15 dez, 2021 - 19:17 • Filipe d'Avillez , Beatriz Lopes
Falta vontade política e colaboração para implementar a transição energética, considera António Costa e Silva.
O pai do documento estratégico que está por detrás do Plano de Recuperação e Resiliência esteve esta quarta-feira presente na conferência dos 20 anos da ADENE, a agência da energia portuguesa, e conversou com a Renascença sobre os desafios, as vantagens e a urgência da transição energética em Portugal.
Que desafios é que Portugal vai enfrentar para atingir esta transição energética de que tanto se fala?
Penso que os desafios são enormes e estão relacionados com a deterioração que estamos a verificar do sistema climático do planeta. Isso é incontornável, temos o desaparecimento das calotes de gelo quer no Ártico quer na Antártida – o gelo é um estabilizador do clima da Terra e se desaparece torna o aquecimento dos oceanos incontornável – temos tudo o que se está a passar nos três metros da camada superficial do mar, onde deixámos acumular energia que quando se liberta para a atmosfera, segundo mecanismos que os cientistas não conhecem, conduzem aos fenómenos climáticos extremos como tufões, ciclones, inundações e tempestades, como temos verificado, temos toda a situação que tem a ver com o permafrost, o solo gelado que cobre a tundra ártica que está a aquecer e pode libertar cerca de 1.5 biliões de toneladas de carbono orgânico, e atenção que 1.5 biliões é o dobro do carbono que hoje temos na atmosfera. Se isso acontecer o nosso planeta pode tornar-se irrespirável.
É por isso que sou das pessoas que defende que estamos perante uma década decisiva, temos de mudar, mas não é fácil. A transição energética é muito complexa, os sistemas energéticos, os mercados, são sistemas complexos e temos de gerir a transição de modo a causar o mínimo de tumultos. Por isso é que sou a favor de uma taxa universal de carbono, acho que esse é o caminho para todos os países. Essa taxa deve financiar fundos nesses países para auxiliar os trabalhadores que perdem emprego, as populações mais vulneráveis, aqueles que são atingidos pela transição.
Não se pode fazer de forma alguma aquilo que o Presidente Macron fez em França, que é aumentar intempestivamente o preço dos combustíveis, penalizando muitos setores da classe média e da classe média baixa, com toda a revolta que isso ocasionou. Esta mudança só pode ser possível com as pessoas, pondo as pessoas no centro da economia.
Nós temos as tecnologias, temos as condições, falta é vontade política, falta agregação, falta sabedoria nas políticas públicas para gerir um conjunto de mecanismos que facilitem essa transição.
Disse na sua intervenção que se não admitirmos que temos de mudar vamos bater com a cabeça na parede...
Não tenho dúvida absolutamente nenhuma. É só ver, eu sou um apaixonado pelo nosso planeta. O nosso planeta tem variáveis críticas que são decisivas. Os cientistas codificaram o que chamam os nove limites do sistema terrestre, um deles é a biodiversidade, que é o nosso seguro de vida neste planeta. Se ler o livro da Elizabeth Colbert, "A Sexta Extinção", a sexta extinção de espécies em massa do planeta está a ocorrer. Atenção que as outras cinco ocorreram antes de espécie humana, nem sequer estávamos cá. A última foi há 66 milhões de anos, quando um grande meteorito embateu na península do Iucatão, no México, e conduziu à extinção dos dinossauros e de muitas outras espécies. Estamos a assistir a essa extinção em massa hoje e os dados que a Elizabeth Colbert dá são incontornáveis, um ritmo crescente de extinção de espécies anfíbias no mundo: já vimos desaparecer um terço dos recifes de coral, um terço de todas as raias e tubarões, um terço dos moluscos de água doce, um quarto dos mamíferos, um quinto dos répteis e um sexto das aves.
O vírus é um grande alerta. Se deixamos que a biodiversidade se extinga os vírus vão cada vez mais ter com a espécie humana e vão tornar muito insuportável a vida no planeta.
