07 dez, 2017 - 00:09 • Graça Franco (Renascença) e David Dinis (Público)
“Nunca encontrámos políticas que resolvessem a pobreza nas crianças”, lamenta Farinha Rodrigues, professor universitário, uma das vozes mais reconhecidas na análise da pobreza em Portugal. Entre elogios ao Governo actual, vai deixando alguns avisos: é preciso uma política integrada e não “medidas avulsas”. E era bom ser mais selectivo, para conseguir resultados.
O INE publicou na última semana estatísticas que nos dão conta de uma redução da população em risco de pobreza e exclusão social: menos 20 mil portugueses. Mas ainda temos 2,4 milhões nesta situação. Num artigo que escreveu para o Público, defendeu que as prioridades nas políticas que promovam emprego e crescimento são essenciais, porque não bastam as que se dirigem aos pobres. Que tipo de políticas são essas?
Nós temos uma situação de pobreza e exclusão que nos envergonha. E exige dois tipos de medidas. No curto prazo, medidas que visem atacar os principais aspectos da pobreza. Mas tenho a certeza de que isso não resolverá o problema da pobreza. Esse só se resolverá com medidas estruturais que mudem muito o nosso modelo de crescimento. Os estudos que conheço são unânimes: o principal factor para reduzir a pobreza e exclusão é a educação - englobando o ensino formal e educação para adultos.
Em famílias alargadas, temos ainda 41,4% de crianças pobres. E nas monoparentais são 33% as consideradas em pobreza. Com fome aprende-se?
Claro que não. Nós temos políticas dirigidas a certos grupos: para os idosos, para as crianças. Se em relação aos idosos, nos últimos 20 anos, as políticas conseguiram mitigar muito substancialmente a pobreza, em relação às crianças nunca fomos capazes de encontrar políticas que resolvam esse problema de forma sustentada. Claro que é mais difícil: uma criança é pobre se está numa família pobre, o que significa que temos que saber conjugar medidas directamente relacionadas com as crianças com outras medidas para as famílias onde elas se encontram. Se me perguntar por onde deve começar uma estratégia efectiva de combate à pobreza, claramente é por aí - pelas famílias com crianças.
Isso significa o quê, precisamente?
Faria sentido por exemplo ter medidas específicas para as famílias com crianças. O próprio abono de família (é essa a opção deste Governo) pode ser utilizado nesse sentido, tendo uma componente reforçada de apoio às crianças. Mas, para terminar a questão inicial: um modelo de crescimento diferente pressupõe que nós repensemos como funciona a nossa economia, infelizmente ainda muito assente em baixos salários. O que justifica parte significativa da nossa pobreza.
A taxa de pobreza da população empregada anda pelos 11%. A subida consecutiva do Salário Mínimo Nacional (SMN) não chega para resolver isto?
A proposta do Governo é razoável, é sobretudo de louvar a intenção de se conseguir uma concertação muito alargada. Mas tenho muita dificuldade em discutir o SMN só pelo SMN. Temos várias situações muito preocupantes no nosso mercado de trabalho: a percentagem de trabalhadores que recebe o SMN, a proximidade entre o salário mínimo e salário médio, que é algo muito perigoso em temos de reduzir a eficácia desse instrumento. Acho que devemos ter um crescimento do SMN sustentado, mas preocupa-me muito a média salarial em Portugal.
E a eleição de Mário Centeno para a liderança do Eurogrupo? Vai facilitar outra priorização das políticas de emprego e apoio?
Acho que a eleição já corresponde a alguma mudança de sensibilidade política da Europa relativamente aos últimos anos. Em praticamente todos os países as políticas cegas de austeridade deram maus resultados. Era preciso ser completamente míope (e às vezes são-no) para não reconhecer isso. A capacidade que Mário Centeno terá para alterar as coisas, nomeadamente nesta vertente da pobreza, não me parece que seja preocupação do Eurogrupo...
Mas é especialista em trabalho...
Eu sei. Não há dúvidas que tem sensibilidade acrescida relativamente a estes temas. Se essa sensibilidade se traduzir em orientações concretas do Eurogrupo, óptimo.
Os resultados que o INE mostrou foram por sucesso das políticas de redistribuição deste Governo ou por via do crescimento da economia?
Nem sempre é fácil diferenciar os vários efeitos. Estes resultados confirmam e acentuam uma descida da maior parte dos indicadores que se iniciou em 2014. É evidente que a diminuição do desemprego joga um papel fortíssimo nessa diminuição. Por outro lado, a recuperação dos rendimentos também tem algum sentido. E é importante o retomar de alguma eficácia acrescida das políticas sociais. Um dos aspectos que mais critiquei na austeridade até 2013/2014 foi o paradoxo (uma originalidade portuguesa) de reduzirmos os poucos instrumentos de combate à pobreza quando eles eram mais necessários. A neutralização que se fez do RSI, do rendimento mínimo, foi um contra-senso. Fizemos uma coisa que ficará na história, nos manuais escolares, como exemplo de burrice: anular os poucos estabilizadores de coesão social que tínhamos quando eram mais necessários. E a reposição desses indicadores (ainda que gradual) pelo actual Governo parece-me extremamente positiva.
Há um ano fez um estudo em que dizia isso: que a redução da desigualdade começou em 2014. Mas também dizia que foi o grande aumento de impostos de Vítor Gaspar que compensou os efeitos, da crise e dessas medidas nas políticas sociais. Vê que esta alteração do IRS, lançada agora por este Governo, possa aumentar as desigualdades? E, já agora, consegue justificar como é que o programa português tem sido apontado como o mais positivo na Europa, do ponto de vista das desigualdades?
