30 mar, 2020 - 20:56 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
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Já todos nos habituámos às constantes mudanças de opinião de Donald Trump. Na esmagadora maioria dos casos, elas traduzem uma ausência de pensamento sobre qualquer assunto, uma absoluta ignorância. Mas, mais do que isso, traduzem uma incapacidade em refletir, estudar e ponderar devidamente acerca das questões delicadas que se colocam a qualquer governante.
Entre todas aquelas com que se defrontou em quase quatro anos na Casa Branca, nenhuma é mais delicada do que a do coronavírus, porque é, para todos os efeitos, uma questão de vida ou de morte.
Na semana passada, Trump estava perante um dilema que pôs em rota de colisão os seus impulsos instintivos, o seu coração e a sua vontade, por um lado, e a razão, a racionalidade, a sensatez, por outro. Com doses abundantes dos primeiros e escassez gritante dos segundos, a probabilidade de optar pelo instinto era elevada.
Em causa estava a questão do prolongamento das medidas restritivas de circulação e distanciamento social, mantendo o país quase paralisado, ou o seu relaxamento para pôr a economia a funcionar em meados de abril.
Pressionado pelos setores mais conservadores e por muita gente do mundo empresarial para fazer regressar os americanos à (quase) normalidade em nome do funcionamento da economia, o presidente fez declarações que apontavam para esta opção. Disse nomeadamente que queria ver o país a celebrar a Páscoa e que meados de abril era a altura adequada para acabar com a paralisia provocada pelo vírus.
Era uma opinião que contrariava tudo o que os especialistas diziam, em particular aqueles com quem Trump lidava pessoalmente. Os debates na Casa Branca foram intensos, com o chefe de gabinete e o pessoal da área económica a puxarem para um lado e os cientistas para o outro. Até que, no domingo, a tese dos especialistas em saúde venceu e Trump anunciou publicamente que as restrições se irão manter até 30 de abril, pelo menos.
A data que o presidente tinha apontado inicialmente como mais provável para o relaxamento social é agora, segundo o modelo dos cientistas a trabalhar na Casa Branca, a data em que deverá ocorrer o pico das infeções na América — meados de abril.
“A Páscoa será o pico e a partir daí deverá começar a descer substancialmente”, revelou Trump. “Nada seria pior do que declarar vitória antes de estar garantida”, acrescentou, num desmentido implícito daquilo que tinha dito na semana passada e que agora classificou como “aspirações” e não medidas a implementar.
A dramática realidade americana terá seguramente contribuído para a sensata decisão presidencial. Só num mês morreram 2500 pessoas e há quase 150 mil infectados, o que faz dos EUA o novo epicentro da crise, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Uma realidade que o chocou no fim-de-semana. Trump viu as imagens de um hospital em Queens, Nova Iorque, com o depoimento pungente de uma médica a falar das dificuldades e carências com que se tem defrontado no combate ao vírus. E cadáveres a serem metidos em camiões gigantescos porque a morgue hospitalar não tinha capacidade para os recolher.
“Vi coisas que nunca tinha visto antes. Isto é, tinha visto, mas na televisão, em terras distantes. Nunca tinha visto no nosso país”, confessou, revelando ainda que um amigo estava agora em coma provocado pelo vírus e que isso o tinha abalado.
Esta foi a parte emocional, a dos instintos, que o levou a decidir pelas vidas humanas e não pela economia. Mas houve também uma parte racional na decisão, proporcionada pela análise e pelos dados fornecidos pela “task force” de especialistas mobilizada para a Casa Branca.
Em particular Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infeciosas desde meados dos anos 1980. Fauci serviu todas as administrações — republicanas e democráticas — desde Ronald Reagan. O seu rosto tornou-se rapidamente conhecido dos americanos e a seriedade e segurança com que aborda as questões infunde grande confiança na opinião pública.
Desde que integrou a “task force” da Casa Branca, Fauci nunca cedeu a demagogias e facilitismos, nem corroborou as inúmeras inconsistências de Trump em declarações públicas. Pelo contrário,
alertou sempre para os perigos da epidemia e para o combate árduo e longo que esperava os cidadãos, colocando-se assim nos antípodas da desvalorização que Trump foi fazendo da crise.
Os media foram evidenciando as dissonâncias entre as declarações do cientista e as do presidente, o que deixou os conservadores alarmados com a influência crescente de Fauci na opinião pública e sobretudo no presidente.
Tendo percebido que essa influência levaria Trump por “maus caminhos”, a Fox News e outros media “trumpistas” começaram uma campanha contra Anthony Fauci, tentando colar-lhe o rótulo de liberal empenhado em minar a estratégia do presidente.
Alguém descobriu mesmo um email que Fauci enviou a Hillary Clinton a elogiar a sua atuação na crise dos reféns de Benghazi, na Líbia, quando o consulado americano na cidade foi destruído por jihadistas e morreram quatro norte-americanos, incluindo o embaixador. O email seria a prova de que Fauci era um perigoso democrata que agora conspirava com os adversários políticos de Trump para impedir a sua reeleição.
Na semana passada, em um ou dois briefings de Trump, Fauci não compareceu e começou alguma especulação sobre o seu afastamento. A campanha da direita teria resultado e o presidente teria afastado o médico. Sabe-se como Trump afasta rapidamente aqueles que não lhe são servis e o caso de Anthony Fauci tinha todos os ingredientes para que isso tivesse sucedido.
Mas não foi o caso desta vez. Não só Fauci se mantém na “task force” da Casa Branca como a sua tese sobre a necessidade de manter todas as medidas de distanciamento social convenceu o presidente. Uma clara derrota daqueles que advogavam a prioridade para a economia.
O médico e investigador manteve sempre uma postura irrepreensivelmente profissional e foi nessa qualidade que no domingo, numa entrevista à CNN, afirmou que poderá haver entre 100 mil e 200 mil mortos nos EUA e “milhões” de infetados, segundo os modelos de projeção desenvolvidos pela “task force”, e assumindo que haverá medidas para combater o contágio. São números que correspondem ao melhor e ao pior cenário, mas alertou que nunca trabalhou com modelos em que o pior cenário se tenha concretizado.
Esta estimativa permitiu a Trump dizer, ao fim do dia, que qualquer balanço final da crise que contabilize menos de 200 mil vítimas será um bom número. Algures entre as 100 mil e as 200 mil significará que “fizemos um trabalho muito bom”. Apesar de ter chamado “pesadelo” ao problema do coronavírus e de ter admitido que só em junho é que a vida regressará à normalidade, Trump aproveitou o modelo matemático dos cientistas para consolidar a sua nova estratégia — mostrar aos americanos como tem sabido enfrentar o perigo e lidar com a crise.
Apesar de 100 mil mortos ser um número aterrador que colocará os EUA como a maior vítima deste vírus, Trump poderá reclamar, lá para junho se tudo correr como previsto, que a sua administração fez aquilo que devia ter feito para minimizar as consequências da pandemia.
Um número que já resultou da desvalorização do vírus durante meses, da atuação tardia, da falta de material para equipar hospitais e pessoal de saúde em geral, de negações sucessivas da realidade e dos perigos iminentes. Enfim, um número que é, ele próprio, uma consequência das múltiplas asneiras cometidas pela administração no combate ao covid-19. Mas isso, obviamente, Trump não mencionou…