14 jun, 2017 - 13:07 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Quando se testemunha sob juramento só há duas formas de evitar dizer a verdade: recusar responder às perguntas ou dizer que não se recordam os factos invocados por quem o interroga.
Se mentir perante o Senado americano pode conduzir a uma acusação de perjúrio e a um processo judicial, o mais prudente é recorrer a uma das duas formas citadas.
Na audição de terça-feira, o procurador-geral (equivalente a ministro da Justiça) dos Estados Unidos, Jeff Sessions, recorreu abundantemente àquelas duas formas.
“Não me lembro”, “não me recordo”, “não consigo reconstituir a conversa” foram algumas das frases mais ouvidas durante as duas horas e meia que durou a audição. A outra foi o recurso frequente à “impossibilidade” de responder às questões por razões supostamente legais.
Um depoimento que contrastou flagrantemente com o de James Comey, na semana passada, cuja memória forneceu abundantes pormenores sobre os encontros e conversas tidas com Donald Trump. E sempre que entendeu não responder a alguma questão disponibilizou-se para o fazer em privado.
Como se esperava, a sessão abriu com uma declaração em que Sessions garantiu que não tinha participado em nenhum conluio com a Rússia para interferir nas eleições presidenciais do ano passado. Uma “mentira horrível e detestável”, protestou.
Desta vez admitiu que tinha tido dois encontros com o embaixador russo, mas que nada aconteceu de reprovável, muito menos uma conspiração para prejudicar os interesses americanos.
Em Janeiro, na audição que teve para a aprovação para o cargo que agora exerce, Sessions tinha omitido estes encontros. E em Março, quando o “Washington Post” revelou que os encontros tinham de facto existido, veio dizer que tinham sido na qualidade de senador e não de responsável pela campanha de Trump.
Sucede que Sessions, nos 20 anos em que exerceu o cargo de senador, raramente se encontrou com embaixadores estrangeiros e nunca mostrou especial interesse pelos assuntos externos. Só no ano passado, quando se tornou responsável pela política externa da campanha de Trump — vá lá saber-se porquê…— é que tais encontros se multiplicaram.
Teve então encontros com mais de 20 embaixadores dos mais variados países, segundo o seu próprio gabinete no Senado. E são alguns desses diplomatas que confirmam que o procuraram na qualidade de responsável da campanha de Trump, não na de senador, porque queriam perceber em que consistia afinal a política externa do candidato republicano.
Por isso, o argumento de que os dois encontros com o embaixador russo ocorreram na qualidade de senador parece pouco plausível. Mas houve ainda um terceiro encontro, no hotel Mayflower, em Washington, numa sessão pública em que Trump fez o seu primeiro discurso sobre política externa. Um encontro ainda não confirmado e sobre o qual se especulava. O ex-director do FBI despedido por Trump, James Comey, ter-lhe-á feito referência na audição à porta fechada da semana passada.
Sessions não o negou, mas também não confirmou, limitou-se a dizer que poderá ter estado com o embaixador russo nessa sessão, mas apenas socialmente, entre os milhares de pessoas que assistiram ao discurso de Trump. Não se lembrava bem, mas garantiu que não teve qualquer encontro em privado com ninguém no hotel Mayflower nesse dia.
Falta de memória
Uma explicação que parece plausível, já que aquele seria o local menos conveniente para debater assuntos delicados com Sergey Kislyak. Muito embora Sessions não se lembre do que discutiu com o embaixador nos outros encontros. Ucrânia? Não me lembro. Síria? Não me lembro. Segurança europeia? Não me lembro. Interferência russa na campanha? Não me lembro.
Uma amnésia que facilmente poderia ser colmatada pelas notas que os assessores que sempre acompanham estas reuniões elaboram. Na agenda de um senador — e foi nessa qualidade que Sessions reclama ter falado com o embaixador do Kremlin — não há encontros políticos não documentados. Mas estranhamente ninguém perguntou a Sessions por eventuais notas dos encontros com Kislyak.
Mas perguntaram-lhe por que razão se tinha afastado voluntariamente de qualquer investigação sobre a Rússia se, como garantiu, nada tinha feito de errado. Respondeu que o fez porque tinha sido responsável na campanha de Trump e a suspeita recaía sobre a campanha ter conspirado com os russos. Isso foi em Março, mas dois meses depois participou no despedimento de James Comey do FBI, que Trump assegurou ter sido por causa da investigação à interferência russa.
Neste aspecto, revelou que o Presidente lhe tinha pedido a opinião sobre o desempenho de Comey à frente do FBI e Sessions escreveu um relatório crítico. Não revelou, porém, o teor da conversa com Trump sobre este assunto. Mas o relatório incidia sobre a forma como Comey tinha gerido o caso dos emails de Hillary Clinton durante o ano passado e nele se recomendava o seu afastamento da agência.