É uma questão interessante e que tem gerado alguma polémica. Quando analisamos o índice de Gini - o indicador mais usado para medir a desigualdade - o que aconteceu durante o período da troika e com a reforma de Vítor Gaspar? Tivemos durante esse período um forte recuo dos rendimentos que foi profundamente desigual. Entre 2010 e 2014, em média os rendimentos das famílias reduziram-se 11/12%, mas os rendimentos dos 10% mais pobres reduziram-se 25%. Ou seja, este factor teria duas consequências: aumento forte da pobreza e também da desigualdade. O que aconteceu na desigualdade é que este movimento foi de alguma forma contrariado pela reforma fiscal (embora com objectivo de reduzir o défice). Essas medidas aumentaram fortemente a progressividade fiscal e, por essa via, a desigualdade foi mitigada.
Atingiu sobretudo a classe média ou média/alta.
Isso. Até porque os mais pobres não pagam impostos. A desigualdade antes da intervenção do Estado subiu muito, mas a desigualdade depois da intervenção do Estado oscilou muito pouco. Daí dizermos que a reforma de Vítor Gaspar impediu um agravamento maior da desigualdade. Isso leva-nos ao que se passa agora: é verdade que as alterações que este Governo está a fazer, alterando alguns aspectos mais gravosos das políticas de austeridade, pode ter esse efeito: quando se reduz a sobretaxa de IRS ou o complemento extraordinário de solidariedade (que atingia as pensões mais altas), os principais beneficiários são a classe média/alta e as classes superiores. É nesse aspecto que acho que a ligeira redução do índice de Gini em 2016, neste contexto, é ainda mais significativa.
A opção desta maioria foi fazer uma redistribuição mais generalizada, pela reversão de medidas da troika. Era possível ter outras opções, com menos redução das desigualdades? Aumentando menos as pensões mais altas, não dando prioridade à função pública...
Possível seria, mas não podemos isolar alguns aspectos da política. As questões de pobreza e desigualdade fazem parte das preocupações do actual Governo, conjuntamente com outras. A necessidade de conciliar com estímulos ao crescimento, de retomar algum investimento no setor privado implicam alguma combinação.
45% dos actuais desempregados estão em situação de pobreza. Como é que isto se justifica e o que é se pode fazer?
Significa que temos um sinal de alerta, que claramente há um grupo vulnerável e que claramente não se está a fazer o suficiente em relação a esse grupo. Há, por outro lado, um aspecto: à medida que reduzimos a pobreza é plausível que os que ficam já estivessem inicialmente em pior situação. Tivemos simultaneamente um aumento da linha de pobreza - tornar-se pobre tornou-se mais exigente. O que pode explicar parte desse fenómeno, mas não explica o essencial. As políticas de apoio a desempregados merecem uma atenção acrescida das políticas públicas.
A medida do crédito fiscal para os que trabalham, mas não recebem o suficiente sequer para pagar impostos, é urgente? A medida estava no programa do Governo, mas não avançou.
É possível, mas depende da medida concreta. Não sei se será necessariamente o melhor caminho.
O Governo, há um ano, defendeu uma outra ideia: a de estender a condição de recursos a outros apoios sociais, limitando-lhe o acesso para que houvesse mais dinheiro para outras medidas. Faria sentido aplicá-la às pensões mínimas? Ou a outros apoios?
Temos uma experiência triste: a forma que nas políticas de austeridade foi encontrada para reduzir o número de beneficiários de algumas medidas foi mexer na condição de recursos. O que acho que merece reflexão? Quando analisamos o nosso sistema de protecção social, no seu todo, podemos identificar uma taxa de despesas sociais em percentagem do PIB que não é muito diferente da UE. Onde está a grande diferença é o peso que têm, nessas despesas, as pensões do regime contributivo e o espaço muito pequeno ocupado por prestações sociais (com base em condição de recursos) que visam combater a pobreza. É pensar como este nosso mix de transferências sociais deve ser harmonizado, de forma a garantir que quem efectivamente necessita tenha os apoios necessários. Isso implica nós reforçarmos muito as prestações sociais baseadas na condição de recursos e garantir a sua eficiência (que não há pessoas a abusar da medida e que a medida tem resultados). Temos que ser mais selectivos, para alcançar aqueles que efectivamente necessitam. É por isso que, já há mais de 20 anos, aquele artigo que eu e o Miguel Gouveia fizemos sobre as pensões mínimas gerou tanta discussão.
E continua a gerar.
Continua. Porque o que está em causa é qual deve ser a filosofia das nossas prestações sociais de combate à pobreza.
Era um artigo em que dizia que nem todas as pensões mínimas...
... iam para pessoas pobres. Numa condição de insuficiência de recursos, como é a nossa, e fortes restrições orçamentais, eu prefiro canalizar os recursos para quem efectivamente necessita e que podem fazer a diferença, do que medidas genéricas quase universais que têm poucos resultados em termos de combate à pobreza.
Qual seria a medida absolutamente prioritária neste momento?
Para mim, neste momento, era necessário que o combate à pobreza e exclusão social ganhasse uma política integrada - e não ser um conjunto de políticas avulsas. No quadro dessa estratégia, continuo a dizer: combater a situação das crianças e dos jovens em situação de pobreza continua a ser a prioridade essencial.