17 nov, 2016 - 00:00 • Raquel Abecasis (Renascença) e Vítor Costa (Público)
É urgente resolver o impasse que se criou na Caixa Geral de Depósitos (CGD), apela o presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB). Em entrevista à Renascença e ao “Público”, Fernando Faria de Oliveira diz que a polémica em torno da entrega, ou não, das declarações de rendimento e património dos gestores da Caixa no Tribunal Constitucional está a prejudicar o sector.
Faria de Oliveira diz que a lei aponta no sentido de que as declarações têm de ser entregues e que os administradores da Caixa, independentemente dos acordos que tenham feito, se devem aos “termos da lei”. E apela ao bom senso, boa vontade e transparência através “de uma clara exposição dos motivos que conduziram a esta situação”.
Nesta entrevista, que a Renascença emite esta quinta-feira, depois das 12h00, o líder da APB passa a bola para o lado das empresas: a banca tem liquidez, até em excesso, e quer dar crédito às empresas, mas estas precisam de reduzir o seu nível de endividamento para passar nos critérios de risco de crédito.
Os portugueses devem estar preocupados com a actual situação na Caixa Geral de Depósitos (CGD)?
Todo este ruído acerca da CGD é extremamente negativo. Para além do seu programa de recapitalização, a CGD precisa de estabilidade e precisa de entrar em pleno funcionamento. E este ruído ensurdecedor é profundamente negativo. É tempo de acabar com ele. É tempo de se decidir em definitivo tudo o que eventualmente está pendente. É uma preocupação de todo o sistema e é chegada a hora de pôr um ponto final a todas estas questões.
Parece-lhe normal que a Caixa, uma empresa de capitais 100% públicos, não esteja sob a alçada do Estatuto do Gestor Público?
No final dos anos 1980, início dos anos 90, estive envolvido, enquanto secretário de Estado do Tesouro e das Finanças com o ministro Miguel Cadilhe, na reestruturação do sector empresarial do Estado e sou profundamente sensível a esse tema. Nessa altura surgiu a iniciativa de, dentro do sector empresarial do Estado, distinguir entre empresas públicas, sociedades anónimas de capitais públicos e sociedades anónimas de capitais maioritariamente públicos. E já nessa altura se considerava que o conjunto das empresas do sector empresarial que funcionavam em concorrência deviam ter um estatuto de flexibilidade que lhe permitisse uma plena equiparação à actividade privada.
Quando fui presidente da CGD e a Lei do Orçamento do Estado reforçou a ligação do banco ao Estatuto do Gestor Público, contestei, dentro do que era possível, essa iniciativa. Considerava que era negativo para o funcionamento da instituição. Uma instituição que vive em concorrência precisa de ter os mesmo instrumentos que as empresas do sector privado.
Mas isso é do ponto de vista salarial. Do ponto de vista das declarações que a gestão da Caixa tem de entregar, concorda ou não que devem ser obrigado a cumprir as obrigações declarativas que estão previstas na Lei?
Isso não tem a ver com a característica de ser sociedade anónima de capitais públicos ou de ser empresa pública. São diplomas diferentes, são imposições legais diferentes.
Então os administradores estão obrigados a entregar as declarações?
A interpretação da lei apontará nesse sentido.
E já o deveriam ter feito?
Não quero entrar nem alimentar esta polémica porque sei que houve compromissos entre partes. Não os conheço em detalhe e portanto não posso opinar, em consciência, sobre matérias em que... Vivemos um impasse porque alguma coisa não correu bem, mas sobre isso não me compete opinar.
Não é uma questão de opinião. Esses compromissos de que fala, independentemente da forma que assumiram, vão contra uma lei que está em vigor. Parece-lhe possível e normal que se assumam compromissos que vão contra a lei?
Como lhe disse não conheço os termos em que as negociações entre o Governo e a equipa de gestão foi efectuada e o que é que estava previsto nessa matéria. Portanto, não posso... O que é fundamental e indispensável é terminar com esta matéria.
Como é que se termina com esta matéria? Há uma lei que está em vigor e tem de ser cumprida.
Isso é de competência institucional. Do Governo, em primeiro lugar, resolver o assunto em definitivo. E naturalmente requer uma posição de quem foi convidado, em certas circunstâncias, se adaptar áquilo que poderemos designar que são os termos da lei.
Mas este processo ainda pode demorar algum tempo.
Não pode demorar muito mais tempo. O sistema financeiro e qualquer instituição do sistema financeiro necessita de estabilidade. Este ruído é muito negativo. É muito negativo para a Caixa e é muito negativo para o sector bancário no seu conjunto.
