25 mai, 2019 - 11:05 • Sandra Afonso
O Governo e os reguladores não se entendem quanto à reforma da supervisão financeira. O executivo é acusado de retirar independência e responsabilidades aos supervisores. Concorda?
Acho que, no final, a reforma que for definida e aprovada será seguramente uma reforma de consenso. Tem de ter o consenso entre as diversas autoridades de supervisão. Aliás, o objetivo do projeto é mesmo esse, aumentar a cooperação, aumentar a ligação, melhorar o relacionamento, e isso vai ser cumprido.
Há um tema que me parece relevante, e que eventualmente tenderá a ser mais discutido: como toda a estrutura se vai organizar na ligação com aquilo que são, neste momento, as competências de supervisão que estão em Frankfurt [sede do Banco Central Europeu] e em Bruxelas [sede da Comissão Europeia], num Mecanismo Único de Supervisão e num Mecanismo Único de Resolução. São aspetos fundamentais que têm de ser equacionados e que têm de ser tratados também no âmbito deste projeto, porque a coordenação com estas entidades é fundamental.
Admite, portanto, que ainda haverá alterações no projeto que está em discussão?
Admito que haja. Havendo este tipo de comentários, que são públicos, das autoridades de supervisão, admito que haja aqui algum caminho para introduzir algumas alterações que possam melhorar toda a coordenação e aceitação por todas as entidades daquilo que é o novo projeto.
"Alguns consensos vão ter de se formar [sobre a Reforma da Supervisão]"
Apesar de o Governo ter recusado as críticas?
Ver-se-á. Aliás, a Assembleia da República é um local de discussão e de criação de entendimentos. Alguns consensos vão ter de se formar.
Refere a “resolução” e a “garantia de depósitos” como instrumentos de grande importância. Como entende as alterações na reforma da supervisão financeira, em que a autoridade de resolução passa a decidir as resoluções e a administrar o fundo de garantia de depósito e o sistema de indemnização aos investidores?
O tema da resolução tem de ser tratado de forma muito interligada com o Mecanismo Único de Resolução, porque, efetivamente, as grandes competências de resolução hoje são, enquanto país membro da União Bancária, definidas pelo e associadas ao Mecanismo Único de Resolução. É igualmente importante que se crie, a nível europeu, um sistema europeu de garantia de depósitos. São duas instituições que têm de estar em permanente ligação com a Europa e com a arquitetura de supervisão europeia.
Considera que estamos muito centrados na discussão sobre quem vai decidir o quê a nível nacional quando, no futuro, tudo vai passar pela Europa?
Estou a falar especificamente da banca. Valores mobiliários e seguros não estão ao mesmo nível da integração europeia como as instituições de crédito. A União Bancária, o Mecanismo Único de Supervisão, o Mecanismo Único de Resolução são realidades que existem. O Sistema Europeu de Garantia de Depósitos seguramente existirá algures no tempo. Cada vez mais o sistema bancário nacional vai ser, acima de tudo, um sistema bancário europeu.
E como é que esta realidade se coaduna com a reforma que está a ser gizada?
Admito que aí haja alguma reflexão ainda a fazer, presumo que será feita ao nível da discussão parlamentar. Terá de haver alguma reflexão sobre a forma como esta reforma se articula, justamente, com esta arquitetura europeia de supervisão.
Corremos o risco de aprovar uma reforma de supervisão que, a curto prazo, poderá ficar obsoleta?
Não, isso acho que não.
Fala do “Guia para as avaliações da adequação e idoneidade”, publicado em 2017. Como antigo diretor do departamento de supervisão, como assistiu ao jogo do empurra entre a autoridade dos seguros e o Ministério do Trabalho sobre a avaliação da idoneidade de Tomás Correia, presidente do Montepio?
Não comento.
Sobre o chamado ‘período de nojo’: a reforma da supervisão alarga para dois anos o intervalo entre a saída de um regulador e o seu ingresso numa empresa regulada. Concorda?
Acho que é normal. Eu próprio tive um "período de nojo" quando saí do Banco de Portugal e fui para a instituição onde hoje estou [Caixa Geral de Depósitos]. Se são dois anos, se são seis meses, se é um ano, alguém terá de decidir. Agora, acho que é normal e faz sentido um período de afastamento, se vai de uma entidade de supervisão para uma empresa que foi supervisionada por essa entidade. Durante quanto tempo é discutível, também não há medidas objetivas e ótimas sobre isso.
