22 fev, 2018 - 10:05 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
E se o atual debate sobre o uso e porte de armas na América resultasse em mais armas nas mãos de civis em vez de menos? A pergunta não é retórica nem irónica. A hipótese de isso acontecer não pode descartar-se depois de ouvir várias pessoas ligadas de algum modo aos últimos massacres que ocorreram em escolas e que falaram esta quarta-feira com o presidente.
Organizado pela Casa Branca, o encontro juntou jovens que sobreviveram ao tiroteio e pais de alunos mortos na escola da Florida na semana passada, bem como pais de jovens mortos em dois outros massacres em escolas — a de Columbine, no Colorado, em 1999, e a de Newtown, no Connecticut, em 2012.
A conversa teve momentos bastante emocionais, como seria previsível, mas em termos substanciais o que mais se destaca é que só três pessoas entre as inúmeras que falaram é que puseram em causa a venda livre de armas de assalto a qualquer cidadão.
A generalidade das intervenções centrou-se em sugestões de como prevenir novos ataques a escolas, como garantir maior segurança nos edifícios escolares, como prepará-las para minimizar os riscos de um ataque a tiro, como evitar que pessoas com problemas mentais possam comprar armas. E foi neste contexto que alguém lançou a ideia — que não é nova — de que talvez treinar e armar os professores, ou alguns professores, possa ser uma forma de garantir maior segurança e criar um fator de dissuasão que desencoraje os potenciais atacantes.
Uma sugestão que Donald Trump acolheu de imediato com simpatia, admitindo que essa possa ser uma das medidas a adoptar para garantir mais segurança nas escolas e evitar massacres como os da semana passada. Professores com armas ocultas e treinados para saber usá-las quando for necessário, desempenhando no fundo dois papéis na escola: ensinar os alunos e defendê-los de ataques a tiro.
Para Trump, um local livre de armas como é uma escola acaba por ser um convite aos atiradores, que classificou como “cobardes” que só atacam gente indefesa. Daí que a ideia lhe tenha agradado. E deu mesmo como exemplo a seguir os pilotos de aviação que passaram a usar armas de defesa.
Trump fez questão de dizer que, nesta fase, a sua administração estava aberta a ouvir todas as propostas para depois optar pelas que considere melhores. Mas naturalmente dar armas aos professores foi aquela que lhe mereceu mais comentários, enquanto outras sugestões só tiveram direito a um acenar de cabeça.
Estão entre essas sugestões a de um jovem que sobreviveu ao tiroteio de Parkland e que foi o único a pôr em causa a venda livre de armas de assalto. Samuel Zeif, 18 anos, entre lágrimas, sublinhou a “originalidade” americana de ter milhões de armas nas mãos de civis e isso estar na origem das mortes trágicas que ciclicamente enlutam o país. E deu o exemplo da Austrália, onde após um massacre em 1999 foram tomadas medidas para impedir o acesso generalizado a armas e desde então não houve qualquer outro incidente do género.
“Não compreendo como um miúdo como eu pode comprar uma AR-15 (a arma usada pelo atirador na sua escola). Ainda hoje li que alguém com uma identidade falsa comprou uma AR-15 em cinco minutos”, disse, classificando-a como uma arma de guerra e não de defesa. Samuel defendeu a proibição de venda de armas de assalto e citou como exemplo o estado de Maryland que aprovou uma lei nesse sentido. “Que eu saiba isso não põe em causa a segunda emenda”, afirmou, numa referência ao artigo do Bill of Rights que garante o direito à posse de arma.
Também a presidente da câmara de Parkland mencionou as armas de assalto como algo que devia ser proibido, defendendo que isso não põe em xeque a segunda emenda constitucional. “A primeira emenda garante a liberdade de expressão, mas também ela sofre algumas restrições na lei geral e ninguém diz que ela fica em causa”, comparou.
Só mais um dos presentes aludiu ao problema da venda indiscriminada de armas. Foi o pai de uma criança morta na escola de Newtown, que discordou da ideia de armar os professores nas escolas. Não só porque não é essa a sua função nem vocação, mas também porque isso não seria factor dissuasor para qualquer atacante. “Para quem está disposto a morrer — e geralmente quem comete estes crimes depois suicida-se — haver ou não gente armada nas escolas não é obstáculo”, lembrou.
