29 jan, 2020 - 23:58 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)
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É membro do conselho consultivo do Banco de Portugal, ex-coordenador do Bloco de Esquerda (BE) e coautor do livro “Os novos donos angolanos de Portugal”. Em entrevista à Renascença e jornal “Público”, Francisco Louçã critica duramente Carlos Costa e Teixeira dos Santos, defende uma “reestruturação profunda” do Banco de Portugal e aponta o dedo ao poder político que criou “um biombo” em torno dos negócios de Isabel dos Santos.
Tem criticado o beneplácito do poder político nos últimos anos em relação a Isabel dos Santos. Coloca ao mesmo nível o Governo de Passos Coelho e de António Costa ou faz alguma diferenciação?
O sistema político português, na maioria dos seus partidos, foi conivente por proximidade ideológica, no caso do PCP, e por entusiasmo nos negócios, no caso do PS (que tinha o MPLA como vice-presidente da Internacional Socialista), no caso do PSD (desde há muito tempo que Morais Sarmento era um dos oradores nos congressos do MPLA e vários ex-ministros dos Negócios Estrangeiros, do PSD, António Monteiro e Martins da Cruz, se aproximaram dos interesses económicos e representaram interesses angolanos nas suas carreiras profissionais pós-Governo) e mais recentemente o CDS.
Mas os governos comportaram-se com intensidades variadas. O Governo de José Sócrates, com Teixeira dos Santos, foi quem impulsionou a venda de parte da Galp ao consórcio Américo Amorim/Isabel dos Santos. Mais tarde, o Governo Passos Coelho faz as privatizações que permitem o reforço ou a entrada de capitais angolanos na banca portuguesa. Recentemente, António Costa, pressionado pelo BCE para haver a separação no BPI entre os interesses do BPI e a sua participação angolana no BFA, favoreceu uma entrada de Isabel dos Santos no BCP, que não veio a concretizar-se. Tornaria Isabel dos Santos e a Sonangol num dos maiores impérios na banca portuguesa.
Essa ligação a Angola foi mais ditada por necessidade económica ou por simpatia política?
É muito difícil pôr só a simpatia política nisto. Max Weber dizia que “os mercados não conhecem a moral”. Creio que os governos portugueses movem-se pouco por simpatias [políticas] mas por grandes interesses económicos.
Também se movem pouco pela moral?
Absolutamente nada! Isso é totalmente indiferente. Era cristalinamente óbvio que o poder financeiro de Isabel dos Santos e da Sonangol era dinheiro manchado pela apropriação indevida. Nada justifica ou permite amnistiar o biombo que foi construído para fingir que estes capitais angolanos não eram o resultado do roubo à população angolana.
Escreveu um livro – com Jorge Costa João Teixeira Lopes – sobre “Os novos donos angolanos de Portugal” (2014) – em que diz o processo de reciclagem da riqueza apropriada pela família de José Eduardo dos Santos e pela elite que o rodeava realizou a maior transformação do capitalismo português. Já falavam em “reciclagem” da riqueza da família ‘reinante’ em Angola. Agora fala-se mesmo numa espécie de lavandaria portuguesa. Quem é que falhou na fiscalização?
Sim. Portugal foi uma lavandaria destes recursos angolanos de que a família Eduardo dos Santos se apropriava e a oligarquia à sua volta, em que figuravam os atuais dirigentes angolanos que depois entraram em rutura com José Eduardo dos Santos, João Lourenço ou Manuel Vicente que foi vice-presidente e durante mais de uma década o chefe da Sonangol. E é ele que está como um dos parceiros da Sonangol China International, que hoje em dia está em tribunal em Hong Kong por variados crimes financeiros dirigidos pelo seu principal acionista, Sam Pa, preso, aliás, na China. Não houve nenhuma deficiência na regulação. A regulação nunca quis ter qualquer interferência nessas matérias porque a deliberação era uma deliberação política, uma escolha estratégica do país. Houve uma escolha deliberada de facilitar a entrada.
