09 jun, 2017 - 01:46 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Agora liberto da função de director do FBI, o cidadão James Comey entrou a matar no seu depoimento perante o Senado. A Casa Branca “mentiu pura e simplesmente” e “difamou” o FBI e o seu director quando disse que a agência estava mergulhada na “desordem” e não confiava no seu líder.
Estavam abertas as hostilidades em relação a Donald Trump, que Comey não poupou durante as três horas que depôs na Comissão dos Serviços Secretos. Mas nem sempre esteve ao ataque. Perante algumas perguntas dos senadores, teve de se defender e aí revelou algumas fragilidades.
Mas comecemos pelos ataques. Logo a abrir confessou o quanto as explicações para o seu despedimento o tinham “confundido e preocupado” pela sua “inconsistência”. Pouco antes, Trump tinha louvado o seu trabalho e a Casa Branca deu justificações diferentes daquelas que Trump veio a dar 48 horas depois. “Não sei por que fui despedido”, sublinhou.
Um dos ataques mais sintomáticos foi quando lhe perguntaram por que tinha escrito memorandos dos encontros com Trump. Porque “estava sinceramente preocupado que o presidente pudesse mentir sobre a natureza do nosso encontro e achei que precisava de o documentar”. E também “para proteger a integridade do FBI”, afirmou. Acrescentou até que não tinha sentido tal necessidade quando teve encontros com os dois presidentes anteriores, Obama e Bush. Como sinal da avaliação que faz do carácter do actual presidente dificilmente poderia ter sido mais claro.
Como foi claro quanto aos pedidos que Trump lhe fez nas conversas a sós que tiveram. A mais decisiva foi aquela em que o presidente lhe pediu para parar a investigação que estava em curso a Michael Flynn, que tinha sido até à véspera da conversa conselheiro de segurança nacional. “Espero que deixe o Flynn em paz. Ele é bom tipo. Espero que deixe cair isto”, afirmou o presidente.
Uma “directiva”
O verbo “esperar” pode não ser o mais forte, mas Comey explicou o contexto da conversa, que surgiu depois de uma reunião com vários responsáveis da “intelligence” na Sala Oval, no fim da qual Trump pediu a todos que saíssem para ficar sozinho com o director do FBI. “Para mim, como investigador, isso foi um facto muito significativo“, avaliou. “Tomei as suas palavras como uma directiva”, disse ainda, evitando utilizar a palavra pressão.
Para ele tinha ficado claro que Trump queria acabar com a investigação às ligações entre a Rússia e a campanha eleitoral republicana, até pelo contexto e pelo tom utilizado. Por isso, discutiu o assunto com a direcção do FBI quando regressou à agência e houve unanimidade na apreensão pelas palavras de Trump e na necessidade de prosseguir a investigação a Flynn.
Foi neste ponto que Comey revelou uma das suas fragilidades. A senadora democrata Dianne Feinstein perguntou-lhe por que não tinha dito ao presidente que o que ele estava a fazer era “inapropriado” e abandonara a Sala Oval. Mesmo tendo em conta que o local impõe alguma intimidação, Comey é um homem forte, observou.
Comey disse que não sabia por que não o tinha feito e admitiu que talvez não tivesse sido suficientemente forte para tal naquele momento. “Fiquei atordoado (stunned) com o que disse o presidente”, justificou-se, admitindo que talvez devesse ter agido de modo mais firme.
Uma firmeza que também lhe faltou no encontro anterior com o presidente, o jantar de finais de Janeiro, em que Trump lhe pediu “lealdade”. Nessa altura, Comey limitou-se a ficar calado e mais tarde, perante a insistência, prometeu “honestidade”.
Nesta alegada falta de coragem ou de frontalidade para com o presidente vislumbram certamente alguns republicanos uma intenção premeditada de Comey para ir recolhendo elementos que pudessem vir a embaraçar Trump no futuro, como acabou por acontecer.
Ninguém o disse nesta audição do Senado, mas é isso que se subentende nas perguntas de alguns senadores republicanos: Comey nunca teve vontade de se demitir das funções perante as pressões do presidente? O ex-director respondeu que não.
Substância criminal?
Uma outra fragilidade — mas esta da investigação, não de Comey — é a questão em torno do verbo “esperar” utilizado por Trump na conversa. “Espero (I hope, em inglês) que deixe cair isto” não parece ser exactamente uma expressão de autoridade, de quem dá uma ordem que quer ver executada. Um dos senadores perguntou a Comey se conhecia algum caso em que alguém tenha sido acusado por usar tal verbo. O ex-director respondeu que não.
Este é um ponto fulcral porque um eventual processo de “impeachment” ao presidente deverá partir de uma acusação de que ele tentou “obstruir a justiça”. Ora, até que ponto é que uma frase daquele teor pode ser entendida como obstrução à justiça? Comey disse que a tinha interpretado como uma “directiva”, mas acrescentou que não lhe competia a ele determinar se havia ali qualquer substância criminal.
Para haver substância criminal tem de haver intenção na obstrução à justiça. Algo que vários juristas dizem estar provado com o facto de Trump ter acabado por despedir Comey e ter mesmo confessado publicamente que o fez pensando na investigação ao caso russo.
Naturalmente que os republicanos, e em particular a administração Trump, argumentarão sempre que nada no comportamento do presidente foi ilegal ou passível de ser considerado ilegal, por isso jamais se justificará um processo de “impeachment”. E este será o episódio onde tudo irá radicar. Com aquela frase, Trump tentou impedir a justiça de prosseguir as suas investigações sobre o alegado conluio entre a Rússia e responsáveis da campanha republicana? Ou a frase é demasiado branda para ser interpretada dessa forma?
