26 fev, 2017 - 13:11 • José Bastos
Automóveis e camiões sem condutor? Aviões sem pilotos? Entregas por drones? Robôs a servir à mesa nos restaurantes? Telejornais elaborados por algoritmos e sem jornalistas? Um robô a acompanhar idosos na ida à rua? A economia digital vai mudar a sociedade? A resposta a estas questões é afirmativa e o cenário está já ao virar da esquina.
As novas tecnologias da área da robótica e da inteligência levaram a que o Parlamento tivesse promovido esta semana uma conferência para iniciar a reflexão sobre a futura legislação, “Era Digital e Robótica nas Sociedades Contemporâneas”.
A conferência segue-se a um relatório que o Parlamento Europeu enviou, dia 16, à Comissão Europeia pedindo maior legislação sobre o sector da indústria robótica e inteligência artificial.
A eurodeputada relatora do documento, Mady Delvaux-Stehres, mostrou-se preocupada com a relação entre robôs e humanos e propõe uma taxa que compense a perda de emprego a ser aplicada para formar, noutras áreas, os profissionais desempregados.
Até 2025, em menos de oito anos, um em cada três empregos não qualificados terá sido substituído por robôs ou por inteligência artificial, prevê a empresa consultora de tecnologia Garner.
No caso português, a confirmar-se o cálculo, o número de trabalhadores afectados ultrapassará o meio milhão. Como se viverá? Quem pagará a Segurança Social?
É, afinal, bem real o risco de que - nos próximos 20 anos - quem trabalhe, por exemplo, em armazéns ou a conduzir camiões possa ter de ser alvo de políticas que suavizem a eliminação do seu emprego pela automação robótica. Desempregados que podem ser aproveitados em outras áreas. “O importante é manter o entusiasmo pela inovação e evitar o medo da evolução”, diz Bill Gates, o fundador da Microsoft.
Os desafios colocados pela ‘quarta revolução industrial’ já em curso estiveram em debate no Conversas Cruzadas desta semana, com um ângulo convergente e optimista: apesar dos reptos o futuro será mais rico e criativo e a capacidade de emocionar, resolver dilemas ético-morais continuará a estar a reservada a seres humanos não a máquinas.
Carvalho da Silva: “Outra utilização da riqueza criava milhões e milhões de postos de trabalho”
“Estão montadas três visões que nos transportam para cargas de enorme cepticismo em relação ao futuro do trabalho e do emprego”, começa por referir o sociólogo Manuel Carvalho da Silva. Primeiro: a teoria do fim do trabalho em resultado de uma enorme evolução tecnológica. Depois, a teoria do fim do emprego assalariado - e da velha concepção da empresa - pela chamada economia colaborativa, sendo este um segundo aspecto”, afirma.
“Há ainda um terceiro: o da destruição de emprego pela ausência de inovação tecnológica e ganhos de produtividade. Ora bem, para introduzir a questão eu direi que no plano histórico sempre em momentos de grandes transformações tecnológicas - eu não gosto agora da expressão 'quarta revolução industrial’, mas se lá estamos isso pressupõe que já se registaram três - os argumentos estiveram sempre centrados na tese de que a tecnologia ia destruir emprego”, diz o professor da Universidade de Coimbra.
“É verdade que se registaram movimentações e reacções dos povos e dos trabalhadores de grande resistência a levar a grandes situações de tensão. Depois, sempre se constatou que as revoluções tecnológicas tiveram os seus impactos, mas que se criou mais emprego do que aquele que se destruiu”, refere Manuel Carvalho da Silva.
“Outro aspecto: já hoje desde que houvesse uma outra utilização apenas de uma parte relativa da riqueza já existente seria possível criar milhões e milhões de postos de trabalho úteis, qualificados e valorizados. São postos de trabalho para resolver os bloqueios em que a sociedade se encontra do ponto de vista do social, de organização, da resposta aos problemas ambientais e a tantos outros aspectos”, faz notar o sociólogo.
“Ainda mais um ângulo: as taxas elevadas de desemprego e de precariedade - olhemos até para a sociedade mais tecnológica dos Estados Unidos - não têm a sua origem nessas tecnologias. A última observação é a de que a máquina - por mais inovadora tecnologia e inteligência artificial que apresente - terá sempre de ser colocada no prolongamento do homem. A irracionalidade de tentar o contrário, ou seja, o homem no prolongamento da máquina é de um enorme perigo. A partir daqui podemos discutir muito sobre esta matéria”, refere Manuel Carvalho da Silva.
