08 fev, 2017 - 09:06 • João Carlos Malta
Volta e meia, a discussão à volta dos conceitos relacionados com o trabalho reacende-se - entre esquerda e direita, entre empresários e trabalhadores, e entre empresas e sindicatos. A entrevista à SIC do gerente da Padaria Portuguesa, Nuno Carvalho, no pico da discussão da redução da Taxa Social Única (TSU), foi o rastilho para na imprensa e nas redes sociais a clivagem voltar a emergir. Esta é uma confrontação que se joga também nos conceitos.
A utilização das palavras “colaborador” e “trabalhador” é sempre motivo de grande celeuma. Do lado sindical, entende-se que retira peso à relação laboral; do lado patronal, garante-se que dá uma imagem mais aproximada da nova realidade nas empresas.
Esta é a perspectiva do administrador da Sonae Luís Reis, ex-líder da Confederação de Serviços de Portugal. Na empresa, trata os parceiros de trabalho como “colegas”, no entanto para fora usa “colaborador”. Porquê? Hesita, mas responde: “Por nenhuma razão em especial”.
Mais tarde, explica-se melhor. Diz que o termo “trabalhador” ganhou uma conotação menos positiva por estar mais ligado a um trabalho manual, a uma fase mais industrial. “É, talvez, hoje menos agradável e o espaço foi sendo ocupado pela palavra ‘colaborador’. Mas são sinónimos”, garante.
Serão mesmo iguais?
A ideia é desfeita pela linguista Maria Antónia Coutinho, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
“Não há palavras iguais. Mesmo as palavras que chamamos sinónimos não são sinónimos, são antes para-sinónimos, quase sinónimos. Quando há duas palavras que têm a mesma função, uma tende a desaparecer”, afirma a docente, acrescentando que, apesar de não ter feito um estudo sobre estas duas palavras, isoladamente e sem o contexto social, cultural e político não podem ser analisadas.
O secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, não quer confusões e separa as águas. Garante que há quem queira passar a ideia de que somos todos “colaboradores”. “Só quando é para as entidades patronais aumentarem os lucros. Mas já não somos para responder às necessidades de quem trabalha”, reforça.
O sindicalista diz que esta relação consubstancia sempre uma oposição, uma luta. É esta uma das razões que levou o especialista em recursos humanos José Bancaleiro, director da Staton Chase, a, progressivamente, deixar de usar a palavra “trabalhador”.
“Ganhou um peso demasiado sindical”, entende. Reconhece razão aos sindicatos quando estes falam de conotações ideológicas duma e doutra palavra, todavia prefere o uso da designação “colaborador”.
Se os sindicatos defendem que “colaborador” desprestigia e não dignifica o trabalho, Bancaleiro não pode discordar mais. “Até estou a dar mais importância. Tratar como colaborador é dar importância”, sublinha.
Questionado se esta oposição de conceitos revela que a luta de classes ainda está bem presente, defende que “já não estamos nessa fase”, ainda assim admite que “existem visões, interesses e objectivos diferentes”.
Mas se “trabalhador” pode ter uma carga ideológica, a sua substituição também poderá ser entendida nesse sentido. Luís Reis afirma que “colaborador” é um conceito “mais moderno e mais despido de crispação e de conflito.”
Mais do que isso, faz uma ligação directa àquilo que as empresas esperam. “Hoje, não se espera de um colaborador que apenas trabalhe. Espera-se que colabore, no sentido que se relacione, no sentido que funcione bem a equipa e com o outro”, enfatiza.
O mesmo especialista diz que quem quer colar a ideia de colaborador à precariedade está a ver mal a questão. “Na cabeça das pessoas que a utilizam, no lado empresarial, está associada a um sentido de maior perenidade e de maior permanência nas funções. Essa colagem é desajustada”, reitera.
Quem está a ganhar esta batalha?
O líder da CGTP não crê que o patronato esteja a ganhar esta guerra de palavras. Arménio Carlos aproveita para reforçar a definição e as diferenças.
“Nunca usaria a palavra ‘colaborador’, o trabalhador é quem vende a força do trabalho e é remunerado pela venda dessa força. Não está a colaborar com o patrão, está a vender a força do trabalho. O patrão compra essa força de trabalho e tem de pagar por ela. Se fosse para colaborar tinha de o fazer no trabalho, mas também na distribuição de lucros e outros benefícios. Não é isso que se verifica”, garante.
Também especialista em análise do discurso, a professora Maria António explica que, ao usar o conceito de colaborador, está-se a “escolher construir uma imagem de pessoas que trabalham em conjunto, que tomam decisões em conjunto, que têm parcerias operacionais de trabalho.”
Não é um ponto de partida benévolo? “Há efeitos e circunstâncias perversas. Uma coisa é o que se diz, é uma forma de construir uma imagem de si próprio. Muitas vezes, a imagem do que é dito não é real porque o colaborador é alguém com um vínculo passageiro”, conclui.