Outra afirmação muito pouco plausível. Por dois motivos. Primeiro porque dois dias depois de Sessions e os assessores da Casa Branca proclamarem aos quatro ventos que o despedimento de Comey se devera à forma como lidou com o caso dos emails de Clinton, Trump confessou a uma televisão que já tinha decidido afastar o director do FBI antes do relatório do Departamento de Justiça e que o tinha feito por causa da investigação da pista russa. Segundo, porque Sessions argumenta agora que Comey foi incompetente no caso dos emails de Clinton, mas, no ano passado, quando o assunto explodiu na campanha, elogiou publicamente a atitude do director do FBI.
Aquilo que foi uma actuação correcta em 2016, credora de elogios públicos, não se transforma num motivo de despedimento em 2017, por muito que se mude de ideias. Uma contradição que veio confirmar que o argumento dos emails de Clinton foi apenas um pretexto inventado para tentar esconder o verdadeiro motivo do despedimento de Comey: a investigação à interferência russa na campanha.
Um outro pormenor contribui para tornar o caso ainda mais insólito. Sessions revelou que não tinha falado com Comey sobre o seu desempenho nem sobre qualquer intenção de o despedir, o que contraria os protocolos, a tradição e a ética habituais nestes casos.
O depoimento de Jeff Sessions nesta terça-feira esforçou-se por dificultar a investigação, ao não esclarecer vários pontos, ora por “falta de memória”, ora refugiando-se numa alegada protecção da confidencialidade das conversas com o Presidente.
Recusou-se a dizer se tinha falado com Trump sobre a investigação à Rússia e a forma como James Comey conduziu o caso. Recusou-se a revelar se tinha falado com Trump antes dele despedir o director do FBI. Recusou-se a esclarecer por que era “problemático” o seu envolvimento na pista russa, segundo a definição de Comey. E nem se disponibilizou para o fazer em sessão fechada ao público.
Obstruir a justiça?
Tais recusas valeram-lhe acusações de senadores democratas de estar a “obstruir” a investigação. Um deles perguntou-lhe se o Presidente tinha exercido o chamado “privilégio executivo” para impedir quaisquer relatos de conversas com ele. Sessions respondeu que não. Então por que invoca uma prerrogativa que o Presidente não lhe pediu que exercesse, quis saber o senador.
A resposta foi algo surpreendente. Disse que, de acordo com os protocolos do Departamento de Justiça, tinha obrigação de acautelar para o futuro a confidencialidade das conversas com o Presidente. Ou seja, mesmo que o Presidente não tenha exercido o direito de manter confidenciais as suas conversas sobre um determinado assunto, pode decidir fazê-lo mais tarde. Uma lógica que impede qualquer revelação do que se passa na Casa Branca, mesmo em sede de inquérito do Congresso.
Foi isso que lembrou o senador Martin Heinrich, democrata do Novo México, que acusou Sessions de estar a impedir a investigação do Congresso. Implícito ficou que se tratava de um desrespeito ao poder legislativo vindo de alguém que é um jurista.
Vários juristas citados pelos média americanos sublinham que invocar o “privilégio executivo” não pode servir para “esconder ou iludir qualquer ilegalidade”, sobretudo no âmbito de uma investigação conduzida por um órgão de soberania.
David Gergen, veterano comentador da CNN, que foi assessor de Ronald Reagan, entre outros presidentes, lembrou que Reagan libertou todos os funcionários da sua administração de obrigações de confidencialidade e disponibilizou todos os documentos existentes para a investigação do escândalo Irão-Contras, que assombrou a sua presidência, nos anos 1980. Uma atitude de transparência que contrasta em absoluto com a da actual administração, em pleno “esforço organizado para impedir a investigação”, segundo Gergen.
Um esforço que poderá pôr em risco o inquérito do Senado. Há dias, os depoimentos do director da NSA (National Security Agency) e do DNI (Director of National Intelligence) foram igualmente escassos em informações, sugerindo um padrão de comportamento da administração que visa esvaziar a investigação parlamentar.
O Senado pode recorrer a intimações judiciais para “obrigar” estes funcionários a revelar aquilo que sabem, mas é duvidoso que tal aconteça já que a maioria republicana controla ambas as câmaras do Congresso e não parece interessada em aprofundar o inquérito.
Despedir Mueller?
Com tantos escolhos pelo caminho, resta a esperança na investigação conduzida por Robert Mueller, o procurador especial escolhido pelo Departamento de Justiça para levar a cabo um inquérito de forma independente da administração.
Na segunda-feira, a entourage de Trump fez circular o rumor de que o Presidente estaria a pensar despedir Mueller e encerrar a investigação. Uma intenção que suscitou advertências por parte de inúmeros republicanos, que se desdobraram em “conselhos” a Trump para não o fazer, incluindo Paul Ryan e Mitch McConnell, lideres da maioria na Câmara de Representantes e no Senado, respectivamente. A prepotência de tal atitude teria muito provavelmente um efeito político devastador para a administração.
O último Presidente a despedir um procurador especial para tentar travar uma investigação foi Richard Nixon no caso Watergate e sabe-se como acabou. Talvez por isso, esta terça-feira, o procurador-geral adjunto Rod Rosentein, que escolheu Mueller, foi claro numa audição no Congresso: é a ele que compete exonerar Mueller e só o fará se houver alguma razão legal fundamentada. Por isso, defenderá a “integridade do investigador especial”.
Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.