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Crónicas da América
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Trump, um presidente acima da lei

16 nov, 2019 - 09:12 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Donald Trump resiste a divulgar a declaração de impostos, mas agora apelou ao Supremo para se pronunciar sobre o assunto. Se vencer, é o equilíbrio dos poderes constitucionais que pode ficar em causa. Abre-se caminho a um presidente autocrata e acima da lei.

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Em plena corrida para a Casa Branca, em 2016, o candidato Donald Trump disse a certa altura que podia disparar sobre alguém na Quinta Avenida, em Manhattan, que nem por isso perderia votos.

A afirmação visava sublinhar a fidelidade incondicional dos seus apoiantes, mas foi vista pela generalidade dos observadores como mais uma “boutade” entre as muitas que o candidato foi soltando ao longo da campanha. Ninguém no seu pleno juízo e sensatez levou a sério o dislate, como quase ninguém levava a sério muitas das afirmações de Trump.

Isso foi no tempo em que qualquer observador, jornalista, analista, cientista político, politólogo, sociólogo, que se prezasse vaticinava a inevitabilidade da derrota de Trump. Não só pelos dislates que dizia a toda a hora, mas também pelo facto de insultar mulheres, negros, latinos, muçulmanos, imigrantes em geral, prometer construir um muro na fronteira, mentir despudoradamente, e não revelar a declaração de impostos.

Este último ponto era considerado particularmente sensível porque, mesmo não sendo uma obrigação legal, era uma tradição forte na América, que todos os candidatos a presidente respeitam escrupulosamente desde os anos 1970. Ser transparente com o público americano quanto à sua situação financeira era considerado uma pedra de toque de qualquer candidato.

Isso foi no tempo em que o respeito pelas tradições e pela ética republicana eram considerados fatores decisivos para a elegibilidade de um candidato. Um tempo em que se presumia que o eleitorado puniria quem falhasse nestas matérias.

Não puniu, como se sabe. E para surpresa de quase toda a gente — incluindo do próprio candidato, da família, e da sua entourage política — Trump desmentiu o valor da tradição e da ética e venceu as eleições.

Ao fazê-lo, abriu uma nova era na política americana e mundial. A era das “fake news” e dos “factos alternativos”, mas também a era da inimputabilidade do candidato convertido em presidente. Porque se os dislates da campanha poderiam entender-se à luz do eleitoralismo e dos exageros típicos desses momentos, eles prosseguiram incólumes após a eleição. E converteram-se em regras de uma presidência que evita a todo o custo prestar contas ao país.

O exemplo mais flagrante disso mesmo acaba de ser dado por um dos advogados de Trump num processo que será decisivo para avaliar se o presidente é, de facto, inimputável ou se o sistema constitucional americano de freios e contrapesos está vivo e funciona.

O processo envolve a investigação conduzida pelo procurador distrital de Manhattan Cyrus Vance Jr. a eventuais ilegalidades financeiras cometidas pela campanha de Trump. A suspeita é que Trump tenha usado dinheiro da campanha para pagar a duas mulheres que reclamaram ter tido casos amorosos com ele — a atriz porno Stormy Daniels e a vedeta da Playboy Karen McDougal.

Para averiguar se foram, de facto, usados fundos da campanha para comprar o silêncio das duas mulheres, o procurador requereu acesso às declarações de impostos de Trump dos últimos oito anos. O presidente recusou o acesso, foi intimado a fazê-lo e o caso seguiu para os tribunais. Numa primeira instância judicial, a intimação foi validada e Trump obrigado a cumpri-la, mas interpôs novo recurso.

Na quinta-feira, Trump levou o caso até ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos, solicitado agora a pronunciar-se com brevidade. Os advogados do presidente alegam que a intimação do procurador de Manhattan tem motivações políticas e querem que o Supremo trave a investigação às finanças de Trump.

Jay Sekulow, um dos advogados pessoais de Trump, disse que “intimações politicamente motivadas como esta ilustram na perfeição por que é que um presidente em funções deve estar categoricamente imune a um processo criminal”.

Nem que dispare na rua

Mas um outro advogado de Trump, William Consovoy, foi mais longe na defesa da tese da imunidade e usou exactamente - adivinhem - o exemplo que o candidato tinha usado na campanha de 2016. Em resposta ao juiz no tribunal de recurso, disse que o presidente, enquanto estiver em funções, não pode ser investigado mesmo que dispare sobre alguém nas ruas de Manhattan.

