02 jun, 2017 - 02:42 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
É possível falar sobre um acordo do clima e falar mais de dinheiro do que de ambiente? Depende de quem fala, naturalmente, mas com Donald Trump não só é possível como até provável.
Os europeus já tinham experimentado isso mesmo na semana passada durante a cimeira da NATO, em Bruxelas, quando ouviram o presidente americano repreendê-los por não pagarem uma quota maior para a aliança, num discurso em que pouco se ouviu sobre segurança e muito sobre dinheiro.
Nesta quinta-feira, a cena repetiu-se. Trump veio anunciar a sua decisão de abandonar o Acordo de Paris sobre o Clima, mas pouco falou de ambiente. Dólares aos milhões, aos biliões, aos triliões, foi a expressão mais saída da boca do presidente para justificar a retirada dos Estados Unidos do acordo que até hoje conseguiu maior consenso internacional. Uma decisão que coloca a maior potência mundial ao lado dos dois únicos países que não o assinaram e que têm regimes bastante recomendáveis: a Síria e a Nicarágua…
O anúncio não foi uma surpresa. Mas os termos duros em que foi feito reflectem com clareza a visão de Donald Trump sobre o mundo. É uma visão que faz jus a um dos slogans da sua campanha eleitoral — “America first” (América primeiro) — mas que começa a soar mais como um “America against” (América contra). A América contra tudo e todos, contra o resto do mundo, porque o resto do mundo está contra a América.
Atente-se nesta frase: “O resto do mundo aplaudiu quando assinámos o acordo de Paris. Ficou muito feliz. Pela razão simples que pôs o nosso país em desvantagem económica muito grande”.
Ou nesta: “Até que ponto é que a América é humilhada? Até que ponto é que eles começam a rir-se de nós como país? Queremos um tratamento justo para os nossos cidadãos e para os nossos contribuintes. Não queremos que os outros líderes e os outros países se riam mais de nós. E não vão fazê-lo mais”.
Ou nesta: “O acordo é uma redistribuição maciça de dinheiro dos EUA para os outros países”.
Esta é a visão que Trump tem de um acordo internacional que conseguiu o consenso de 195 países. Que na sua opinião se aproveitaram da generosidade, da ingenuidade negocial da América, para sacar as maiores vantagens do acordo e deixar os prejuízos todos aos EUA. O mundo inteiro, oportunisticamente, às costas da América.
Esta é a visão que Trump tem da comunidade internacional — um conjunto de gente sempre pronta a conspirar contra os EUA para daí tirar o máximo proveito possível. Não é uma comunidade internacional disposta a cooperar para tentar resolver ou minimizar os problemas que a todos afectam. Onde os outros vêem cooperação, Trump vê inimizade, rivalidade, oportunismo. Não é só uma visão unilateralista, é uma visão belicosa do mundo, onde a competição pelos interesses de cada país é a única lei vigente.
Por isso, não surpreende que tenha falado pouco sobre clima e muito sobre dinheiro. Que tenha dito que representava os cidadãos de Pittsburgh, não de Paris, que tenha falado de um acordo “altamente injusto” e que tenha classificado a sua decisão como um “reafirmar da soberania” da América.
E que tenha aproveitado para dizer que ia cessar de imediato os pagamentos dos EUA ao Fundo Verde para o Clima das Nações Unidas, que visa acudir a desastres ambientais ou ajudar países pobres a lutar contra os efeitos do aquecimento global. Pagamentos exorbitantes, a seu ver.
Não é sobre clima
Ele próprio confessou, naquela que é talvez a frase mais sintomática do discurso, que “este acordo é menos sobre o clima e mais sobre os outros países ganharem uma vantagem financeira sobre os EUA”. Financeira, note-se.
Para quem olha para o Acordo de Paris deste modo, pouco importam os argumentos de carácter ambiental. Trump citou os supostos danos para o emprego nos EUA e falou de 6,5 milhões de postos de trabalho que se perderiam com a implementação do acordo. Mas nenhum estudo independente corrobora a tese.