De fechar os olhos?
Abrir os olhos! Eles sabiam perfeitamente, acho que foi uma escolha deliberada. Que Durão Barroso vá ao casamento de uma alta figura do regime angolano, que um ex-MNE declare que José Eduardo dos Santos é o novo Mandela de África, o grau de subserviência e degradação e de submissão destes responsáveis políticos, alguns deles por interesse próprio de carreira, outros pela sua visão perante estes capitais, atingiu um nível de degradação... Teixeira dos Santos, que foi o ministro das Finanças que nacionalizou o BPN, foi também quem assinou com a troika um compromisso da sua venda em poucos meses, que é concretizado pelo Governo de Passos Coelho. E quando o BPN é absorvido pelo BIC, torna-se presidente do EuroBic. Esta proximidade é intensíssima.
Como é possível que Teixeira dos Santos permaneça ainda como presidente do EuroBic?
O Luanda Leaks foi revelado há apenas dez dias. O banco esteve à beira do colapso nas horas seguintes a estas revelações. Procurou proteger-se, rompendo relações comerciais e Isabel dos Santos foi forçada a vender a sua parte. Que não tenha cumprido regras elementares na verificação de transferências como aquelas que terão sido feitas para o Dubai é uma penalização que cai sobre o banco e sobre a sua administração e pela qual Teixeira dos Santos tem que responder.
Mas o Banco de Portugal (BdP) ainda não agiu.
Não é evidente se agiu ou não. Não há é ainda consequências públicas de ter agido. De qualquer forma, tem que tomar posição sobre esse tipo de transferências e deve fazê-lo antes da nova assembleia geral de acionistas do EuroBic, que será em março. O mandato de Teixeira dos Santos terminou em dezembro, foi prologando até à primeira assembleia geral. É impossível que continue.
Este silêncio do BdP sobre o EuroBic deixa os cidadãos tranquilos?
O BdP está muito atrapalhado. Em qualquer caso, sem exceção das crises bancárias e da criminalidade financeira que foi revelada em alguns bancos portugueses, e não foram poucos, percebeu-se que o BdP não agiu ou agiu mal ou não soube responder perante as informações que já lhe tinham chegado. Reagiu tarde no caso BPN, reagiu tarde no caso do BCP, no caso do BES e, no caso do EuroBic, há um relatório de 2015 que assinala algumas das deficiências que se vieram a agravar e há uma inspeção desde outubro que deveria ter sinalizado o risco deste tipo de operações que sabemos que ocorreram no dia em que Isabel dos Santos é demitida da Sonangol.
Há três anos que faz parte do conselho consultivo do Banco de Portugal. Consegue hoje perceber melhor porque falha o Banco de Portugal?
O conselho consultivo é um órgão que reúne uma vez por ano para apreciar as contas agregadas do banco. Não tem uma intervenção nem qualquer capacidade de fiscalização sobre o dia-a-dia da atividade do BdP.
O que sei é como os reguladores se têm armado da convicção de que a regulação é inútil. Com Greenspan na reserva federal americana instalou-se a doutrina espalhada por todos os bancos centrais, incluindo o BCE e o BdP, que o mercado é a forma de garantir o equilíbrio do sistema financeiro e a regulação é excessiva e prejudicial. Por isso, não houve competência acumulada, técnicos suficientes, informação razoável e só perante a casa a arder é que se chamaram alguns bombeiros com um penico.
"Rui Pinto deve ser libertado. Não tem nenhum sentido a prisão preventiva, esta espécie de vingança"
O BdP e Carlos Costa também contribuíram para o biombo de que falava em torno dos negócios de Isabel dos Santos?
Sim. O BdP não agiu no caso do EuroBic e o BdP e outras autoridades que deviam vigiar as grandes transferências de fundos...
A unidade anti-corrução da PJ...
