01 fev, 2018 - 01:14 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
Quase a terminar o discurso do Estado da União, na terça-feira à noite (madrugada de quarta em Portugal), Donald Trump invocou os monumentos que, em Washington, homenageiam os heróis americanos e prestam tributo à causa da liberdade. E nesse contexto chamou ao Capitólio, edifício que alberga o Congresso, onde o presidente falava, o monumento onde a liberdade recebe o tributo mais alto, considerando-o uma homenagem ao povo americano.
A frase seria banal se fosse proferida por qualquer outro presidente, mas dita por Trump tem um simbolismo particular. Mais figura de retórica do que outra coisa, ela exprime contudo um elogio da casa da democracia e do sistema político americano que o actual presidente está longe de cultivar.
Bem pelo contrário, Donald Trump candidatou-se à Casa Branca em nome do ataque à forma como se faz política em Washington, que classificou como o “pântano” que ele tem como missão secar. Candidatou-se contra “a política” e “os políticos” que insultou ao longo da campanha, pedindo mesmo a prisão para alguns opositores. Candidatou-se em nome da necessidade de mudar radicalmente o funcionamento do sistema e acabar com a “carnificina” em curso em Washington contra o povo americano, como afirmou na tomada de posse. E se há símbolo maior dessa “carnificina” é o Capitólio.
No seu primeiro discurso sobre o Estado da União, Trump pareceu rendido ao sistema político americano, elogiando o Congresso enquanto símbolo da liberdade e da democracia, e fê-lo adoptando um tom presidencial, solene, pausado, grandiloquente.
Mas foi só o tom que mudou, porque na substância o discurso revelou o mesmo homem de sempre. Foi um discurso pleno de contradições, e a primeira delas foi justamente entre o tom e a substância. Um discurso dominado pela demagogia de quem gosta de adaptar aquilo que diz aos locais e às circunstâncias, sem se preocupar com coerência ou princípios.
Vejamos alguns exemplos. No início, o presidente invocou as tragédias climáticas que assolaram os EUA recentemente. Fogos, cheias, tempestades, furacões que devastaram a Califórnia, o Texas, a Luisiana, Porto Rico e as Ilhas Virgens. Lamentou os danos, solidarizou-se com as vítimas e apontou alguns heróis no socorro. Mas que valor têm estas palavras na boca de alguém que nega as alterações climáticas, que fala em carvão “belo” e “limpo”, que desclassificou inúmeras áreas protegidas, autorizou a exploração de petróleo nas duas costas e numa reserva natural do Alasca? E que vai cortar 70% das verbas atribuídas à investigação em energias renováveis?
Mais adiante, por entre inúmeros auto-elogios às medidas tomadas no primeiro ano de mandato, Trump falou de um “novo momento americano”, o “melhor momento para viver o sonho americano” e exaltou quem o ouvia a embarcar na aventura. Usou então uma das célebres expressões que corporizam o sonho americano: “não interessa de onde se vem” para se triunfar na América.
Mas que valor têm estas palavras na boca de alguém cuja primeira medida executiva foi proibir a entrada no país de cidadãos provenientes de oito países muçulmanos, incluindo muitos que tinham bolsas de estudo, emprego ou família nos EUA e que foram barrados nos aeroportos quando regressavam de pequenas estadias fora? Que valor têm estas palavras na boca de alguém que chamou “violadores”, “ladrões” e “assassinos” aos mexicanos que emigram para os EUA? Ou se interroga por que são os EUA procurados por gente proveniente de “países merdosos” (“shithole countries”) e não por noruegueses? Ou que indultou um xerife do Texas que tinha sido afastado do cargo e condenado em tribunal por perseguições racistas a imigrantes?
Clima de intimidação
Raramente foi tão marcante na América saber donde se vem. As políticas e a retórica trumpista criaram um clima de intimidação generalizado que inquieta qualquer cidadão não-branco no seu dia-a-dia, seja ou não americano, esteja ou não legalizado. Além das instruções às autoridades para buscas permanentes a imigrantes, esse clima de intimidação já criou escassez de mão-de-obra na Califórnia para colheitas agrícolas sazonais. Os imigrantes latino-americanos que habitualmente cruzavam a fronteira para se empregarem temporariamente nas colheitas já não o fazem com a mesma frequência receando retaliações policiais.
Trump lançou no discurso um plano para a legalização de cerca de 1,8 milhões de imigrantes indocumentados, onde se incluem os chamados “dreamers” (sonhadores), pessoas que vieram para a América ainda como crianças, trazidas pelos pais, e que hoje são adultos “ilegais”. Embora escasseiem pormenores sobre o plano, a intenção será abrir um caminho para legalização num prazo de doze anos.
Mas que valor tem este plano na boca de alguém que ao mesmo tempo anuncia o fecho de fronteiras, o fim dos vistos atribuídos por sorteio e o fim do agrupamento familiar para imigrantes? Ou que aproveita o discurso para proclamar que todos os americanos são “dreamers”, numa tirada cínica que visa desvalorizar o problema dos indocumentados no momento em que procura um acordo com a oposição para o resolver? Que credibilidade tem um plano apresentado neste contexto?
