05 fev, 2020 - 08:50 • Jose Alberto Lemos, correspondente nos EUA
“All you need is love” não é só o nome de um celebérrimo tema dos Beatles. A expressão foi adaptada a milhares de situações por esse mundo fora desde que os “Fabulous Four” o inventaram nos anos 1960.
Uma dessas adaptações foi feita pela SIC num dos primeiros anos de existência e entrou na história como o nome do primeiro “reality show” na televisão portuguesa. No primeiro episódio, havia uma mãe e filhos sentados na plateia a quem o apresentador passou um telefone com uma chamada do marido que estava emigrado.
Num tempo em que não havia telemóveis e as chamadas internacionais eram caras, ter a oportunidade de falar com o marido em direto era algo que suscitou emoção na mulher e na audiência. Mas as emoções explodiram quando o próprio marido apareceu a falar ao telefone na plateia e se foi aproximando lentamente da mulher até ela o sentir ali mesmo nas suas costas.
Foi o delírio! A SIC acabava de juntar um casal que estava separado há meses, ali mesmo perante um país surpreendido pela proeza e uma audiência televisiva em crescendo. Era esse o objetivo do “reality show”, obviamente: surpreender e emocionar os espectadores.
Lembrei-me deste episódio da “guerra” das audiências televisivas ao ver o discurso do Estado da União esta terça-feira à noite (madrugada de quarta-feira em Portugal), quando Donald Trump fez entrar na galeria um sargento que estava em comissão de serviço no Afeganistão para encontrar, ali mesmo em pleno Congresso e perante todo o país, a sua mulher e os filhos que já não via há nove meses.
Trump tinha acabado de elogiar aquela família como uma das que sofria com a ausência dos seus entes queridos em missão militar no estrangeiro. E, de repente, quando a mãe e os dois filhos pequenos agradeciam as palmas, o marido sargento desce as escadas e abraça-os, num gesto em todo idêntico ao de qualquer “reality show”. O entusiasmo dos congressistas e dos convidados não foi menor do que o do “All you need is love” e o efeito na audiência foi provavelmente o mesmo.
A diferença — a grande diferença — é que o primeiro era apenas um programa televisivo e o segundo é o discurso anual mais importante do presidente dos Estados Unidos. Mas como sabemos, Trump é um presidente muito peculiar e esteve 14 anos à frente de um “reality show” que lhe garantiu popularidade a nível nacional. Ele é, por isso, um produto televisivo por excelência e sabe como jogar com as emoções das audiências.
Nada de surpreendente, claro. Mas transportar para um discurso solene no Congresso exatamente os mesmos truques usados nos “reality shows” define o personagem que o protagoniza. Ainda por cima, se acrescentarmos que não foi este o único truque de “reality show” usado neste discurso do Estado da União. Houve pelo menos mais dois com impacto.
Um deles consistiu em oferecer ali mesmo uma bolsa de estudo a uma miúda de Filadélfia, acompanhada pela mãe nas galerias, que aparentemente tinha razões de queixa quanto às escolas públicas da sua cidade. Com a oferta da bolsa de estudo, muito no estilo Oprah Winfrey, Trump pretendeu simbolizar a liberdade de escolha no ensino, num gesto individual que traduzirá uma ideia, mas não uma política.
O outro foi a condecoração a Rush Limbaugh, um radialista célebre que se tornou um ícone da América mais conservadora e que sofre de cancro. Trump quis homenageá-lo, mas não se limitou à palavra. Fez com que Melania Trump o condecorasse ali mesmo, na galeria do Congresso onde assistiam ao discurso. Limbaugh foi um dos homens que ao longo da carreira mais espalhou ódio e mais pregou intolerância face aos adversários políticos, que considerava inimigos a abater. Mas recebeu a medalha presidencial da liberdade, a maior comenda civil do país. Ao ouvir o presidente anunciá-lo, fez uma cara de espanto, embora a Casa Branca já tivesse antecipado a condecoração durante a tarde…
Alguém lembrou que o congressista John Lewis, um negro democrata que se destacou na luta pelos direitos cívicos dos anos 1960, também padece de cancro, mas não teve direito a qualquer homenagem de Trump. Uma atitude que define o personagem que a protagoniza.
Mas este discurso não foi apenas “reality show”, embora se perceba que todo ele foi concebido para produzir impacto em diferentes setores do eleitorado. As eleições estão a dez meses de distância e Trump sairá hoje certamente ilibado do processo de impeachment, entrando em modo de campanha eleitoral a toda a velocidade.
A primeira parte foi um prolongado auto-elogio à sua administração, centrado especialmente na economia. Com um desemprego historicamente baixo (3,5%), uma taxa de crescimento razoável (oscilou entre 2 e 3% nestes três anos), subidas significativas na bolsa, Trump tem aqui um capital político que pode ser decisivo para a reeleição. Claro que por entre dados verdadeiros, diz algumas falsidades e sobretudo compara com números do tempo de Obama ignorando totalmente o contexto em que cada um chegou à Casa Branca.