Outro fator é a subida da temperatura, o aumento do nível do mar, e atenção que Portugal é dos países mais flagelados. Nos últimos três mil anos o nosso sistema costeiro era estável do ponto de vista geodinâmico, tinha um comportamento regressivo em termos geológicos, portanto havia a tendência do litoral se expandir para o oceano. O que é que aconteceu? A partir da última década do século passado houve uma mudança abrupta no comportamento do nosso sistema costeiro que está hoje a funcionar num comportamento transgressivo. Com a erosão crescente dos 950 quilómetros de costa 25% estão em erosão, como se vê na Figueira da Foz, em Aveiro, nas zonas estuarinas do Tejo, do Sado, da Ria Formosa, e é nesta faixa litoral que vive 75% da população portuguesa e é responsável por 80% do PIB do país. Ao mesmo tempo temos desertificação no interior do país, já no Alentejo, em certas zonas do Norte do Algarve e, portanto, temos de repensar tudo, mudar o nosso comportamento, mudar a matriz energética, repensar o território.
Atenção que todo o território é importante, o papel das cidades médias é decisivo para o futuro, porque é nelas que vamos ter novas âncoras de desenvolvimento, temos de descentralizar o crescimento, e é por isso que a resposta que as empresas e o sistema tecnológico deu, em termos das agendas mobilizadoras do PRR, é um vislumbre deste futuro que podemos atingir com mais tecnologia, mais conhecimento e sobretudo mudar o nosso paradigma mental.
O que nos perde muito em Portugal é que funcionamos em silos, não falamos uns com os outros, somos especialistas em lutas autofágicas, guerras de alecrim e manjerona, somos um país de egos muito insuflados, precisamos é de convergência, agregação, respeitando as nossas diferenças, respeitando o outro, mas tendo grandes plataformas de empenhamento coletivo para a mudança.
É o responsável pelo PRR. Como é que Portugal está a caminhar para atingir a neutralidade carbónica em 2050?
O país tem feito o caminho que é assinalável. Se olhar para o início deste século a nossa matriz energética dependia em 89% do exterior, com base nos combustíveis fósseis. Hoje a dependência é de cerca de 72%, portanto já fizemos esse caminho. Não é tudo, não é suficiente, temos de fazer muito mais.
O país apostou também no cluster das energias renováveis e foi uma aposta bem-sucedida. Os preços da energia eólica e celular hoje são altamente competitivos, são energias do futuro, e o país vai ter de continuar a fazer esse caminho, mas tem de reformar o seu mercado de eletricidade e energia, os mercados que existem foram concebidos para os anos 90, quando foi a liberalização, estamos a ver fenómenos novos, desde as tecnologias, a digitalização das próprias industrias de energia, a criação de comunidades energéticas, a produção descentralizada, a figura do consumidor que é também produtor de energia, enfim, tudo isso são novas figuras que têm de ser acomodadas em ligação com as redes elétricas inteligentes, com a sensorização dos sistemas, otimização do consumo, com uma nova mentalidade que aposte também na eficiência energética.
A eficiência energética é revolução que os americanos chamam dos megawatts de energia que não consumimos e de que não precisamos e nós continuamos a ser a civilização ou a sociedade do desperdício. Desperdiçamos ainda cerca de 30% da energia, é uma média na Europa, também em Portugal, e portanto a eficiência energética tem de ser assumida também como um fator e depois temos toda a pressão das novas gerações, que estão muito sensíveis às questões ambientais e à mudança climática e não podemos expropriar o futuro das novas gerações, temos de mudar o comportamento, mudar o sistema e ter políticas públicas sábias, consistentes, que façam essa mudança. Penso que isso é possível, porque este é um momento transformador.
Mas essas políticas públicas de que fala, em termos concretos estamos a caminhar nesse sentido?
Temos já um conjunto de políticas públicas que são eficazes. O encerramento da central de carvão do Pego é um grande sinal, Portugal é um dos países europeus que mais tem apostado nesta área. Agora é preciso qualificar os trabalhadores que foram atingidos por isso. É preciso ter muita atenção aos setores mais vulneráveis da população.
Há já essa garantia...