Reality show
Aliás, a questão da imigração pontuou todo o discurso e teve o lado mais repugnante no “reality show” que Trump montou para associar imigrantes e crime. Não é a primeira vez que o faz — esse foi um tópico constante da campanha eleitoral e da retórica pós-eleição — nem será certamente a última. Mas associar imigração e crime faz parte do manual elementar da xenofobia. Não por acaso, explorado até à exaustão pela extrema-direita europeia.
Trump apresentou na tribuna duas famílias negras cujas filhas foram assassinadas por membros de um gang formado sobretudo por imigrantes provenientes de El Salvador, ligados ao tráfico de droga. Ao expô-los como vítimas visa assimilar o crime violento à imigração ilegal na mente dos americanos.
Como se sabe, a América é uma sociedade violenta, onde todos os dias ocorrem dezenas de homicídios de todo o tipo. E embora alguns deles sejam cometidos por imigrantes, os números desmentem Trump porque mostram que a percentagem de crimes cometidos por imigrantes é inferior à média nacional. Ou seja, aqueles que aos olhos de Trump são americanos de pleno direito cometem mais crimes per capita do que os imigrantes provenientes de “países merdosos”. Apesar disso, o presidente obstina-se em mostrar ao país vítimas de crimes cometidos por imigrantes para justificar a sua política de fecho de fronteiras e fomentar o ódio a quem é diferente.
No caso concreto do gang MS-13, Trump falou de “milhares e milhares de prisões” feitas sob a sua administração. As estatísticas oficiais dizem que as prisões rondaram os mil indivíduos e que os “milhares e milhares” só têm sustentação se incluirmos operações feitas por agentes americanos em colaboração com autoridades salvadorenhas e centro-americanas em geral e que levaram a muito mais prisões fora dos EUA.
De qualquer modo, as grandes operações policiais contra os gangs começaram em 2005 e desde então foram presos cerca de 60 mil indivíduos. Destes, “apenas” 7 mil estavam ligados ao MS-13, um pouco mais de dez por cento. O Departamento de Justiça calcula que haja cerca de 1,4 milhões de membros de gangs no país e o MS-13 terá cerca de 10 mil. Menos de um por cento, portanto.
Os factos alternativos
Mas, como sabemos, a verdade não incomoda Trump quando não serve os seus propósitos. Os seus “factos alternativos” é que contam. E, por isso, neste discurso do Estado da União não faltaram também exemplos de falsidades e/ou distorções da verdade.
Na área da economia, por exemplo, reclamou louros pela criação de emprego, pelo crescimento dos salários e pela recuperação da indústria automóvel. Três fenómenos que vêm do tempo de Obama e que se devem à forma como o anterior presidente combateu a grande recessão de 2008.
Em 2017, durante a presidência Trump, criaram-se 1,8 milhões de postos de trabalho, mas em 2014 criaram-se 3 milhões, em 2015 surgiram 2,7 milhões, e em 2016 apareceram 2,2 milhões. Disse que os salários estão finalmente a subir depois de um período de estagnação. No ano passado subiram 2,6%, mas desde 2010 que os salários têm subido a um ritmo de 2,2%, não estão estagnados. Quanto à indústria automóvel, foi salva por Obama com um resgate gigantesco em 2009 e desde então tem prosperado. No ano passado, por sinal, sob a presidência Trump, as vendas até baixaram um pouco, passando de 17,6 milhões de carros em 2016 para 17,2 milhões.
Também na área da energia, Trump se vangloriou de um feito que não é dele, nem existe como proeza. Disse que os EUA são agora “com muito orgulho, um exportador de energia para o mundo”. Há décadas que os EUA exportam energia, mas importam mais do que exportam. As exportações de petróleo estiveram proibidas até 2015 (excepto para o Canadá), ano em que foram autorizadas porque havia produção em excesso e os preços no mercado internacional eram favoráveis. Os cálculos apontam para que o país importe mais energia do que exporta até 2026, apesar da revolução tecnológica do gás de xisto.
Em suma, estas são distorções da verdade a que Trump já habituou toda a gente e que faz do “fact checking” dos media uma actividade crescente e indispensável. Mas aquilo a que ainda não tinha habituado ninguém era a mascarar o seu discurso divisivo, fracturante, xenófobo, com um tom moderado, grandiloquente, presidencial. Fê-lo em Davos, na semana passada, e repetiu-o agora no Capitólio.
Um Trump com pele de cordeiro, contudo, não apaga o Trump agressivo, insensato, irreflectido, que os próximos tweets certamente confirmarão. Nem apagará a ansiedade de milhões de pessoas que hoje se sentem atingidas pela retórica xenófoba e de exclusão do presidente. Para elas, este é o pior momento para viver o sonho americano, por muito que Trump proclame o contrário.