Três falsidades como exemplo: “temos a melhor economia de sempre” ou “os rendimentos cresceram como nunca” ou “fizemos o maior corte de impostos de sempre”. Nenhuma destas afirmações corresponde à verdade. Já dizer que grupos sociais como os negros, os latinos, as mulheres e os jovens têm hoje níveis de emprego mais altos do que nunca corresponde à verdade, mas ignora que esta tendência de criação de emprego já vinha da administração Obama. Quando chegou ao poder, em 2009, os EUA perdiam cerca de 800 mil empregos por semana e quando o deixou, em 2017, o desemprego estava em 4,6%. Virtualmente inexistente. É a diferença entre uma época de recessão como nunca se tinha visto no pós-guerra e uma época de crescimento económico.
Mas mesmo em termos absolutos, foram criados oito milhões de empregos nos últimos três anos da administração Obama, enquanto nestes três anos de administração Trump se criaram sete milhões. Uma comparação lisonjeira para Obama, com quem Trump passou a noite a comparar-se, tentando contrastar a “prosperidade” da sua governação com a “decadência” da anterior. O lema do discurso foi, aliás, “o grande regresso americano”.
No entanto, como trunfo eleitoral o argumento de Trump é válido, porque, como sabemos, os eleitores têm memória curta.
Houve, contudo, duas outras afirmações que mais flagrantemente contrariaram a realidade. Ambas sobre o sistema de saúde, que os eleitores apontam como a sua principal preocupação em frequentes sondagens. Trump disse-se empenhado em garantir que as seguradoras sejam obrigadas a conceder seguros de saúde a quem tenha doenças crónicas, aquilo que na América é conhecido como condições pré-existentes. Ora, acontece que esta é uma prerrogativa introduzida na lei por Obama (Obamacare) e que Trump se tem esforçado por revogar nos tribunais…
A outra foi a afirmação de que o preço dos medicamentos baixou sob a sua liderança. É claramente enganador dizê-lo porquanto isso aconteceu apenas com uma percentagem ínfima e no Congresso os republicanos ainda recentemente bloquearam uma iniciativa democrata que reduziria os lucros da indústria farmacêutica.
Trump elogiou ainda os acordos comerciais que fez com a China, assinado há cerca de uma semana, e com o México e Canadá. Ambos alteraram as condições de transação comercial bilateral, mas segundo os especialistas não substancialmente. O acordo com a China, em particular, limitou-se a garantir que o défice comercial americano se reduzirá para cerca de metade nos próximos dois anos. O acordo com o México e o Canadá, esse, promete proteger os investimentos nos EUA, sobretudo na indústria, e por isso contou com o apoio da maior central sindical do país, a AFL-CIO.
Trump recordou-o, para garantir que estamos a assistir a um boom de empregos entre o operariado americano. Uma afirmação contestada pelos adversários políticos e por muitos economistas, mas que funciona como trunfo eleitoral de novo. E entre grupos sociais que são historicamente eleitores democratas, mas que, em boa parte, votaram Trump em 2016.
É com o desempenho económico e com o discurso que constrói em torno dele que Trump espera captar setores eleitorais que habitualmente não votam republicano, mas que lhe deram a vitória em 2016. E não precisa de muitos votos entre estes setores para reconquistar a Casa Branca em novembro.
Sobretudo porque, segundo as sondagens, continua a ter como garantidos os votos da esmagadora maioria dos republicanos que o elegeram em 2016. Para esses também soube falar neste discurso, retomando alguns temas que lhes são caros e que poderíamos denominar de questões fraturantes por analogia com a política portuguesa.
Antes de mais, o aborto. Trump deu a entender que se prepara para rever a lei Roe vs. Wade, que regula o aborto nos EUA desde 1973. Será certamente uma causa do agrado dos setores mais conservadores, mas que desencadeará movimentos de protesto muito poderosos. É duvidoso que o tente fazer antes das eleições de novembro. Mas se for reeleito, é provável que meta ombros à tarefa. Ficou no ar a sugestão, acentuada pelo facto de Trump ter sido o primeiro presidente que participou numa “marcha pela vida”, que decorreu recentemente.
A este tema, acrescentou o direito a rezar nas escolas públicas, algo que promete desencadear também grande controvérsia. Reafirmou a sua determinação em defender o direito irrestrito ao porte de armas, associou de novo a imigração ao crime — um argumento xenófobo que nele é recorrente — e relembrou que já nomeou centenas de juízes conservadores para os tribunais federais, além dos dois que escolheu para o Supremo Tribunal.
Como “guerras culturais” que alimentarão o imaginário da América profunda, esta agenda política assegura-lhe um bloco de ativistas galvanizado até novembro quando se joga a reeleição. Foi a parte do discurso em que falou sobretudo para as suas bases.
Não houve em toda a intervenção um esforço de consenso, de procura de pontes com a oposição democrata, um sentido de estado, como é prerrogativa dos discursos do estado da união. Ou melhor, como era. Trump acabou com a tradição. O único tópico em que se refreou foi o do impeachment. Não lhe fez qualquer referência por tática política, provavelmente para poder dizer que não entrou no jogo partidário.
Nancy Pelosi chamou-lhe um conjunto de “inverdades” e rasgou a cópia que tinha quando Trump terminou, frente às câmaras de televisão. Um incidente calculado que vale como um “statement” de alguém que tem sido o principal rosto da oposição ao presidente.
Mas sendo um conjunto de inverdades, foi provavelmente eficaz na procura dos seus objetivos. Na era das “fake news” em que vivemos, as verdades parecem contar cada vez menos. Em novembro, o eleitorado americano dirá do seu peso relativo.