08 jun, 2017 - 00:55 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
São muito raros os momentos nos Estados Unidos em que os canais de sinal aberto alteram a sua programação habitual para cobrir questões políticas. E quando isso sucede, das duas uma: ou estamos perante uma notícia de última hora de grande impacto como um ataque terrorista, por exemplo; ou estamos perante cerimónias ou comunicações muito importantes do presidente.
De um modo geral, a vida política do país está remetida para os canais de cabo, onde tudo se discute, tudo se comenta, tudo se analisa, tudo se propagandeia. Alterar a programação para transmitir uma audição de um alto funcionário no Congresso é por isso algo que transforma esse acontecimento num momento quase histórico.
E é o que vai suceder esta quinta-feira de manhã, (tarde em Portugal) quando o ex-director do FBI, James Comey, se sentar perante a Comissão dos Serviços Secretos (Intelligence) do Senado para testemunhar sobre os contactos que teve com Trump e as alegadas tentativas de obstrução à justiça feitas pelo presidente.
O seu depoimento é aguardado com a máxima expectativa e o caso não é para menos, já que aquilo que Comey tem para dizer poderá vir a ser a peça principal de um processo de “impeachment” a Trump, justamente porque poderá configurar uma atitude de “obstrução à justiça”.
Recorde-se que esta foi a principal acusação feita ao presidente Richard Nixon que, no âmbito do caso Watergate, por diversas vezes tentou evitar que gravações de conversas e outras provas materiais fossem entregues aos investigadores.
Donald Trump demitiu James Comey em Maio, quando o FBI tinha em curso uma investigação sobre um eventual conluio entre responsáveis da campanha eleitoral e agentes russos. O afastamento suscitou repúdio na opinião pública, sobretudo porque Trump confessou dois dias depois de despedir Comey que a investigação ao caso da Rússia tinha sido a sua principal motivação.
Nos dias seguintes, várias fugas de informação encarregaram-se de revelar que o presidente tinha tido pelo menos dois encontros com o director do FBI em que teve atitudes inapropriadas, que levantam sérias dúvidas legais.
São esses comportamentos incorrectos de Trump que o Senado agora quer averiguar e para isso chamou Comey a depor, numa sessão que os media americanos não hesitam em denominar de “bombástica”.
Esta quarta-feira, porém, alguma da expectativa já terá baixado porque o “Washington Post” revelou as notas escritas que Comey lerá na abertura do seu depoimento. O ex-director do FBI enviou-as aos membros da Comissão do Senado na véspera da sessão pública e o seu teor confirma em pleno aquilo que tinha sido noticiado em Maio na sequência do seu afastamento.
“Quero lealdade”
Nelas, Comey explica que houve nove contactos com Trump, três em pessoa e seis pelo telefone. Num jantar na Casa Branca, cerca de uma semana após tomar posse, para o qual convidou Comey e no qual estiveram os dois a sós, o presidente tentou obter garantias da “lealdade” do director do FBI. Perguntou-lhe se ele queria continuar no cargo, disse que havia muitos interessados no lugar e conduziu a conversa de modo a que Comey lhe pedisse para se manter em funções, de modo a ficar a dever-lhe um favor.
O director recusou fazê-lo e ficou “muito preocupado” porque a atitude de Trump punha em causa “a tradição e o estatuto de independência do FBI em relação ao poder executivo”. O momento mais embaraçoso veio depois, quando Trump disse “preciso de lealdade, espero lealdade”. Eis a descrição do director: “Não me mexi, falei, ou mudei a minha expressão facial minimamente durante o estranho silêncio que se seguiu. Simplesmente olhámos um para o outro em silêncio”.
A conversa derivou para outros assuntos, mas mais tarde Trump regressou ao tema e insistiu: “Preciso de lealdade”, ao que Comey respondeu: “Terá sempre honestidade da minha parte”. Trump corrige o tiro: “É o que quero, lealdade honesta”. Ao que Comey responde: “De mim, tê-la-á”.
O director admite que a expressão possa ser interpretada de forma diferente pelos dois interlocutores, mas entendeu que aquela era a frase adequada para acabar com uma conversa manifestamente inconveniente e inapropriada.
O outro momento mais delicado foi no final de um briefing na Casa Branca com vários responsáveis da “intelligence”, a 14 de Fevereiro. No final, Trump pediu a todos que saíssem, mas a Comey que ficasse. “Quero falar sobre Michael Flynn”, disse, referindo-se ao conselheiro de Segurança Nacional que tinha sido demitido na véspera por ter mentido ao vice-presidente sobre os seus contactos com os russos.
“Deixe Flynn em paz”
“Ele é um bom tipo e já sofreu muito, não fez nada de mal ao falar com os russos”, disse Trump, acrescentando: “Espero que arranje uma forma de deixar passar isto, deixe o Flynn em paz. Ele é bom tipo. Deixe passar isto”, referindo-se à investigação aberta pelo FBI sobre os contactos entre Michael Flynn e responsáveis russos, incluindo o embaixador em Washington. Comey apenas corroborou que Flynn era “bom tipo” e nada disse sobre deixar cair a investigação, naturalmente.
Esta descrição pormenorizada dos encontros com Trump deve-se ao facto de Comey ter decidido desde o início que teria de registar fielmente os contactos com o novo presidente dada a sua apetência para exorbitar poderes e interferir com o trabalho do FBI. Por isso, mal terminavam as conversas, Comey registava-as em memorandos e comunicava-as à equipa directiva da agência que liderava.
Fez, aliás, esforços para evitar contactos directos e pessoais com Trump. Pediu ao ministro da Justiça (attorney-general), de quem depende o FBI, que convencesse o presidente a respeitar a cadeia hierárquica e falasse directamente com o responsável da tutela em vez de falar com ele. Mas em vão, Jeff Sessions nunca conseguiu evitar o “curto-circuito” do presidente.
Numa das conversas telefónicas com Trump, Comey disse o mesmo ao presidente, lembrando-lhe que as observações dele sobre o trabalho do FBI deviam ser transmitidas ao ministro da Justiça e não a si directamente. A ele cabia-lhe responder perante o ministro, não perante o presidente. Convém lembrar contudo que o próprio ministro estava fragilizado no caso da investigação sobre a Rússia, já que Sessions ocultou os seus contactos com responsáveis russos na audição a que foi submetido no Congresso e por isso retirou-se de qualquer intervenção na investigação.
Todos estes pormenores serão certamente escalpelizados pelos senadores nesta quinta-feira quando James Comey depuser perante a Comissão de Intelligence. Um depoimento que alguns já classificam como “histórico” pelas repercussões que se antecipam que possa ter.
A reacção de Trump
Contudo, a expectativa não se confina apenas ao Senado. As atenções vão estar também concentradas no twitter, à espera dos comentários de Trump durante a sessão de Comey. Segundo algumas fontes da Casa Branca, os conselheiros presidenciais esforçavam-se por convencer o “patrão” a não reagir a quente, evitando os tweets, mas ninguém arriscava um prognóstico nesta matéria. A impulsividade e imprevisibilidade de Trump dificilmente
serão contidas perante as declarações que Comey se prepara para fazer aos senadores, ao país e ao mundo.
A agenda de Trump, aliás, está limpa de manhã, deixando-lhe toda a atenção livre para seguir o depoimento na televisão. O primeiro acto oficial está marcado apenas para as 12h30, uma altura em que Comey provavelmente já terá “incendiado” Washington.