Álvaro Santos Almeida: “Há necessidades enormes na área social, na saúde”
O economista Álvaro Santos Almeida mostra-se optimista e em convergência de pontos de vista com o sociólogo. “Sobre este assunto acho que vou dizer apenas que subscrevo tudo aquilo que Carvalho da Silva disse. O ponto-chave é este: ele foi extremamente feliz quando referiu que esta é a quarta revolução industrial o que significa que houve outras três. Nas outras três o mundo não acabou e não houve qualquer fim do trabalho e, pelo contrário, a economia cresceu e o emprego cresceu”, diz o professor da Universidade do Porto.
“O facto de surgirem novas máquinas e de haver perda de empregos leva a que outros surjam. Como disse, e bem, Carvalho da Silva há necessidades enormes na área social, na área do apoio pessoal, na área dos cuidados de saúde, por exemplo, e, portanto, não faltará emprego. Poderá haver desemprego, e quanto a isso temos de nos preparar”, antecipa Álvaro Santos Almeida.
“Será um período de transição para o qual temos de criar mecanismos de apoio àqueles que estão numa fase da vida em que é difícil adaptarem-se a novos empregos e perderam os anteriores. Mas, em parte, esses mecanismos já existem, sendo preciso desenvolvê-los, mas a mensagem é claramente optimista: quanto mais conseguirmos produzir melhor”, refere o economista.
Luís Aguiar-Conraria: “A revolução tecnológica é boa no longo prazo”
Há sectores onde é muito elevado o potencial de automação o que coloca maior pressão na factura social a pagar no período em que desaparecem velhos empregos e se criam novos postos de trabalho, defende Luís Aguiar-Conraria. “Concordando praticamente com tudo o que foi dito, coloco a tónica mais forte nos custos de transição agora referidos por Álvaro Santos Almeida. Quanto mais tecnologia melhor. É óptimo ter máquinas que substituem o nosso trabalho”, diz o professor de economia da Universidade do Minho.
“Nos anos 30, John Maynard Keynes tinha a previsão de que, por esta altura, as semanas de trabalho seriam, mais ou menos, de 15 horas. Keynes enganou-se na sua previsão como, claro, acertou em muitas outras porque é um dos melhores economistas do século XX, mas por acaso quando vejo a minha profissão se identifico uma componente de tarefas de que não gosto, em rigor, é capaz dessa alínea ter, em média, 10 a 15 horas por semana. Falo de corrigir exames, fazer vigilâncias e tal, porque, de facto, o que faço por prazer - dar aulas - não contando como trabalho, leva a que o meu horário de trabalho semanal seja, então, de facto, de 15 horas como Keynes antecipava”, sustenta Luís Aguiar-Conraria.
“No longo prazo a revolução anunciada é boa. A inovação tecnológica não é muito diferente de, por exemplo, do choque suscitado pelo comércio internacional. No plano do emprego o tipo de consequências a que vamos assistir é semelhante ao que se produziu, há uns anos, no Vale do Ave com a abertura do comércio internacional. Quando Portugal adere à União Europeia e as fronteiras se abrem, quando perdemos protecção comercial, as indústrias do Vale do Ave foram à falência em massa e criou-se ali uma enorme bolsa de desemprego. No longo prazo ficou resolvido o problema? Ficou mais ou menos resolvido. Agora, no curto prazo registaram-se consequências que tiveram de ser enfrentadas”, relembra Luís Aguiar-Conraria.
“O trabalho está no centro da vida dos seres humanos”
Já Manuel Carvalho da Silva defende uma reflexão profunda nas decisões políticas que acompanhem a evolução tecnológica, sem nunca perder de vista a centralidade do elemento humano. “No Vale do Ave - caso que estudei a fundo até por causa de uma tese académica - nós tivemos às vezes quase no mesmo lugar, quase na mesma rua, de um lado uma empresa que foi à falência nessa lógica colocada pelo Luís Aguiar-Conraria e do outro lado da rua outra empresa do mesmo ramo que se manteve e até se ampliou. Portanto, as coisas não são lineares”, diz o sociólogo
“A adopção de novas tecnologias tem de ser acompanhada por decisões políticas, por decisões de concepção da organização da sociedade e por opções de fundo em relação ao emprego e aos tempos de trabalho, etc”, indica Manuel Carvalho da Silva.
“É bom que se levantem todas as questões, mas sem perder de vista que o trabalho está há milénios no centro da vida dos seres humanos”.