06 fev, 2019 - 10:00 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
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Após dois anos de Casa Branca, o bom senso aconselha a que não se tenham grandes expectativas em relação a qualquer discurso de Donald Trump. Sobretudo se se tratar de um discurso solene e tiver como pressuposto uma atitude de homem de estado. A racionalidade e sensatez que devem ter os discursos de estado não são, como sabemos, qualidades que abundem no presidente americano.
A tradição nos Estados Unidos faz do discurso do Estado da União um momento solene em que se espera do presidente a apresentação da sua agenda política para o ano que se inicia e a sua visão para o país. No caso de a ter, o que é duvidoso em Trump.
A concretização da agenda política do presidente depende em boa parte do consenso que conseguir obter no Congresso e por isso todos os presidentes se esforçam por construir pontes com os seus adversários, especialmente se o seu partido não tiver a maioria dos parlamentares. Todos, menos Donald Trump.
Por isso, o discurso do Estado da União que o presidente proferiu na madrugada desta quarta-feira no Capitólio não trouxe surpresas de monta. Trump foi igual a si mesmo. Pomposo, provocador, divisivo, em vez de sensato, consensual, razoável.
O contexto era difícil, é-lhe difícil. Por duas razões essenciais. Pela primeira vez, Trump viu adiado o discurso por causa do “shutdown”, numa derrota política clara que lhe foi infligida pela “speaker” democrata. O presidente discursou quando Nancy Pelosi quis e não quando ele queria. E pela primeira vez também,
Trump enfrentou uma Câmara de Representantes onde o seu partido perdeu a maioria e onde a bancada democrática espelha hoje uma América que se sente ultrajada desde que Trump iniciou a sua corrida à Casa Branca em 2015.
Silêncio sobre “shutdown”
Duas razões que proporcionaram, aliás, dois momentos políticos sintomáticos. O primeiro é que “shutdown” foi termo que não se ouviu na boca do presidente. Sabendo-se que o discurso foi feito após o mais longo “shutdown” de sempre e que dentro de dez dias o país pode regressar à mesma situação de paralisia de parte da administração, não se ouviu do presidente nada que possa indiciar um caminho de negociação que conduza ao fim do impasse político. A procura de pontes, de consenso, com os democratas foi nula.
Como foi omissa, por outro lado, a ideia de avançar com a declaração de emergência nacional para garantir financiamento para o muro na fronteira com o México. Tudo indica, pois, que o impasse se vai manter e que no dia 15 haverá novo “shutdown” provocado pela questão do muro. Que Trump reiterou que vai construir.
O segundo foi o momento mais irónico do discurso. Aquele em que Trump elogiou a entrada de inúmeras mulheres no Congresso, congratulando-se com o facto. Lembrou mesmo que essa é a melhor forma de celebrar o centenário do reconhecimento do direito de voto das mulheres nos Estados Unidos. Foi o momento em que houve maior explosão de alegria nas bancadas, porque foi o único momento do discurso em que as muitas mulheres recém-eleitas se levantaram eufóricas a aplaudir e a celebrar o seu sucesso político.
A ironia? É que são todas democratas e foram eleitas justamente por combaterem Trump e para combaterem Trump. Para elas, este presidente representa tudo que detestam e foi graças à sua entrada na Casa Branca que elas chegaram ao Congresso dois anos depois. Os seus eleitores esperam que elas combatam firmemente um presidente que consideram misógino, sexista, machista, anti-feminista e anti-minorias.
O contraste entre a bancada democrata — onde as mulheres vestiam de branco e onde muitas caras espelhavam a diversidade étnica e etária da América — e a bancada republicana — constituída quase só por homens brancos, de meia idade ou mais velhos nos seus fatos escuros — era, aliás, flagrante. Elas indiciam já uma combatividade que ameaça dar muitas dores de cabeça ao presidente. Talvez esta tenha sido a última vez que Trump se congratulou com a sua eleição.
Mas além deste momento irónico, o discurso teve outros momentos sintomáticos. Um deles foi aquilo a que se pode chamar o momento Nixon. Foi quando Trump classificou as investigações em curso sobre as ligações da sua campanha à Rússia como “ridículas”.
Numa altura em que o cerco se aperta em torno dos seus colaboradores e em que se aguarda para breve o relatório final do procurador especial Robert Mueller, Trump insiste em dizer que tudo não passa de um embuste e que não houve qualquer conluio com a Rússia na sua campanha eleitoral. O presidente Nixon também pediu o fim das investigações do caso Watergate no seu discurso do Estado da União em 1974. Sete meses depois resignava ao cargo para não ser destituído.
Imigração e crime
Houve ainda, como não podia deixar de ser, um momento xenófobo. Trump, obcecado com a questão da imigração, voltou a relacionar os imigrantes ilegais com o crime, dando exemplos de vítimas de homicídios provocados por imigrantes indocumentados. Esta associação entre imigração e crime faz parte do manual básico da xenofobia e do racismo. Para além de repugnante, não tem qualquer fundamento no caso dos Estados Unidos. As estatísticas mostram que os imigrantes não cometem mais crimes dos que os outros americanos, pelo contrário. A taxa de criminalidade entre imigrantes indocumentados é menor do que a taxa nacional. Trump, contudo, raramente perde uma oportunidade para lançar esse estigma sobre a imigração, sobretudo desde que na campanha eleitoral de 2016 percebeu que tal lhe renderia votos.
Houve, por fim, dois momentos humorísticos. Um deles foi quando Trump disse que a América “nunca será socialista” e pediu um compromisso do Congresso com os valores da sociedade de mercado. Disse-o na sequência de referências à Venezuela e à miséria causada pelo socialismo bolivariano do regime de Maduro. Mas a proclamação de que a América nunca será socialista visava alguns democratas que advogam mais impostos para os mais ricos, como Bernie Sanders ou Alexandria Ocasio-Cortez, a mais recente vedeta da Câmara de Representantes.
O outro momento humorístico foi quando afirmou que se não fosse presidente, neste momento os Estados Unidos estariam em guerra com a Coreia do Norte. Disse-o para se vangloriar da boa relação que estabeleceu com o líder norte-coreano e dos supostos progressos que a cimeira do ano passado com Kim Jong-Un terão tido na desnuclearização da península coreana.
Sucede que não há qualquer avanço por parte da Coreia do Norte para desnuclearizar o país, garantem os serviços secretos americanos. Todo o seu arsenal nuclear permanece intocável, tendo sido apenas suspensos os ensaios de mísseis. Mas Pyongyang já esteve no passado longos períodos sem testar mísseis. Trump, contudo, tenta fazer crer que a cimeira de Singapura trouxe avanços nesta matéria e aproveitou mesmo para anunciar nova cimeira com Kim no fim deste mês no Vietname.
No resto, o discurso de Trump foi abundante em auto-elogios, centrados sobretudo nas questões económicas, como o crescimento, a descida de impostos, a criação de emprego, a desregulação e o comportamento das bolsas.
Relevante foi ainda o facto de Trump ter aberto uma nova frente de combate político ao apelar ao Congresso para que avance com legislação que criminalize o aborto. Aprofundando a sintonia com as suas bases mais conservadoras — sobretudo as evangélicas — que têm combatido ao longo dos anos a atual legislação do país, que despenalizou o aborto no início dos anos 1970, o presidente quer revogar a chamada lei Roe vs. Wade e aprovar a criminalização de quem interrompa a gravidez.
Um assunto que promete incendiar os ânimos no novo Congresso e no país. Um tema verdadeiramente fraturante que poderá vir a marcar os próximos meses, ou anos, na sociedade americana.