16 abr, 2020 - 02:00 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA
Há exatamente quatro anos, em abril de 2016, Bernie Sanders fez um comício em Nova Iorque, que decorreu em Washington Square, no coração de Greenwich Village, onde juntou alguns milhares de pessoas.
Sanders era, já nessa altura, um fenómeno de popularidade que fazia sombra a Hillary Clinton, a candidata do “establishment” do Partido Democrático. A oito meses das eleições, o entusiasmo em torno do senador levou mesmo muita gente a pensar que ele poderia ser o candidato do partido em novembro.
Antes do comício, falei com muitos dos seus apoiantes e a pergunta que insistentemente lhes dirigi era esta: se Hillary batesse Sanders nas primárias e fosse a escolhida do Partido Democrático à Casa Branca votariam nela contra Trump ou Ted Cruz? Na altura eram os dois candidatos republicanos ainda com hipóteses, embora Trump já liderasse a corrida.
A esmagadora maioria das respostas que obtive era negativa. E embora não pudesse garantir que a amostra era representativa dos milhares presentes no comício, era seguramente uma indicação importante sobre o estado de espírito daquela gente. E não eram apenas jovens fascinados pelo discurso anti-establishment de Sanders e as suas promessas de acabar com as dívidas contraídas pelos estudantes para tirar um curso universitário. A mesma recusa em votar em Hillary Clinton contra Trump (ou outro qualquer candidato republicano) vinha de gente de todas as idades, de todas as raças, e aparentemente de todas as classes sociais ali presentes.
Casais idosos, velhos professores, tipicamente nova-iorquinos, personagens que poderiam estar em filmes de Woody Allen, convergiam no argumento central de que votar em Hillary era praticamente a mesma coisa que votar no candidato republicano.
Identificavam-na com a alta finança (Wall Street), com os interesses poderosos das grandes corporações, com os vícios partidários de proteger os fiéis e afastar os críticos, de tecer uma teia de cumplicidades no partido baseada nessa fidelidade e não na competência e no mérito, de desprezo pelos mais desfavorecidos.
Para eles, Hillary Clinton fazia parte da mesma elite que Bernie Sanders atacava em todos os discursos, os tais 1% que não queriam saber da sorte dos restantes 99% dos cidadãos e cujas políticas visavam sempre defender os interesses dos privilegiados.
Em tons mais ou menos populistas, reproduzindo o discurso do próprio candidato, estes apoiantes de Sanders sentiam-se naturalmente atraídos pelo seu programa político esquerdista. Sobretudo no que toca ao ensino gratuito, a um sistema nacional de saúde universal, e ao fecho das indústrias poluentes para construir uma economia verde.
Mas independentemente da maior ou menor concordância com a plataforma política, era notório um ressentimento em relação a Hillary, uma rejeição epidérmica à candidata do “establishment”, que tinha, de facto, inúmeros anticorpos entre estes eleitores mais à esquerda.
A campanha de Sanders manteve-se no terreno até ao fim das primárias, amealhando delegados até lhe ser matematicamente impossível garantir a nomeação do partido, o que só aconteceu em junho, na Califórnia. E em julho, na convenção nacional do partido, ainda forçou a contagem dos delegados para constatar o óbvio e apoiar oficialmente Hillary Clinton.
Embora depois tenha feito comícios em apoio à candidata oficial, estava criado um caldo de cultura que favoreceu o distanciamento e o criticismo entre os seus apoiantes e Hillary. De resto, as relações entre o senador derrotado e a candidata nunca foram boas e o ressentimento prevaleceu até hoje.
Ao contrário do que sucedeu com Obama em 2008, que derrotou Hillary nas primárias do partido e, quando eleito, a convidou para secretária de Estado. Todo o azedume da campanha eleitoral foi ultrapassado e, em 2016, Obama foi incansável a percorrer o país em apoio a Clinton.