Mesmo que tudo se venha a resolver, esta administração não fica fragilizada?
Há que distinguir claramente entre aquilo que são os deveres de transparência e de integridade e o que é criar climas de desconfiança. Não podemos viver numa sociedade baseada na desconfiança sobre pessoas, sobre entidades. Devemos basear-nos no princípio da confiança e só o devemos perder se houver sérios motivos para o perder. Não devemos desconfiar da seriedade e da boa intenção das pessoas. Negociaram em determinadas condições, saberão porquê e o seu interlocutor também. Não devemos fazer juízos de valor sobre isso. E eu, em princípio, confio nas pessoas.
Mas esses juízos de valor estão instalados na sociedade?
Infelizmente há uma certa tendência para, neste momento, se viver num clima que não é de completa confiança. Temos de retomar um clima em que seja possível a chamada convivência normal e essa passa pela confiança nos outros.
Da forma em que o processo da CGD foi conduzido, e com estes interlocutores, ainda lhe parece seja possível atingir esse clima de confiança? Foi feita uma lei específica para um caso em concreto, mas, mesmo assim, essa mudança legislativa não permitiu acautelar o compromisso particular com os administradores da Caixa. Não temos uma situação em que a desconfiança é legítima?
Uma vez mais aí entram critérios de bom senso, de boa vontade e de transparência. Se isso for conseguido através de uma clara exposição dos motivos que conduziram a esta situação inexplicável, creio que terão condições para isso. Mas é absolutamente necessário que o assunto seja clarificado e a partir daí esquecido.
Esta situação não está a atrasar e prejudicar o plano de recapitalização da CGD?
Espero que não. Este Conselho de Administração está em funções e está seguramente a trabalhar nesse sentido. Tem seguramente trabalho feito.
Não deviam ser públicos os termos do processo de recapitalização negociados em Bruxelas?
Quando era “chairman” da CGD tive experiência directa na negociação do primeiro plano de reestruturação. E são definidas linhas de orientação e princípio, mas depois é necessário discuti-las em detalhe e penso que é o que estará a ocorrer neste momento.
Portanto faz sentido que esse plano ainda não seja do domínio público?
Só os interlocutores directos, o Conselho de Administração e o accionista, quando chegarem oportuno fazer a divulgação, naturalmente fá-lo-ão.
Pela experiência que tem e pelo que é conhecido deste tipo de planos, o da Caixa também vai passar por fecho de balcões, saída de pessoas? Com o clima que está instalado é possível à administração liderar um processo destes?
Todas as instituições do sistema bancário, desde que ocorreu a crise financeira global de 2008/2009, têm tido que desencadear planos de reestruturação, alguns deles até muito duros e muito intensos. Isso faz parte da vida. As instituições bancárias estão a viver hoje um contexto que corresponde a um paradigma radicalmente diferente em todos os domínios. Desde logo no domínio regulatório, mas principalmente no domínio tecnológico em que a revolução é rapidíssima e intensíssima. Obviamente, tudo isso com consequências nos modelos de negócio e nas estruturas dos próprios bancos. É inevitável.
Mas o facto de a Caixa estar a viver neste clima não prejudica também a implementação desse próprio plano?
O sistema bancário nacional tem efectuado na quase generalidade dos bancos um processo de reestruturação muito intenso e reservado, não está permanentemente nos jornais. A actividade bancária é extremamente avessa à exposição ao ruído. Desde sempre, a actividade bancária é uma actividade que se faz recatadamente, reservadamente, criando condições de um clima de confiança e de segurança. Todos estes processos de reestruturação dos nossos bancos têm sido efectuados com sucesso, sem problemas sociais significativos e de uma maneira que tem sido harmoniosa e negociada com sindicatos. Não há nenhuma razão para que isso não continue a acontecer.
Apesar de a Caixa estar em concorrência tem, no entanto, um papel diferente ao nível da aproximação das populações e das regiões menos populosas. Este encerramento de balcões não vai pôr em causa esse papel mais social da CGD?
A CGD, em primeiro lugar, é um banco em concorrência com os outros bancos que deve ser gerido de forma idêntica aos restantes bancos. Naturalmente que a CGD tem de ter a sua estratégia alinhada com a estratégia do accionista.
Mas sendo um banco público a estratégica pode ser exclusivamente a estratégia do lucro?
Não pode deixar de fazer parte integrante dos objectivos da instituição ter rentabilidades positivas. É cada vez mais evidente, depois de tudo o que se passou, a importância dos lucros na solidez e na capacidade das instituições fazerem face a momentos menos favoráveis.