Bem pelo contrário, o que dizem os estudos oficiais é que o sector de maior crescimento económico é o que está ligado às energias limpas, que sozinho vale mais em termos de emprego e de impacto económico do que o carvão e as minas, que Trump tanto quer proteger e relançar.
Os próprios empresários americanos concordam com a tese e muitos deles vieram a público defender Paris como uma oportunidade não só de combater o aquecimento global, mas também de tornar a economia americana mais competitiva num sector onde pode liderar no mundo — justamente as energias limpas. Um deles, aliás, já anunciou que abandona o Conselho Económico de Trump na sequência da decisão do presidente — Elon Musk, CEO da Tesla e da SpaceX.
E desde o anúncio de Trump as reacções no mundo empresarial foram esmagadoras na condenação da decisão. Quando o presidente diz que a economia irá beneficiar da sua decisão, os maiores agentes económicos vêm desmenti-lo em catadupa.
E esta é só uma parte da reacção surgida na América nesta quinta-feira. O “mayor" de Pittsburgh, a cidade citada por Trump como uma das que representa e em cuja defesa decidiu abandonar Paris, veio dispensar tal defesa e proclamou o seu apoio ao acordo do clima.
Com ele estão para já pelo menos 50 outros presidentes de câmara de grandes cidades americanas que se dizem empenhados em atingir as metas definidas em Paris. E a eles se vão juntando vários governadores dispostos a combater nos seus estados as emissões poluentes como se Paris estivesse em vigor.
Esta é, pois, uma decisão que divide profundamente a América. E não necessariamente segundo linhas partidárias. Enquanto há sindicatos controlados pelos democratas que concordam com Trump em nome da defesa dos postos de trabalho do seu sector, há republicanos que dela discordam, incluindo no Senado e na própria Casa Branca.
A começar pelo secretário de Estado, Rex Tillerson, pela filha Ivanka e pelo genro Jared, ambos conselheiros presidenciais. Certamente não por acaso, nenhum deles compareceu ao anúncio público. E se Tillerson não é uma presença habitual nestas cerimónias da Casa Branca até porque passa boa parte do tempo a viajar, já Ivanka e Jared nunca faltam aos rituais do presidente.
A sua ausência foi bastante notada e talvez tenha sido prudente, porque para quem defendia a manutenção do país no acordo não seria fácil aplaudir um discurso que positivamente o arrasava. De resto, depois de ouvir o que Trump pensa sobre o acordo torna-se difícil imaginar com que argumentos é que Ivanka e Jared terão tentado convencê-lo do contrário. Mas quaisquer que tenham sido, algo fica claro: o casal mais jovem da Casa Branca averbou uma enorme derrota no confronto interno que vai mantendo com os mais radicais, liderados por Steve Bannon.
A China à espreita
Muitas das críticas internas revelam preocupação com os efeitos externos da medida. Os EUA retiram-se de um consenso internacional que têm vocação para liderar deixando um vazio que será seguramente preenchido por outras potências.
China, Índia, União Europeia, são candidatas naturais a esse papel, muito embora a China surja aqui com inegáveis vantagens. E Pequim não perdeu tempo a reafirmar a sua determinação em cumprir o acordo e a considerar irresponsável a decisão americana. Se adicionarmos a isto a disponibilidade financeira da China, facilmente poderemos concluir que dentro de poucos anos Pequim poderá liderar os esforços mundiais na luta contra o aquecimento global.
Em política internacional, quando surgem vazios, alguém aparece sempre para os preencher. Por isso, David Gergen, antigo conselheiro de presidentes republicanos e democratas, classificava na CNN a decisão de “abandonar o mundo” como “imoral” e “vergonhosa” e alertava para as eventuais consequências: enquanto o século XX foi americano, com decisões destas o século XXI será chinês.
Ao olhar somente para Pittsburgh, como símbolo do eleitorado a quem prometeu devolver empregos condenados pela evolução tecnológica, e ao renunciar a Paris, Trump revela a mesquinhez da sua visão e compromete o futuro da América como líder mundial.