Não bastou, como se sabe. Contra as expectativas e as sondagens, Trump venceu as eleições apesar de ter tido menos três milhões de votos do que Hillary Clinton. Não foram certamente os votos dos progressistas nova-iorquinos que lhe fizeram falta, porque neste estado esmagou Trump. Mas talvez já não se possa dizer o mesmo em relação a outros estados decisivos.
A candidata democrata perdeu a maioria no Colégio Eleitoral graças aos resultados em três estados que quase sempre votaram democrata, mas que em 2016 preferiram Trump: Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
No conjunto perdeu aqui por 78 mil votos: 23 mil no Wisconsin, 11 mil no Michigan e 44 mil na Pensilvânia. Para a generalidade dos analistas, Hillary cometeu um erro fatal ao menosprezar estes estados, dando-os por garantidos. Ao Wisconsin nem sequer foi na campanha eleitoral e nos outros reduziu as visitas ao mínimo para se concentrar nos “swing states”, aqueles que oscilam de eleição para eleição e que podem dar a vitória a qualquer dos candidatos.
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Nas duas últimas semanas, algumas sondagens davam Trump bem posicionado naqueles estados e Joe Biden foi lá para tentar evitar o pior. Era demasiado tarde. No chamado “rust belt”, estados com grande concentração de indústria pesada, o tradicional voto democrata fugia para Trump, para a abstenção e para a candidatura esquerdista de Jill Stein, do Partido Verde.
Trabalhadores indiferenciados, operários fabris, gente pouco qualificada, via-se desempregada ou subempregada e culpava a globalização e os acordos de comércio livre pela sua situação. Neste desencanto (e desespero, nalguns casos) não era difícil ver no discurso de Trump uma esperança de regresso dos velhos empregos e de uma vida estável. Tal como no de Sanders, já que neste aspeto em boa parte coincidiam.
Em todos estes estados, a candidata esquerdista, Jill Stein, do Partido Verde, teve mais votos do que a diferença entre Trump e Hillary. A saber: 31 mil no Wisconsin, 51 mil no Michigan e 49 mil na Pensilvânia. Um fenómeno que já tinha ocorrido em 2000, quando o candidato do mesmo partido, Ralph Nader, teve muitos mais votos do que a escassa diferença entre Al Gore e George W. Bush, em particular na Florida, que esteve no centro da controversa recontagem naquele ano em que Bush foi eleito sem ter a maioria do voto popular. Tal como Trump em 2016.
Vale a pena recordar estes dados quando Bernie Sanders acaba de anunciar o seu apoio a Joe Biden para sublinhar as diferenças em relação a 2016. Antes de mais, o timing. Sanders concluiu agora, três semanas depois de ter perdido as primárias para Biden, que devia abandonar a corrida. Matematicamente ainda lhe era possível obter a nomeação, mas politicamente já não era viável. Exatamente como em 2016, mas desta vez Sanders decidiu de modo diverso.
Fê-lo num contexto também diverso, claro. A pandemia que assola os EUA tornou a campanha eleitoral inviável. Com os candidatos confinados às caves das suas casas a mandar mensagens aos apoiantes e a ser entrevistados pelas televisões, as pressões para que Sanders desistisse foram enormes. Mesmo assim, só o fez após o país registar 13 mil mortos…
Entretanto, decorreram conversações entre ambas as campanhas e Sanders quis garantir que algumas das suas ideias integrariam o programa político de Biden. Um objetivo que, aparentemente, não foi difícil alcançar, facilitado pela convergência de pontos de vista em algumas matérias, mas também pela boa relação pessoal que os dois homens sempre mantiveram.
Há um respeito e uma cordialidade entre Biden e Sanders que nunca existiu entre o senador do Vermont e Hillary Clinton e que foi patente durante os debates das primárias. Mesmo quando se criticaram mutuamente fizeram-no sem acinte, tentando manter as divergências no plano político sem qualquer alusão ao caráter ou a interesses obscuros. Mais do que uma vez utilizaram mesmo a expressão “o meu amigo…” quando se referiram um ao outro.
