31 mai, 2016 - 14:44 • Filipe d'Avillez
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Com a reintrodução das 35 horas para a função pública e a discussão sobre a universalização da medida também para o privado, o presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz, Pedro Vaz Patto, traça as preocupações da Igreja a este respeito. O juiz admite que o trabalho também realiza o ser humano, mas sublinha que deve ser dada sempre prioridade à vida familiar.
A questão das 35 horas levanta naturalmente a questão da carga horária no mundo laboral. Trabalha-se de mais?
Tenho conhecimento de pessoas que, de facto, trabalham de mais, mas não é 40 horas nem 35, é muito mais do que isso e muitas vezes até fora do quadro legal, que tem um determinado regime de pagamentos de horas extraordinárias. Isso perturba a vida familiar. Como se costuma dizer, o trabalho é para a pessoa e não a pessoa para o trabalho. Isto é, pessoa inserida no seu ambiente familiar e também na vida comunitária.
A noção do direito ao lazer é uma conquista relativamente recente. Na medida em que afecta a família, este é um assunto que deve preocupar a Igreja?
Deve, sim. É uma conquista recente, mas vem dos primórdios do cristianismo o valor do domingo, como dia dedicado a Deus e também à comunidade, à família, como algo que representa uma ruptura com o ritmo próprio da produção e do consumo, do qual temos de nos libertar. Não porque ele em si seja mau, porque o trabalho também é uma dimensão da realização humana. Não digo que quanto menos trabalharmos melhor, mas também não é quanto mais trabalharmos melhor.
Tem de haver este equilíbrio e a questão do direito ao lazer deve interessar à Igreja, é parte da doutrina oficial da Igreja, pela dimensão da importância que é dada a Deus, mas também tem esta dimensão de protecção da pessoa e da família.
Esta ideia de querer trabalhar cada vez menos, para poder ter mais tempo de lazer, não pode ser também um sinal de uma cultura individualista? Parece que se valoriza cada vez mais o tempo de lazer, mas ao mesmo tempo as pessoas têm cada vez menos filhos, por exemplo.
A questão demográfica passa um pouco por aí. É verdade que entre as medidas que favorecem o incremento da natalidade, um equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar é indispensável, mas mais do que isso penso que a crise demográfica deve ser enfrentada com uma transformação de mentalidade e, precisamente, superando essa mentalidade individualista. São importantes outras medidas políticas e económicas, mas não tenho ilusões de que sejam suficientes.
Depois há a vertente económica. Temos condições para universalizar as 35 horas, como quer, por exemplo, a CGTP?
Não tenho informação que me permita dar uma resposta cabal, mas receio que neste contexto actual isso não seja uma medida favorável à criação de emprego e o emprego deve ser uma prioridade, porque também ele é importante para a vida da família.
Já se sugeriu a questão da partilha do trabalho. Para trabalharem todos, trabalharem menos, mas isso implicaria reduzir os salários e isso no nosso contexto português em que os salários já são baixos é difícil de concretizar.
Na Holanda a generalização do trabalho em "part-time" permitiu e permite combater o desemprego, mas o trabalho em "part-time" também implica uma remuneração menor. Não sei se temos, em Portugal, condições para isso se verificar e a questão da redução do horário de trabalho pode passar por aí.
Ao mesmo tempo que se reivindica menos horas de trabalho, vemos propostas para as creches e escolas ficarem abertas até mais tarde e queixamo-nos que os pais não têm tempo suficiente com os seus filhos. Como é que se resolve este paradoxo?
O trabalho deve ser um instrumento ao serviço da pessoa e por isso também os ritmos do trabalho devem adaptar-se à vida da família – e não o contrário. Aliás, tem de haver uma conciliação recíproca, mas a primazia deve ser dada à vida de família. Em vez de adaptar a vida de família e a relação pais-filhos aos ritmos da empresa ou às necessidades do trabalho, devia ser o contrário, adaptar o funcionamento da empresa às necessidades da família.
Até porque isso é bom para a própria empresa. A pessoa que está plenamente realizada – e isso implica também ter uma vida familiar equilibrada – é capaz também de desempenhar melhor o seu papel do que aquela que só se dedica ao trabalho e nada mais.
Ao mesmo tempo que notamos esta tendência, presta-se cada vez menos noção à ideia do domingo como dia de descanso. Há cada vez menos sítios que estão fechados ao domingo. Isto é também uma questão que preocupa a Igreja?
É importante que haja um dia de descanso comum, precisamente por causa da dimensão comunitária. Nós não somos indivíduos isolados. Temos a nossa família e temos depois a nossa vida de associação, com outras pessoas.
Há quem diga que basta haver um dia de descanso e as pessoas podem escolher, seja domingo ou outro, mas isso pode levar a que numa família cada um descanse durante o seu próprio dia. Mas a vida de família supõe que haja um dia de descanso comum e muitas associações, seja no âmbito da Igreja, associações culturais, desportivas, ou outras, para funcionar têm de se reunir em dias de descanso comum. Isto faz parte daquilo a que se chama a ecologia humana.
Há que proteger o domingo. Poderá haver vantagens, ou não, em abrir serviços ao domingo, isso é uma questão a ser estudada, mas deve haver sempre esta dimensão de ecologia humana, que não deve ser sacrificada à lógica da produtividade, nem puramente à lógica comercial.
Mas há um papel para o Estado aqui ou deve caber às pessoas?
Há quem diga que é uma questão de liberdade, de livre opção, mas no âmbito do trabalho sabemos que para a maior parte dos trabalhadores não é uma escolha, por isso é que há o direito do trabalho. Se não ficaria tudo ao critério da livre escolha, mas para a maior parte dos trabalhadores a alternativa a trabalhar é ficar desempregado e não ter meios de subsistência, nem sempre têm a possibilidade de trabalhar ou não trabalhar ao domingo, é-lhes imposto. Por isso acho que aqui o Estado tem um papel importante, como tem em geral no que diz respeito à lei do trabalho.