16 jul, 2021 - 11:00 • Sandra Afonso
Investigador do impacto da tecnologia e da Inteligência Artificial no contexto laboral e na sociedade, o economista britânico Daniel Susskind não tem dúvidas de que a automação é atualmente responsável pela maior transformação a que assistimos no trabalho. É o que diz em entrevista à Renascença.
A pandemia acelerou o que muitos até podiam considerar inimaginável, mas esta mudança cultural está instalada e não haverá retorno ao modelo pré-pandemia, garante também este rofessor da Universidade de Oxford. A grande dúvida, agora, é perceber que impacto terá no emprego o aumento da velocidade na automação, quando estiver resolvida a crise pandémica. Sobretudo, quando as empresas trocarem os apoios à manutenção dos postos de trabalho pelos incentivos à automação.
Daniel Susskind já escreveu dois livros sobre este tema: “O Futuro das Profissões” e, o mais recente, “Um Mundo Sem Trabalho” (Ed Ideias de Ler), onde defende que não depender de um ordenado não tem de ser uma tragédia, pode ser sinónimo de progresso e liberdade pessoal. Mas é necessário preparar os trabalhadores para esta revolução tecnológica e nem todos estão a cumprir, nomeadamente, ao nível do ensino.
Com a automação, haverá trabalho para todos?
Quem espera encontrar no meu livro, "Um Mundo Sem Trabalho", um Big Bang tecnológico dramático em que acabam sem trabalho, vão ficar desapontados. Não penso que isso irá acontecer. O que me preocupa é um problema gradual mas não menos sério: à medida que avançamos no século XXI, mais pessoas sentem-se incapazes de contribuir de forma económica para a sociedade, como esperavam fazer no século anterior.
Como é que a tecnologia e a Inteligência Artificial estão a mudar o trabalho?
É neste momento um dos maiores fatores de mudança, senão o mais importante, no trabalho, e continuará a ser no futuro. Todos os dias ouvimos histórias de sistemas e máquinas que estão a desempenhar tarefas e atividades que até há pouco tempo acreditávamos que só os humanos podiam fazer: diagnósticos médicos, conduzir carros, redigir contratos legais, projetar prédios, compor música e escrever notícias. Para a maioria o emprego é a fonte principal de rendimento e esta é a grande pergunta dos nossos tempos.
Quais são as profissões que mais vão sentir a mudança?
Uma das coisas pouco saudáveis que fazemos quando pensamos no futuro do trabalho, que de certa forma disfarça esta tecnologia disruptiva no mercado de trabalho, é a tendência para falarmos nas diferenças entre o tipo de profissões. Falamos de advogados, médicos, professores, contabilistas, arquitetos e outros, e perguntamos qual destas profissões corre mais riscos com a automação? Nos próximos anos, será difícil que qualquer destas profissões desapareça. É muito mais provável uma alteração significativa do tipo de tarefas e atividades exigidas nestes empregos, mas não haverá mão-de-obra qualificada suficiente para manter todos empregados. Não estou preocupado com o desaparecimento de determinadas profissões, mas que o trabalho mude ao ponto de deixar de ser acessível a uma parte dos trabalhadores e não haver procura suficiente para manter todos empregados e bem pagos.
A pandemia acelerou a automação? Que impacto está a ter na forma como trabalhamos?
A interação entre a pandemia e a automação tem sido importante. Tem reforçado a necessidade de tomarmos este desafio de forma mais séria. A ameaça da automação aumentou, não diminuiu. Atualmente, em muitas partes do mundo, as economias estão em recessão. Uma das características é que quando a economia abranda, a automação pode acelerar. Por outro lado, a pandemia criou um novo incentivo à automação do trabalho, porque as máquinas não apanham o vírus, não ficam doentes, não têm de ser isoladas, não contagiam os colegas ou clientes nem faltam ao trabalho.
Um terceiro fator para levar a automação mais a sério, é a mudança cultural. Temos sido forçados a usar tecnologia em formas que seriam inimagináveis antes: telemedicina, chamadas virtuais, ensino à distância, tudo isto passou a ser a norma. Até a pandemia passar, todas as decisões vão parecer muito menos radicais do que seriam antes da covid-19, antes desta enorme experiência tecnológica. Destruiu muito do preconceito que existia para com a tecnologia e acelerou a automação.
Como disse, "as máquinas não apanham o vírus". Mas este isolamento obrigatório não sublinhou também a importância do contacto humano nos serviços?
Em alguns casos, sim. Há áreas em que valorizamos a interação humana e realmente sentimos falta desse toque pessoal. Mas, ao mesmo tempo, também nos mostrou outras áreas em que pensávamos que a interação era indispensável e que, afinal, não é. Por exemplo, a atividade médica. Em 2015 escrevi um livro sobre "O futuro das profissões", em que analiso a profissão médica. Até recentemente, a vasta maioria das consultas era feita presencialmente, os médicos diziam-me que não era possível dar aconselhamento médico à distância. No entanto, nos últimos meses a maioria das interações tem sido virtual e, afinal, a presença não é assim tão importante como era assumido. Muitos pacientes resistem à ideia, mas é possível medicina à distância. E vamos assistir a esta transformação noutras áreas.
Vamos ter um antes e um depois desta pandemia no trabalho, nada vai ficar igual?