Excluindo estes três intervenientes, ninguém mais considerou a venda livre de armas como o pecado original da violência na América. E, por isso, do debate na Casa Branca bem se poderia concluir que serviu sobretudo para duas coisas: mostrar o quanto os americanos — mesmo aqueles vitimados por massacres terríveis — têm bem interiorizado que a posse de armas é uma realidade incontornável das suas vidas; e que da onda de comoção gerada na sequência de Parkland poderão sair medidas que armem ainda mais cidadãos do que aqueles que já estão armados.
Ideia doentia
Mas seria inadequado tirar tais conclusões porque o debate na Casa Branca não reflete o que se passa neste momento no país. E as reações ao debate provaram-no plenamente. A ideia de armar os professores foi arrasada pela generalidade dos que se pronunciaram sobre o assunto.
O senador democrata do Connecticut, Chris Murphy, classificou-a como “doentia” e uma “invenção da indústria de armamento” cujo objectivo principal é vender mais armas, naturalmente.
O senador republicano da Florida, Marco Rubio, também discordou dela, argumentando que podia ter consequências ainda mais desastrosas, porque quando a polícia entra numa escola (ou noutro local) para pôr termo a uma situação de perigo dispara sobre quem quer que tenha uma arma.
O xerife de Parkland defendeu que deve haver menos armas na rua e não mais, enquanto anunciava que ia colocar homens dele a patrulhar cada escola já a partir da próxima semana.
Os professores interrogados foram claros a rejeitar a nova função que Trump pensará atribuir-lhes e os alunos de Parkland falaram de uma ideia que deriva de “insanidade”.
As declarações de Marco Rubio num debate da CNN são, aliás, sintomáticas do clima político que paira no país. Republicano, bastante conservador, apoiado pela National Rifle Association (NRA), o maior lobby das armas no país, o senador eleito pela Florida mostrou-se determinado a contribuir para mudanças na lei quando o Congresso federal retomar os trabalhos.
Proibir os dispositivos que transformam armas semi-automáticas em armas de guerra (“bump stocks”), garantir escrutínio rigoroso do passado de todos aqueles que queiram comprar uma arma (“background checks” universais), aumentar a idade de acesso à compra de armas dos actuais 18 para os 21 anos. Três alterações que Rubio espera que obtenham consenso e luz verde no Senado já na próxima semana.
Das três medidas, a NRA só discorda da última e já o fez saber publicamente. Rubio recebeu dinheiro da NRA para as suas campanhas eleitorais, mas o senador mantém-se fiel a uma das maiores “conquistas” do lobby das armas: continuar a permitir a venda de armas automáticas e semi-automáticas.
A clivagem principal
Este parece ser o ponto de clivagem neste momento entre liberais e conservadores. Enquanto os republicanos, na linha do que Trump disse publicamente, se mostram abertos às três medidas enunciadas, os democratas exigem ir mais longe e proibir a venda das armas mais letais. Essa é também a principal reivindicação dos jovens e de toda a comunidade de Parkland, que se mantém determinada na sua luta de pressão sobre os responsáveis políticos para que as coisas mudem mesmo.
Recorde-se que a venda destas armas consideradas de guerra esteve proibida entre os anos de 1994 e 2004 e nesses dez anos os incidentes com vítimas mortais baixaram significativamente. A moratória então adoptada pelo presidente Clinton foi revogada pelo presidente George W. Bush e desde então os massacres registados foram todos cometidos com armas consideradas de guerra.
Na Flórida, cujo Congresso estadual é dominado pelos republicanos, o dilema acentua-se entre os eleitos locais. O conservadorismo de muitos entra em choque com a onda emocional no estado e já há sinais de clivagem. Nesta quarta-feira, Chris Latvala, um deputado republicano, orgulhoso por não estar nas boas graças da NRA, defendia as alterações legislativas referidas e exprimia admiração pelo ativismo dos jovens de Parkland.
“Não nos podemos esquecer que foram os estudantes que começaram os protestos contra a guerra do Vietname e que foram os estudantes que começaram as lutas pelos direitos cívicos”, lembrava, vislumbrando um ponto de viragem no movimento atual.
Os congressistas do estado não se livraram ainda de serem confrontados com a perplexidade de alguns perante o que aconteceu na terça-feira. Uma moção que abria a discussão sobre a questão das armas — só discutir, não decidir nada de relevante ainda — foi chumbada por 71 votos contra 36, como noticiámos.
Mas no mesmo dia foi aprovada uma lei que considera a pornografia uma ameaça à saúde pública. Pelos vistos, uma maior ameaça à saúde pública do que as armas letais, no entender dos congressistas conservadores da Flórida.