Esperemos que sim. Eu não sou o responsável direto pelo PRR, eu fiz a pedido do Sr. Primeiro-ministro, o documento da visão estratégica e o PRR é um sucedâneo disso, mas penso que o país tem de fazer esse caminho, e esse caminho não depende de A, B ou C, depende de todos nós, porque é o futuro de todos nós que está em jogo, incluindo o futuro das próximas gerações e é muito triste quando no país vemos a situação de muitos jovens que não têm sequer oportunidades de desenvolver a sua carreira, o seu talento. Temos de sair um pouco dos estrangulamentos que cerceiam o desenvolvimento da economia portuguesa, apostar em mais tecnologia, mais conhecimento, e é por isso que isto das agendas mobilizadoras, se for bem feito, pode ser um programa transformador.
E qual seria o segundo passo essencial a tomar?
O segundo passo está relacionado com as propostas feitas pelas empresas de sistema científico e tecnológico, para tudo o que é o hub de Sines, com base no hidrogénio para alimentar a fileira dos fertilizantes químicos, o hidrogénio para ser a base de um novo sistema de produção de metanol, que pode ser uma das grandes energias do futuro, o hidrogénio também como capacidade de armazenamento e como competidor na fileira da mobilidade.
Depois temos de olhar para todas as nossas cidades, ter cidades muito mais inteligentes, em que haja gestão integrada de tudo, de pessoas, carros, tudo o que era energia, resíduos, água, fazer a gestão integrada, apostar muito nas técnicas mais atuais que são os sistemas de inteligência artificial e as máquinas que aprendem, porque eles tratam grandes conjuntos de dados e constroem uma espécie de gémeos digitais de sistemas complexos, identificam os constrangimentos e isto pode ser transformador.
E aí não teríamos o mesmo desafio de colocar em risco mais empregos?
Pelo contrário, todas estas áreas e estas tecnologias, e é por isso que me bato por elas, exigem pessoas qualificadas, engenheiros, vão abrir muitas oportunidades para os jovens. Não se esqueça que já temos em Portugal cerca de cinco unicórnios, startups que se afirmaram, muitas delas têm um capital de risco envolvido que são já grandes investidores.
O capital de risco é outra grande fonte de financiamento da mudança, porque começou na Califórnia, eles controlavam cerca de 2% dos ativos do mundo, mas sete das dez maiores empresas hoje no mundo de capitalização bolsista vieram daí, e essas sociedades de capital de risco estão a espalhar-se sobretudo para a Europa e um bocado também para a Ásia e só comparando com dez anos atrás são mais 600 mil milhões de dólares que estão hoje disponíveis. E quais são as apostas deles? É nas energias renováveis, nas tecnologias de inteligência artificial aplicada à indústria, nas plataformas eletrónicas e é por aí que podemos avançar. O próprio ciberespaço pode duplicar a economia, e portanto com os novos talentos, a nova geração e novas ideias podemos fazer um caminho transformador, mas temos que acreditar mais em nós próprios
Em termos de investimento o PRR já prevê quanto para isto?
Para o setor, para as agendas mobilizadoras o PRR previa cerca de mil milhões de euros. O que é que aconteceu? Estava-se à espera de 10 a 15 grandes consórcios e apareceram 144, com investimento de cerca de 15 mil milhões de euros.
Acho isto assinável, é sinal que a sociedade está viva, as empresas, o sistema tecnológico e científico, portanto destas 144 já foram selecionadas cerca de 64, já houve uma apresentação pública em Matosinhos, mas também o investimento previsto destas 64 é de 10 mil milhões de euros, e o que eu defendo, e penso que o primeiro-ministro está em completa consonância com isso e já o afirmou, é que os projetos que têm mérito, todos devem ser apoiados.
Portanto temos de ir buscar os 2.3 mil milhões de euros que estão cativados na Comissão Europeia e que podemos usar em termos de empréstimos e temos de ver como é que se vai redesenhar o envelope e o que vai ser agora revisto e temos de ir buscar no PT2030, ou noutras, mas é uma oportunidade transformadora, porque as crises são frequentes nas histórias dos países, mas estas transformações fundamentais são raras. Podemos fazê-la agora.