Penso que é muito improvável voltarmos ao modelo de trabalho pré-Covid. E a razão é muito simples e não é motivo para pessimismos. Durante a pandemia temos sido forçados a participar de forma massiva num esquema piloto não solicitado nem planeado, mas também incontornável, de utilização da tecnologia no local de trabalho, de forma mais generalizada. À semelhança de qualquer experiência ou ensaio piloto, vai haver coisas espetaculares e coisas que vamos querer abandonar logo que possível, vamos ter sucessos e lições sobre como podemos trabalhar de forma diferente, mais produtiva e eficiente, mesmo depois do fim da pandemia ou quando for possível regressar à vida pré-pandemia.
Temos de olhar também para a outra face da moeda. Esta rápida digitalização das empresas aumenta a desigualdade?
Não penso que seja coincidência que hoje exista mais preocupação com a desigualdade, exatamente ao mesmo tempo que aumentam as preocupações com a automação. Os dois problemas estão bastante relacionados. Os dois derivam do desenvolvimento tecnológico. A tecnologia pode diminuir a desigualdade na sociedade mas, ao mesmo tempo, empurra-nos para um mundo onde pode não haver suficientes empregos bem remunerados para todos.
Falou dos salários. Que impacto terão estas alterações nas remunerações?
Se olharmos para a economia como uma tarte, ela está dividida em duas fatias, a que vai para os detentores do capital, na forma de renda, e a que é entregue aos trabalhadores, o salário. Como é dividida a fatia dos trabalhadores explica parte da desigualdade. O que vemos no mundo é que a fatia dos trabalhadores é dividida de forma desigual. Por outro lado, a parte que é destinada a quem trabalha também tem diminuído. Para piorar tudo, a fatia destinada ao capital, ainda é distribuída de forma menos equitativa do que a dos trabalhadores.
Fala em dois tipos de desemprego, o tecnológico friccional e o estrutural. Pode explicar?
O desafio dos próximos 10 anos prende-se com facto de existir trabalho suficiente mas, por inúmeras razões, as pessoas não podem assumir essas funções. Isso é o que eu chamo desemprego tecnológico friccional. Há um segundo problema, que eu chamo de desemprego tecnológico estrutural, em que simplesmente não existem empregos suficientes. Os dois problemas são provocados pela tecnologia mas, exigem respostas diferentes.
Por vezes ficamos com a ideia de que, simplesmente, não há empregos suficientes. Esse é o desemprego estrutural. Mas, neste momento, há trabalho para fazer, mas por várias razões muitos não o podem fazer. Este é o desemprego friccional. Porque não conseguem trabalhar? Há três grandes motivos: a maioria das pessoas não tem as habilidades e capacidades certas; não vivem no local onde o trabalho foi criado; estão dispostos a ficar desempregados, para proteger a identidade.
A médio prazo, os governos vão começar a levantar os apoios à economia. Que consequências terá no trabalho?
Vai ser tremendamente difícil e acertar no "timing" e na escala das alterações é muito importante. A minha preocupação é pensar no regresso dos incentivos à automação, os apoios da União Europeia para automatizar o trabalho. Temo este momento. Esses incentivos têm sido controlados durante a pandemia, através das diferentes medidas adotadas em todo o mundo para encorajar os empregadores a manter os postos de trabalho. No Reino Unido, por exemplo, o Estado pagou 80% do ordenado a um terço dos trabalhadores. O Incentivo para substituir os trabalhadores por máquinas ficou suspenso.
O desemprego pode disparar?
Não. Mas a pandemia mostrou a vantagem em automatizar o trabalho feito pelas pessoas. Porque as máquinas não vão apanhar um vírus, não vão ficar doentes, não vão faltar ao trabalho. Neste momento, esses apoios estão condicionados, na sequência das medidas governamentais que visam manter os postos de trabalho. À medida que forem sendo levantadas, como é inevitável que aconteça, esse incentivo à automação será libertado. Quais serão as consequências? Não sei. Há muita incerteza, mas é algo a que devemos estar muito atentos: o desafio da automação nos próximos anos.
Que conselhos dá aos trabalhadores e empregadores?
Há dois desafios. No curto prazo, é aguentar, este tem sido um período horrível para muitas pessoas, com muitas dificuldades. Mas embora o desafio da pandemia vá passar, o da automação veio para ficar. No que diz respeito à automação, só existem duas decisões possíveis: ou são o tipo de pessoas que querem competir com os sistemas e máquinas, que fazem o que eles não conseguem; ou são as pessoas que desenham, constroem e montam estes sistemas e máquinas. O desafio para muitos, e em particular instituições de ensino, é que não estão a preparar as pessoas para nenhuma destas alternativas. Pelo contrário, estão a prepará-las para atividades de rotina, que as máquinas já fazem. Penso que é a abordagem errada.
Qual será o futuro do trabalho?
Há claramente muita incerteza sobre o futuro, sobretudo neste momento. Mas a pandemia, de certo modo, deu-nos um vislumbre do que nos espera. O mundo tem menos trabalho, não por causa da automação ou porque os robôs ficaram com os empregos, mas porque este vírus dizimou completamente a procura, que sustentava tantos postos de trabalho. As medidas para conter a pandemia, acabaram por piorar a situação económica.
Os desafios com que temos sido confrontados nesta pandemia são exatamente aqueles que têm sido apontados por quem se preocupa com a automação. Pessoas como eu. A minha esperança é que os últimos 12 a 18 meses sirvam de lição, sobre o que correu bem e o que falhou, para respondermos melhor ao desafio da tecnologia, que nos espera no século XXI.