Isso permitiu que a fórmula usada esta semana para apoiar Biden fosse um vídeo conjunto em que Sanders apela aos americanos para que se juntem a Biden para derrotar “o mais perigoso Presidente do país na era moderna” e Biden agradece, sublinhando o significado desse apoio. Fazer de Trump “um Presidente de um só mandato” é o objetivo definido por Sanders, que chama ao inquilino da Casa Branca “racista, sexista, xenófobo e homofóbico”.
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Este apoio a Biden foi “abençoado” no dia seguinte por Barack Obama num vídeo em que cauciona algumas das ideias do velho senador e o elogia sem reservas. “Nem sempre concordámos, mas partilhamos a convicção de que temos de fazer da América uma sociedade mais justa e mais igualitária”. O ex-Presidente admite que se se candidatasse hoje não teria o mesmo programa político de 2008, não só porque “a pandemia virou o mundo do avesso”, mas também porque a América “precisa de mudanças estruturais”.
Por isso, Obama fala da necessidade de aliviar as dívidas dos estudantes e expandir o sistema de saúde que ele próprio instituiu, para que “não seja apenas um direito, mas uma realidade para todos”. Dois temas que sempre estiveram no topo das preocupações de Sanders e que Biden acabou por incorporar no seu programa de candidatura. Por isso, garante Obama, “Joe [Biden] tem o programa mais progressista de sempre de um grande partido”.
Uma expressão que o próprio Joe Biden já tinha usado ao agradecer o apoio de Sanders. “O teu apoio tem um grande significado para mim”, disse, assumindo o compromisso de ser um Presidente que “entrará na história como uma das administrações mais progressistas desde Roosevelt”.
O reconhecimento do ex-Presidente e do ex-vice-presidente agora candidato são a melhor consagração das ideias que Bernie Sanders andou a proclamar desde 2016. Uma plataforma política progressista na corrida à Casa Branca protagonizada por Joe Biden é, afinal, aquilo que Sanders sempre disse ser o seu grande objetivo — mais do que uma candidatura, queria construir um movimento que mudasse a América.
Para já, duas ideias-chave foram repescadas pela candidatura de Biden. Uma no âmbito do ensino: tornar as universidades gratuitas para famílias que ganhem até 125 mil dólares por ano e perdoar parte das dívidas já contraídas pelos estudantes universitários. Outra no âmbito da saúde: baixar a idade de acesso ao sistema de saúde sem encargos dos atuais 65 para 60 anos.
Este esforço de aproximação às ideias de Sanders parece, contudo, não ser ainda suficiente para satisfazer alguns dos setores mais à esquerda nos democratas. Deputadas como Alexandria Ocasio-Cortez e Ilhan Omar, duas das mais conhecidas “esquerdistas” eleitas em 2018 para a Câmara de Representantes, querem mais concessões e não acompanham Sanders no apoio à candidatura de Biden.
“O movimento progressista nunca foi sobre um indivíduo, é sobre ideias”, dizem, na expectativa de que equipas de ambas as campanhas a trabalhar em conjunto acabem por consagrar no programa de Biden o maior número possível de ideias progressistas. “Precisamos de um plano, não só de gestos”, critica Cortez, que defende um serviço nacional de saúde à europeia num país onde todo o sistema assenta em seguros de saúde. Algo que Biden recusou repetidamente durante a campanha, admitindo apenas introduzir melhorias no sistema vigente, conhecido como Obamacare.
Na mensagem de apoio a Biden, Sanders reconheceu abertamente que o ex-vice-presidente não adotará a sua plataforma política, mas realisticamente defende que a introdução de algumas das suas ideias-chave são importantes para garantir a unidade do partido e o empenhamento de todos na campanha de novembro para derrotar Donald Trump.
Por isso, para aqueles que à esquerda manifestam reservas a Joe Biden, o velho senador tem uma expressão simples e direta: irresponsáveis. “Entendo que é irresponsável alguém dizer que discorda de Joe Biden e por isso não se vai envolver na campanha”, acusou. Para além de quaisquer divergências, acima de tudo o que está em causa para Sanders é mesmo derrotar “o Presidente mais perigoso do país na era moderna”.