Reestruturação ou despedimento colectivo?
Outra oposição na linguagem entre os dois lados refere-se ao momento em que as empresas terminam os contratos com trabalhadores. Não é raro que as empresas falem de reestruturação e é igualmente comum os sindicatos falarem de um eufemismo que encobre um despedimento colectivo.
Arménio Carlos dá prática à teoria sindical. “As reestruturações que se fazem em Portugal não são para redimensionar a empresa para atingir objectivos. São para reduzir trabalhadores e encerrar mais tarde as empresas”, defende.
O administrador da Sonae admite que “há quem use mal a palavra e a utilize para mascarar um despedimento. Mas isso é uma utilização abusiva. Quando é preciso diminuir o número de pessoas afectas a uma determinada actividade, não há como fugir: ou é redução do quadro ou redução do número de pessoas”, resume.
Luís Reis entende, no entanto, a razão de tantos empresários o fazerem. “A palavra ‘despedimento’ é muito violenta, mas é a que temos. No entanto, despedir não tem de ter essa carga”, diz. Não? “Há uma parte negativa que é inevitável. Uma pessoa tem uma relação de trabalho e vai ter de encontrar outra. Despedir é encontrar uma nova oportunidade de carreira, porque as pessoas não estão felizes. Não estão bem nem satisfeitas. É preciso encontrar a solução e chegar a acordo”, descreve.
José Bancaleiro diz que pelas empresas que passou teve sempre de enfrentar processos de “cessação de contratos”. “Utilizo essa formulação. Quando cesso contratos não despeço. Em 99% das situações é de mútuo acordo. Procurei sempre, enquanto profissional, situações consensuais para que as pessoas saíssem com dignidade. Isto do lado das empresas é uma reestruturação, reorganização, uma libertação. Do outro lado um despedimento”, separa.
Também pensa que a palavra “despedimento” é muito pesada. Mas não é o que é? “É o que é, e temos de as assumir quando é despedimento”. Não é isso que é feito? “As empresas quando fazem um despedimento, é um despedimento ponto. Quando chegam a acordo com as pessoas, não fazem despedimento mas uma cessação por mútuo acordo.”
O trabalhador está de acordo ou fica de acordo porque não tem outra solução? “O que me está a dizer é verdade. A pessoa não quer ir embora, ainda assim é o que vai acontecer. Muitas vezes, a empresa também não queria, mas são circunstâncias da relação e do negócio”, defende.
No meio destas visões antagónicas, Maria Antónia explica que nem sempre é fácil caminhar em terrenos concretos mesmo através dos conceitos. “Não é garantido que haja sempre uma parte má e outra boa, que uma seja dominador e outro dominado”, defende.
Precariedade ou flexibilidade?
Há ainda outro binómio que gera muita discussão e opiniões contrárias: a necessidade imperiosa de que os empresários falam de flexibilizar as relações laborais, sempre com o argumento de que só assim a economia floresce, a que se opõe a visão sindicalista de que qualquer alteração nas relações laborais que torne a relação mais flexível é sinal de precariedade.
É isso que pensa Arménio Carlos: “A flexibilidade cada vez está mais associada a três coisas: despedimentos, redução de indemnizações, precariedade e degradação da qualidade de emprego e também dos rendimentos e diminuição da protecção social.”
José Bancaleiro, empresário do sector dos recursos humanos, diz não perceber o que é que “a palavra ‘precariedade’ quer dizer”.
“Os trabalhadores da Opel na Azambuja eram todos efectivos, nenhum deles era precário. Sabe o que lhes aconteceu? Foram todos despedidos”, sublinha. “A segurança está mais nas competências do trabalhador do que no vínculo. O que hoje manda nas relações laborais é a necessidade que a empresa tem de si e das suas competências do que o vínculo.”
Luís Reis diz que este não é um binómio, é “um contínuo”. “É necessário que haja um mercado de trabalho que seja líquido, mas que simultaneamente regulado. Não podemos ter uma selva. Uma relação de trabalho é fundamental e há elementos como a dignidade humana que têm de ser absolutamente preservados. A economia não se compagina com a ausência de flexibilidade nas relações laborais”, defende.
Palavras ajudam a dominar
A professora da FCSH explica que as palavras “carregam ideologias, num sentido muito amplo”. “Não é fundamentalmente partidária, apesar de ser em alguns casos”.
No entanto, em relação aos que dizem que se estão a encontrar novas palavras para a mesma realidade, contrapõe: “É uma visão fixista da realidade. Tenho algumas reservas de que a realidade seja sempre a mesma. A forma como hoje se põe as questões não é a mesma que no século XX.”
São usadas como forma de dominação? “Pode ser uma forma de dominação, muitas vezes é, mas não podemos ter uma interpretação fechada. O que se torna uma forma de dominação é o uso cristalizado da expressão associada a fins conscientes e a determinadas opções práticas não linguísticas completamente contrárias”, resume.