A PJ tem, para o combate ao crime económico, uma chafarica. Não tem a estrutura que deveria ter na dimensão, na capacidade de investigação, no profissionalismo. Tem pessoas muito capazes, mas não está ao nível da complexidade destes fenómenos em que todos os dias se inventam novos mecanismos e novos produtos financeiros e formas de transferência de capitais. Enquanto não se reconstituir aquilo que era a norma de grande parte do séc. XX, que era o Estado receber um reporte e ter a capacidade de agir perante a suspeita de qualquer movimento de transferência internacional de capitais que possa ser produto de um crime, haverá sempre meios para se desenvolverem casos como os que estamos a perceber com os Luanda Leaks.
Ainda sobre o BdP, é um problema de filosofia ou da pessoa?
Carlos Costa tem uma longa experiência no BdP. Teve suficientes contextos em que verificou a insuficiência, a incapacidade, ou os erros estruturais do mecanismo de regulação. A responsabilidade deve-lhe ser assacada. O BdP mudou alguns procedimentos nos dois últimos anos, mas não há, hoje, no BdP, no Ministério das Finanças ou na PJ um conjunto de estruturas suficientemente adequado para responder ao crime financeiro. Estão a anos-luz da sofisticação, velocidade e complexidade do tipo de apoios que tem o crime financeiro. O BdP deve ser profundamente reestruturado para poder ter a resposta para esta ameaça.
Que outras leis será preciso mudar?
O mais importante é começar pelo princípio. As transferências de capitais devem ser conhecidas. No dia em que houver controlo sobre as transferências internacionais de capitais e não houver segredo bancário perante o combate ao crime, ou seja, não houver offshores e outro tipo de mecanismos de suporte e facilitação, então começou o combate ao crime económico. A Comissão Europeia foi dirigida por Jean-Claude Juncker durante 10 anos, que era primeiro-ministro do Luxemburgo quando incentivou o Luxemburgo Leaks, um pagamento de favor para transformar o país num offshore. As principais offshore do mundo são do Reino Unido.
Barack Obama na campanha presidencial dizia: “Eu hei de ir às ilhas Caimão e fechar aquele prédio onde estão 50 mil empresas registadas”. Na Madeira, tínhamos um andar de 100 metros quadrados onde estavam mil empresas registadas. O sistema político que tem suportado este tipo de mecanismo viu-o como uma vantagem. Que Teixeira dos Santos possa ser presidente do EuroBic é um retrato da forma como aquele ex-ministro entendeu que uma oportunidade de carreira estava acima da sua obrigação perante o sistema financeiro, o seu país e a credibilidade da democracia, do sistema bancário e a estabilidade de uma economia que se deve basear na confiança nos depósitos.
Rui Pinto é o quê: um justiceiro, um criminoso, um herói...
Nem um herói, nem um vilão. Simplificá-lo a categorias morais é excessivo. É um hacker que divulgou informações substanciais e decisivas para a verificação judicial e democrática no caso de Angola. Já o tinha feito no caso do futebol e isso é um serviço à democracia.
Será julgado por acusações de ter entrado em correspondência privada, que prezo muito, mas reconheço que, tudo o que sejam contributos para o conhecimento e permitam uma investigação que siga as regras judiciais, é um avanço.
Choca-me que o Fisco português, ao contrário do Fisco espanhol, não tenha usado informações disponíveis publicamente para obrigar jogadores, treinadores e agentes do futebol a responder perante os seus crimes fiscais. A justiça espanhola já recuperou 42 milhões de imposto devido, Cristiano Ronaldo pagou, Mourinho pagou e outros, e ainda bem. Se a informação é pública, nenhuma autoridade judicial pode ignorá-la. Parece haver uma reação mais rápida da PGR em relação a Angola do que houve em relação ao futebol. Além disso, devo dizer que Rui Pinto deve ser libertado. Não tem nenhum sentido a prisão preventiva, esta espécie de vingança neste contexto.