E faz sentido alargar este prazo?
[encolhe os ombros]
Sobre os chamados Non-Performing Loans (NPL), os créditos em incumprimento, refere que os bancos podem encarar o problema de duas formas: “gestão do tempo” ou “tratamento imediato”. Pode explicar?
Gerir o tempo significa que os bancos vão ao longo do tempo procurando corrigir, recuperar, reestruturar e, no fundo, resolver o problema dos seus créditos em incumprimento, esses NPL, numa perspetiva de continuidade de negócio. Se os bancos quiserem, muito rapidamente, deixar de ter NPL nos balanços, podem, por exemplo, vender em carteiras. Mas se o fizerem, têm de vender com valor inferior, porque o comprador vai exigir taxas de rendibilidade muito superiores às que os bancos têm.
Ou seja, quando os bancos concedem o crédito é um risco inerente a um negócio que está em funcionamento; quando os bancos vendem esses créditos em incumprimento é um risco inerente a um negócio com muitas dificuldades. Portanto, o banco, ao manter e gerir esses créditos, está a manter a rendibilidade associada ao momento da concessão do crédito. Quando vende a um terceiro, é a um preço descontado, porque este exige a rentabilidade inerente ao momento em que está a comprar o crédito, necessariamente com muito mais risco.
Mas prolongar muito tempo a posse desses créditos também implica prejuízos?
Sim, nomeadamente do ponto de vista das imparidades, que se vão constituindo gradualmente. Se o banco tiver a capacidade, ou o cliente no caso do devedor, tiver a capacidade de se reestruturar, de renovar e de se relançar com o negócio, o banco ganhará, porque esses créditos deixam de estar em incumprimento. Se, ao longo do tempo, a entidade devedora degradar ainda mais a sua situação e não conseguir reconstruir o negócio, então as imparidades aumentam sucessivamente.
O tema das imparidades é dinâmico, não se criam e acabou. Vão-se constituindo na medida em que a probabilidade de cobrança daqueles créditos é mais baixa. Quanto mais baixa é a probabilidade de cobrança, mais altas são as imparidades.
Não há uma solução ótima, tem de se avaliar caso a caso.
Não há uma solução ótima. A questão fundamental é ou ter capital imediato que cubra eventuais perdas maiores resultantes de ganhar no tempo ou então gerir de uma forma mais suave e prolongada as necessidades de capital.
Como classifica a atual situação da banca em termos de crédito malparado?
Está muito melhor do que há uns anos, nós estávamos com taxas bastante elevadas. Tivemos uma descida significativa de NPL nos últimos anos e hoje estamos com taxas já muito mais baixas, os bancos continuam a fazer um esforço significativo.
Mas ainda não chega.
Ainda não chega, porque o SSM [Mecanismo Único de Supervisão] definiu 5% como taxa que faz a fronteira entre os bancos com baixos níveis de NPL e os bancos com altos níveis de NPL, os créditos em incumprimento.
Acredito que, em um a dois anos, os bancos portugueses mais significativos poderão estar abaixo ou muito próximo da taxa de 5%, definida pelo SSM.
"O Sistema Europeu de Garantia de Depósitos seguramente existirá algures no tempo. Cada vez mais o sistema bancário nacional vai ser, acima de tudo, um sistema bancário europeu"
As políticas de imparidades eram ou são adequadas? É admissível que os bancos de um país possam atingir níveis de malparado como os que foram alcançados em Portugal? O que é que falhou?
Foram níveis de incumprimento não só em Portugal. A crise da banca foi absolutamente sistémica. Portugal, Espanha, Grécia, Itália, Inglaterra, Estados Unidos... Depois resolvem mais rapidamente ou não.
O que é que aconteceu? Foram cerca de dez anos de crédito até chegar a 60% de crédito sobre depósitos e, de repente, houve aquilo que se chama, em teoria financeira, o "sudden stop credit", uma paragem rápida no crédito, entre 2007 e 2008. O crédito cresceu a taxas entre 10% e 13%, nas áreas imobiliárias quase 20%, desde 2000 a 2007, e depois parou. E quando parou todos os setores entraram em crise.
Podia ter sido impedido com um travão da supervisão a tempo?