Eis como um dislate de campanha eleitoral se transforma em tese oficial de defesa de um presidente. Aquilo que Trump reclamava, há três anos, como impunidade perante os seus eleitores, reclamam hoje os seus advogados como tese de imunidade perante a lei, faça o presidente o que fizer, incluindo atentar contra a vida de terceiros.

Um presidente acima da lei é, afinal, aquilo que defendem os seus advogados. O Departamento de Justiça não foi tão longe na defesa desta tese. Argumentou que haverá casos em que um procurador pode aceder à declaração de impostos do presidente, mas este não é um deles. Resguardou assim Donald Trump sem pôr em causa os equilíbrios constitucionais. Teve a prudência institucional que os advogados de Trump não tiveram, dada a delicadeza do assunto.

Para o procurador Cyrus Vance Jr., o presidente está a “inventar e a aplicar um privilégio” que “não existe na lei”, enquanto um juiz de Nova Iorque considerou a teoria “repugnante” à luz da “estrutura governamental da nação e dos valores constitucionais”.

Mas o facto de o Supremo Tribunal ser agora chamado, pelo próprio presidente, a pronunciar-se suscita a maior curiosidade. Porque o que está aqui em causa é o equilíbrio de poderes consagrado na constituição americana. Ninguém está acima da lei e o presidente é responsável perante o Congresso, que pode destitui-lo, por exemplo. E pode ser intimado pelos tribunais a entregar documentos ou a permitir o acesso a materiais considerados relevantes para uma investigação.


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Foi justamente isso que sucedeu com o presidente Nixon em 1974, quando o Supremo Tribunal o intimou a entregar as gravações das conversas na Casa Branca, onde residia a prova última da sua conduta ilegal no caso Watergate. Não por acaso, a decisão do tribunal de recurso que validou a intimação a Trump invoca a decisão de 1974, que foi o golpe de misericórdia na presidência Nixon.

Embora os advogados de Trump invoquem motivações políticas no pedido de divulgação dos impostos e argumentem que dar tal poder a um procurador seria permitir a qualquer instância judicial perturbar e interferir na capacidade do presidente para exercer os seus deveres, o que está aqui em causa é muito mais do que um confronto entre Trump e os seus adversários políticos.

Equilíbrio de poderes

O que está verdadeiramente em causa é um desafio ao ordenamento constitucional americano que consagra um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), evitando uma excessiva concentração de poder em qualquer das instâncias que o exerce: Congresso, presidente e tribunais. E em simultâneo garantir que nenhum agente do poder está acima da lei. Nem mesmo o presidente.

Está, aliás, também pendente uma intimação da Câmara de Representantes idêntica à do procurador de Nova Iorque para que Trump divulgue a declaração de impostos, numa ação típica de fiscalização do poder legislativo sobre o executivo.

Por isso, a decisão do Supremo Tribunal nesta matéria será aguardada com a maior expectativa. E embora à partida possa parecer estranho que o Supremo adira à tese da imunidade presidencial, convém lembrar que há hoje no tribunal uma maioria de juizes conservadores, dois dos quais escolhidos já por Trump — Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.

Como convém lembrar ainda que uma das razões invocadas pelo procurador especial Robert Mueller para não acusar o presidente de crimes no caso da interferência da Rússia na campanha eleitoral foi justamente a tese do Departamento de Justiça segundo a qual um presidente em funções não pode ser alvo de acusações criminais. A imunidade, portanto, mas aqui advogada por um organismo governamental.

Desde que, há três anos, proferiu o dislate sobre a impunidade perante o eleitorado, Trump capturou por completo o Partido Republicano, cujos dirigentes, deputados e senadores se submetem hoje praticamente sem exceção aos seus ditames, mesmo aqueles que contrariam a lei, a doutrina do partido, a verdade e a decência.

Capturou também para os seus interesses e caprichos pessoais a Administração, incluindo o Departamento de Justiça, que é suposto exercer as suas funções com independência. Falta-lhe capturar o Supremo Tribunal para a sua tese de imunidade perante a lei para redefinir o sistema de equilíbrio de poderes americano e se tornar um verdadeiro autocrata.

Um presidente que já desprezava a verdade e a ética, procura agora remover do caminho a única coisa que lhe limita os poderes: a lei.

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