Houve outro momento algo desagradável para Comey. Foi quando o senador republicano Marco Rubio o interrogou. Segundo os relatos do próprio Comey, Trump fez-lhe três pedidos: lealdade, deixar cair a investigação a Flynn, e que divulgasse publicamente que o presidente não era objecto de investigação.
Destes três pedidos só os dois primeiros foram objecto de fugas de informação. O único que poderia ser favorável a Trump se viesse a público era aquele que nunca veio. Com esta constatação, Marco Rubio deixou no ar a suspeita de que as fugas de informação foram cuidadosamente orientadas para prejudicar a imagem do presidente na opinião pública — ou seja politicamente orientadas.
Fuga de informação
E foi ainda a propósito de fugas de informação que surgiu a revelação mais surpreendente da audição. Foi quando Comey confessou que tinha sido ele próprio a pedir a um amigo para divulgar publicamente o conteúdo das suas conversas com Trump — isto é, os memorandos. Fê-lo depois de ter sido despedido do FBI e era portanto um cidadão livre, mas a revelação não o livra de acusações de ser, ele também, responsável por fugas de informação.
O caso promete alimentar muita controvérsia nos próximos tempos. Enquanto jurista experiente, Comey reflectiu certamente nas possíveis consequências do que ia dizer. Defendeu a sua atitude, afirmando que visava com a revelação das conversas levar à criação de um investigador especial para o caso da interferência russa na campanha. O que acabou por acontecer mais tarde com a escolha de Robert Mueller, um ex-director do FBI, para conduzir tal investigação à margem do Ministério da Justiça e da administração em geral.
Em sua defesa, argumentam vários observadores, tem o facto de ser um cidadão privado quando o fez e de os memorandos serem as suas notas pessoais dos encontros com Trump, portanto documentos não classificados. Vêem na atitude de Comey uma reacção natural de alguém que se viu afastado do cargo para que uma determinada investigação parasse e que não confia no Ministério da Justiça para a levar a cabo.
No entanto, esses mesmos memorandos estão agora nas mãos do investigador especial e serão peças essenciais no inquérito em curso. Mais, na tradição americana as notas que os agentes do FBI redigem sobre os seus contactos costumam ser consideradas provas em tribunal, tal é a sua fiabilidade. Logo, enquanto peças do processo não parece pacífica a sua divulgação pública, muito menos promovida por um director da agência que tinha acabado de ser afastado.
Os memorandos eram apenas notas pessoais de Comey sobre as conversas com Trump ou eram registos oficiais do FBI que documentavam os encontros entre o director da agência de investigação e o presidente? Será legítimo o director do FBI transformar os registos das conversas que teve com o presidente em notas pessoais no momento em que foi demitido quando ele próprio argumentou que os tinha redigido para “proteger a integridade do FBI”?
Naturalmente, o advogado pessoal de Trump atacou Comey neste aspecto, dizendo que compete às autoridades judiciais avaliar da legalidade da sua atitude. Mas não deixou de mencionar o aspecto ético do problema, lembrando que Comey se mostrou sempre preocupado com as fugas de informação e agora confessava ter ele próprio promovido uma.
Venham as gravações
Isto numa reacção ao depoimento de Comey, algumas horas depois, em que basicamente desmentiu tudo o que o ex-director tinha dito. Negou que Trump tenha pedido lealdade ou que lhe tenha sugerido deixar cair a investigação a Flynn. Pouco antes, a Casa Branca tinha dito que o presidente “não é um mentiroso”.
Comey testemunhou sob juramento e quando um senador lhe perguntou por que devia acreditar mais na palavra dele do que na de Trump, lembrou modestamente a sua carreira, o seu registo limpo e a coerência das suas declarações e da sua actuação neste caso.
Para mostrar quão à vontade estava neste aspecto, disse a certa altura: “Deus, espero que haja gravações” das conversas entre os dois, a que Trump aludiu num tweet em jeito de ameaça a Comey se ele começasse a divulgar o que se passou entre eles. Estranhamente, continua-se sem saber se as conversas na Sala Oval são ou não gravadas. Interrogada sobre o assunto no final do depoimento de Comey, uma porta-voz da Casa Branca disse que não sabia se havia ou não sistema de gravação instalado.
A seriedade e independência de Comey não ficaram beliscadas por esta ida ao Senado. Aliás, a provar a sua equidistância em relação aos dois partidos revelou um episódio embaraçoso para a ex-ministra da Justiça de Obama.
No ano passado, quando lhe comunicou que ia abrir um inquérito aos emails de Hillary Clinton, Loretta Lynn sugeriu-lhe que não lhe chamasse “investigação”, mas apenas “assunto”. Comey ficou surpreendido e perguntou por que razão haveria de lhe chamar assunto se se tratava de uma investigação. E foi como tal que a designou publicamente.
Mas se a sua independência, seriedade e credibilidade não ficaram afectadas, já a eficácia do seu depoimento é questionável em alguns aspectos. Ou talvez se tenham alimentado excessivas expectativas em relação a ele e agora se verifique que o seu caso contra Trump não saiu propriamente reforçado desta audição no Senado.
Contudo, este é um processo que ainda está a dar os primeiros passos, convém não esquecer.