Hoje é muito fácil falar. É como a história do totobola à segunda-feira. Hoje diz-se muito que, por exemplo, faltaram medidas de natureza macroprudencial. Aliás, nos EUA fala-se muito nisso, a supervisão macroprudencial é muito recente e é quase consequência desta crise. Hoje tomar-se-iam medidas de natureza macroprudencial que, provavelmente, evitariam o crescimento do crédito durante esses anos. Tivemos o euro, as taxas de juro muito baixas, liquidez excedentária na Europa, bancos a emprestarem dinheiro... Há aqui um conjunto de fatores que levaram a que isso acontecesse.
A tempestade perfeita?
Sim, um bocadinho. O Banco de Portugal, algures, definiu como limite que os bancos deveriam atingir 120% de rácio de empréstimos sobre depósitos. Hoje, os bancos portugueses estão abaixo disso. Mas na altura o sistema estava em 160% ou 150%, portanto a partir daí foi sempre a descer, desde 2010 ou 2011. Era possível evitar? Ninguém pode dizer, não se sabe. Não foi uma situação localizada no país, foi alargada a muitos países, inclusive aos EUA.
Hoje a banca já estaria preparada para uma crise?
Pelo menos estamos muito mais bem preparados. Até porque, na altura os bancos financiavam os empréstimos 60% acima dos depósitos, com fontes de financiamento mais voláteis. Hoje isso não acontece, os rácios de empréstimos sobre depósitos estão abaixo de 100%, bastante equilibrados. A principal fonte de financiamento do crédito são os depósitos, que são por natureza uma fonte estável.
Mas a banca ainda não está preparada para uma crise desta natureza?
O que eu acho é que as condições da banca são hoje completamente diferentes. Todos os bancos estão ótimos? Há sempre bancos melhores e bancos piores. Mas há aspetos fundamentais, por um lado a diminuição substancial dos rácios de dívida sobre depósitos. Os níveis de capitalização são muito superiores, há 12 ou 13 anos era obrigatório 4% de capitais próprios no mínimo, hoje temos 10% a 14%.
Tem estado a falar em rácios. Normalmente os bancos são avaliados em termos de rácios, como capitais próprios sobre passivos. Esta será a melhor forma de avaliar a solidez de um banco?
Hoje, os mecanismos de supervisão avaliam os bancos em quatro grandes dimensões: a solvabilidade do capital, a liquidez, a forma como os bancos são geridos [governação das instituições] e o próprio modelo de negócios. Anualmente são definidos os rácios de capital, que é o que é mais conhecido, mas também são definidas medidas qualitativas, sobre o governo e o modelo de negócios da banca, com recomendações sobre os níveis de risco associados.
Hoje, a análise de supervisão sobre os bancos é muito mais alargada. No passado havia uma grande concentração no capital e na liquidez; hoje o governo, o controlo interno e o negócio são bastante escrutinados pela supervisão. Isto é uma alteração profunda, hoje cada banco tem o seu rácio de capital.
O BCE tem uma divisão de gestão de crises... Esta estrutura falhou em Portugal? Podiam ter sido evitados alguns dos colapsos e perdas?
Podemos sempre especular, mas seriamente não podemos dizer [que falharam]. Nem muito menos eu quero dizer isso. É pura especulação.
Com as startups financeiras, as chamadas fintech, estamos a assistir a uma revolução na banca? Como antecipa que sejam os bancos tradicionais dentro de 20 ou 30 anos?
Vão ser muito diferentes de hoje, seguramente. Aliás, basta ver que os mais novos vão muito pouco aos bancos. Não é verdade que não vão mesmo, mas vão pouco, fisicamente.
O futuro vai ser muito diferente. Não sou capaz de dizer como, não sei se foi o Bill Gates ou o Steve Jobs a dizer que no futuro haverá atividade bancária, mas não existirão bancos. Não sei se será assim, mas vai ser muito diferente. Aliás, as Fintech, que operam à distância, são culturalmente muito diferentes dos bancos tradicionais, trabalham com base na inovação e criam-se com estruturas muito leves, em segmentos de mercado que são mais rentáveis e com menos restrições regulatórias.
O que é que os bancos tradicionais têm? Têm os clientes. Há aqui um "trade-off" que tem de ser equacionado.
Como concorre a banca com as Fintech?
