceu no final de um encontro na Sala Oval, em Fevereiro passado, no dia seguinte à resignação de Flynn do cargo que desempenhou durante 24 dias.
No encontro estiveram presentes, além do Presidente e do director do FBI, o vice-presidente Mike Pence e o procurador-geral Jeff Sessions. No fim da reunião, Trump solicitou a estes dois membros da administração que o deixassem sozinho com James Comey e nessa altura pediu ao director do FBI para deixar cair a investigação a Flynn sobre as suas ligações à Rússia. “Espero que deixe passar isto”, terá dito Trump a Comey, segundo as notas do encontro redigidas pelo próprio director do FBI. “Espero que encontre uma forma de deixar passar isto, de deixar o Flynn em paz. Ele é um bom tipo”, disse o Presidente.
Comey não respondeu, mas ficou preocupado com a pressão presidencial e redigiu um memorando do encontro, que se manteve em sigilo até agora. Segundo as fontes dos média americanos, no memorando Comey exprime a convicção de que Trump queria impedir o prosseguimento da investigação a Flynn. Em vão, porém. A investigação está em curso.
A revelação pública deste facto na semana seguinte à destituição de Comey vem pôr em xeque a actuação de Trump, naquilo que os especialistas denominam como uma “obstrução à justiça”, ou seja uma ilegalidade.
O FBI enquanto polícia de investigação criminal e o Departamento de Justiça devem actuar com total independência em relação à administração e os membros da administração devem abster-se de quaisquer atitudes que possam ser interpretadas como intromissões na sua acção. É o sadio princípio da separação de poderes num Estado de direito, cuja aplicação neste caso ainda se torna mais premente porque estamos perante uma intromissão do presidente num caso em que membros da sua administração estão a ser investigados e ele próprio pode vir a ser investigado.
A Casa Branca apressou-se a desmentir a versão da reunião dada por James Comey, dizendo que o Presidente nunca pediu o fim de qualquer investigação, incluindo a de Michael Flynn. E reiterando que Trump respeita a independência da justiça e das investigações policiais. Um desmentido cuja credibilidade é quase nula à luz das contradições e falsidades em que a Casa Branca se tem atolado nos últimos tempos.
Aliás, a forma como a situação ocorreu só reforça a credibilidade da versão de James Comey. Antes de mais porque o comportamento de Trump foi logo suspeito ao pedir ao vice-presidente e ao procurador-geral para o deixarem sozinho com Comey na Sala Oval. O Presidente não queria claramente que houvesse testemunhas da conversa.
Depois porque Comey redigiu o memorando sobre o encontro como registo para memória futura e manteve-o sempre em sigilo. Tal como fez memorandos dos outros encontros que teve com Trump, numa prática habitual dos responsáveis da agência nos seus contactos oficiais e de trabalho.
Além disso, em quadros com a alta preparação jurídica e experiência em lidar com informação secreta e criminal como é o caso dos agentes do FBI é completamente inverosímil a suspeita de que Comey iria fazer um relato distorcido do que se passou na Casa Branca.
A reputação dos relatórios dos agentes do FBI é tamanha que eles têm servido de prova em tribunal quando a situação o recomenda. O que no caso vertente quer dizer que se este caso da tentativa de obstrução à justiça avançar em foro criminal, aquilo que James Comey escreveu será certamente considerada a versão rigorosa do encontro com Donald Trump.
A delicadeza do caso é tal que o líder da Comissão de Supervisão da Câmara de Representantes, o republicano Jason Chaffetz, que tem sido acusado de omissão na fiscalização dos comportamentos do presidente, desta vez decidiu agir de imediato. Enviou uma carta ao FBI a dar um prazo até ao dia 24 para que sejam remetidos ao Congresso quaisquer memorandos, notas ou registos redigidos por James Comey sobre todos os contactos que teve com Trump. Caso o FBI resista ao pedido — os documentos solicitados são internos e sujeitos a sigilo — Chaffetz anunciou que recorreria a uma intimação judicial para os obter.
Paralelamente, o ex-director do FBI será convocado a depor no Congresso quanto antes, numa audição aguardada com a máxima expectativa. Desconhece-se por ora se será à porta fechada ou pública, mas ao que parece Comey preferirá depor em sessão aberta.
Em qualquer caso, o ambiente político no país está ao rubro, com muitos membros do Partido Republicano a descolarem do apoio incondicional a Trump e a admitirem a necessidade de uma investigação à eventual obstrução à justiça feita pelo Presidente.
Com os democratas e a generalidade dos comentadores a invocarem o caso Watergate, começa a generalizar-se a opinião de que as semelhanças entre a actuação de Trump e a de Nixon são cada vez maiores.
O prestigiado senador republicano John McCain exprimia isso mesmo numa sessão em que foi homenageado: “Isto está num ponto em que atingiu o tamanho e a escala do Watergate”, referindo-se às ligações entre a campanha de Trump e a Rússia, ainda e sempre o motivo de todas estas atribulações. E a sua colega de partido, a senadora Susan Collins, desabafava que “não podemos ter este caos constante na administração Trump todos os dias”.
Esta demarcação progressiva de Trump por parte de eleitos republicanos é um indício relevante porque um processo de impeachment de um presidente depende, em última análise, do voto maioritário na Câmara de Representantes e de dois terços dos senadores. E neste momento os eleitos parecem estar em sintonia com a opinião da maioria dos americanos. Uma sondagem publicada na terça-feira aponta para números inéditos: 48% dos americanos serão favoráveis ao impeachment do presidente, enquanto só 41% se lhe opõem. Números que reflectirão uma convicção curiosa: só 43% acreditam que Trump fará o mandato até ao fim, enquanto 45% crêem que ele será interrompido.
Mas esta é uma procissão que ainda vai no adro…