04 nov, 2022 - 12:23 • Daniela Espírito Santo (texto e fotos)
A palavra "metaverso" pode estar na moda, mas o fenómeno começou no início do milénio. Philip Rosedale, fundador do velhinho Second Life, veio à Web Summit relembrar isso mesmo e mostrar ao mundo o que aprendeu com a plataforma de realidade virtual, já com 20 anos.
Para Rosedale, um dos principais problemas com a aposta de Mark Zuckerberg no metaverso prende-se com o seu modelo de negócio, que replica o que já acontece nas redes sociais: publicidade. O utilizador não é um consumidor, é um produto; entretê-lo não é o enfoque, mas apenas uma maneira de gerar lucro com anúncios.
"Começámos a desenvolver o Second Life em 1999, antes de a publicidade ser bem sucedida [na Internet]. Por isso, o lucro da empresa assenta nos utilizadores. Conseguimos dinheiro com pequenas taxas e com hospedagem. Quem tem um espaço paga uma taxa."
O Second Life é, no que ao dinheiro diz respeito, uma espécie de senhorio que cobra uma forma de IMI a quem quiser lá ter terrenos. Com isso, garante Rosedale, consegue "mais dinheiro por utilizador do que o Facebook ou o Youtube".
"É possível ter um bom negócio sem publicidade", ressalva o especialista da plataforma, que já se tornou numa espécie de cidade virtual "do tamanho de Los Angeles", com o mesmo número de habitantes há vários anos (cerca de três milhões) e onde não há espaço - ou vontade - para anúncios.
Rosedale participou num debate sobre a palavra do momento com Herman Narula, CEO da Improbable, uma empresa que cria soluções tecnológicas para quem quer criar metaversos.
O autor do livro "Virtual Society - The Metaverse And The New Frontiers Of Human Experience" (que versa sobre sociedades virtuais e olha para o metaverso como uma nova fronteira para a experiência humana) também defendeu, na mesma conversa, que a publicidade não é solução para monetizar esta futura realidade e ofereceu uma solução menos "tóxica".
"A maior pergunta aqui é: qual é a oportunidade financeira disto? Para mim, ela passa pela moda, pelo desporto e pela propriedade. As pessoas gastariam facilmente dinheiro para conhecer os seus jogadores preferidos ou comprar merchandise do seu clube. É uma maneira mais saudável de criar valor", diz, defendendo que a venda de produtos virtuais é "a forma mais saudável de monetizar a Internet".
Web Summit 2022
A Web Summit deste ano debruça-se detalhadamente s(...)
Essa compra online de itens virtuais pode ajudar também o ambiente, acredita Herman.
"Se conseguíssemos que 10% do dinheiro gasto atualmente em consumismo de 'plástico' passasse a ser aplicado em produtos online era uma grande melhoria para o planeta. Já não há mundo real suficiente para todos nós."
Herman dá um exemplo muito prático do uso que pode ser feito destas novas realidades, não para substituir o mundo real, mas para o aprimorar e até para eliminar clivagens sócio-económicas.
"Se gostares de críquete e estiveres na Índia, tens poucas hipóteses de assistir a alguns dos jogos mais importantes no estádio. Um dos benefícios da realidade virtual passa por permitir à audiência experimentar alguma coisa que jamais conseguiria 'normalmente'. A chave é aprimorar em vez de substituir. Podemos desenvolver um mundo mais real que o mundo real... será que devíamos? Queremos dar mais vida às pessoas, mais opções", reforça.
Philip Rosedale concorda e relembra que muitos vivem, de facto, no Second Life há décadas, não porque se querem alhear da realidade, mas porque a plataforma lhes permite viver de uma maneira que não conseguem no mundo real.
"Há quem lá viva por razões sensíveis e positivas. Por exemplo: podes ter uma deficiência motora e usar o Second Life para andar. Ser mais velho e usar o Second Life para dançar. Pessoas a viver em ambientes rurais, que não se cruzam com muita gente no seu dia-a-dia, podem ter acesso a mais pessoas assim."
É impossível falar de metaverso hoje em dia sem falar de Mark Zuckerberg, criador do Facebook, que mudou o nome da empresa para Meta recentemente e tem feito bandeira da sua aposta neste negócio.
Com o enorme alarido surgem muitas críticas, que foram replicadas no painel desta sexta-feira na Web Summit e extrapoladas com novas questões que vão muito além da monetização do metaverso. Entre elas, fará sentido limitar o acesso ao metaverso aos óculos de realidade virtual? Tanto Herman como Philip não acreditam que essa seja a chave para trazer este novo mundo de possibilidades ao utilizador comum.
"Há problemas nos conjuntos de aparelhos de realidade virtual (VR) que não podem ser ultrapassados. A tua vontade de usar um set de VR é tanta quanto a tua vontade de estar vendado numa sala desconhecida. É desconfortável ter uma coisa na cara que te impeça de ver o mundo real. Isso estraga tudo", explica Philip Rosedale que, durante muitos anos, explorou este mercado, sem grande sucesso.
O "uncanny valley", já mencionado pelo criador da Reface em entrevista à Renascença, também precisa de ser ultrapassado. "É um problema básico: por que razão não nos sentimos confortáveis a falar uns com os outros como avatares? Ninguém tem ainda a resposta para isto..."
Para além dos muitos problemas e das poucas soluções, a Meta também não será, certamente, a única 'casa' deste fenómeno, defende Herman.
"Não é provável que o metaverso seja só um sítio, no futuro."
O jovem especialista consegue imaginar-se como feiticeiro num metaverso de Harry Potter e a desatar aos tiros noutro de Call of Duty, mas não acredita que esses dois mundos se complementem e habitem o mesmo espaço. Philip corrobora, defendendo que existirão "espaços comuns, maiores" e outros de nicho, mas que, no final, o que vai "tornar os espaços reais será a presença dos outros".
O sentido de comunidade vai ser cada vez mais importante neste admirável novo mundo. O Second Life de Rosedale é disso exemplo, ou não tivesse a experiência de manter pessoas felizes no mesmo espaço há vinte anos, sem problemas de maior.
"O segredo passa por deixar as pessoas criarem comunidades fortes, que se organizam entre si e se auto governam, mas sem regras totalmente descentralizadas. A anarquia não funciona no mundo virtual... funciona tão mal como funciona no mundo real."
As respostas aos desafios do metaverso terão de ser, por isso, definidas pelas pessoas e não por uma única empresa. "O controlo tem de ser definido pelas pessoas que trazem o valor para estas realidades. Não dá para construir um metaverso de outra forma, pois ninguém vai investir num universo que pode mudar de regras a qualquer altura", salienta Herman, que não acredita que o metaverso venha a ser propriedade de um monopólio.
"Dizer que o Facebook está a criar o metaverso deturpa a ideia do que o metaverso é", diz Herman, que critica, igualmente, o enfoque de Zuckerberg em cenários de escritório. "Há tanta coisa que podes fazer num metaverso... Por que raio irias querer participar numa reunião de Zoom lá?", questiona. "Eles estão focados em experiências que não são interessantes para as pessoas."
Finalmente, e ao contrário do que defende o criador da Reface, Herman não acredita que o hiperrealismo vá ser a norma nos metaversos do futuro.
"Podes ser tanta coisa... por que raio vais ser uma cópia de ti próprio?"