O objetivo é conseguir prestar o nível de serviço adequado à sua base de clientes, de forma a que não seja atraída para outras instituições. O que é que os bancos fazem? Entram no mesmo domínio das fintech, às vezes um pouco atrasados, às vezes ao mesmo tempo. É a forma de se defenderem destes novos operadores. Como será daqui a 20 anos? Ninguém sabe.
Esta concorrência pode conduzir à descida das comissões?
Vai levar a uma situação em que os bancos têm de ser rentáveis. Por exemplo, aqui há dias li num artigo que os bancos em países como os EUA e a Austrália têm taxas de rentabilidade superiores a 12%; na Europa têm entre 5 e 7%.
Como é que conseguem?
Através de pesos regulatórios menos intensos e, muito relevante, por não terem as taxas de juro tão baixas como as nossas. Um banco hoje, português ou europeu, com excesso de liquidez, paga 0,4% ao ano para depositar o seu dinheiro no BCE. Se quiser pagar taxas de depósito aos seus depositantes, paga aos depositantes e paga onde vai depositar.
Estas taxas de juro baixas têm muito a ver com a conjuntura económica e para o negócio bancário é difícil. Não irá ser sempre assim! Quando a situação mudar, os bancos terão outro nível de rendibilidade, mas neste momento é uma situação económica extremamente difícil. As comissões dos bancos portugueses não são superiores às comissões dos outros bancos europeus ou mundiais. Haverá pequenos nichos com diferenças, desde logo nos ATM [miultibanco] não pagamos nada e em muitos países paga-se.
É previsível que continue a redução de trabalhadores na banca? Como imagina o futuro do setor em termos de mercado laboral?
É muito interessante, e sem falar da atividade bancária, nós sempre dissemos que com as inovações vai haver muito desemprego. Hoje, há 20 anos atrás, até em 1900 o Diretor do Departamento de Patentes dos EUA sugeriu o encerramento do departamento porque não havia mais nada para inventar.
"As sociedades mais desenvolvidas, com elevados níveis de inovação, não têm elevados níveis de desemprego, antes pelo contrário"
Estes momentos de inovação, mais ou menos disruptivos, levam sempre a esse tipo de pensamento, de que vai haver muito mais desemprego. A verdade é que, se olharmos para os países mais desenvolvidos, com mais robótica, as taxas de desemprego estão baixíssimas. E não aconteceu, nos últimos 10, 20 anos, neste movimento de grande inovação que vai continuar, um despedimento em massa de pessoas, porque elas reconvertem-se, procuram outras atividades. Depois há mecanismos de defesa, como nós temos: reformas antecipadas para os mais velhos, etc.
Os trabalhadores e a sociedade vão encontrar soluções, como sempre têm encontrado. Hoje, a banca tem menos de metade dos trabalhadores que tinha há 15 anos.
E a tendência será para continuar a diminuir.
Como em muitas outras indústrias. Na indústria automóvel, veja as unidades alemãs e francesas, por exemplo, só vê robôs, não se vê pessoas. É tudo automatizado. Isto é o movimento normal nas sociedades.
A inovação e o aumento da tecnologia levam a que certos setores dispensem trabalhadores, mas há outros que os absorvem. As sociedades mais desenvolvidas, com elevados níveis de inovação, não têm elevados níveis de desemprego, antes pelo contrário. A Alemanha tem níveis de desemprego baixíssimos. Não é a inovação que prejudica o emprego, a inovação favorece o emprego. Mais, a inovação favorece melhor emprego.
Entre o BCE, os reguladores nacionais e os próprios bancos, estão identificados os principais riscos informáticos e de cibersegurança? O setor está preparado para esta ameaça?
Sim. Aliás, esta é uma das grandes preocupações, em permanência, dos reguladores, do BCE. Os reguladores fazem inspeções aos bancos sobre segurança, o risco de cibersegurança está permanentemente presente, os bancos investem milhões de euros anuais em segurança.
Se me perguntar: 'Está tudo perfeito?' Há sempre um risco, por pequeno que ele seja, mas esse é um risco que eu acho que está muito bem tratado por parte do sistema financeiro, muito mais do que as pessoas possam imaginar. Às vezes, os maiores problemas de risco são as pessoas facultarem a terceiros as passwords e as suas credenciais, que estes utilizam. Mas este é um tema de preocupação permanente para os supervisores e para os bancos e é um tema muito bem tratado por todos.