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Sandra Pereira, investigadora do ISCTE

PRR. 26 mil casas construídas até 2026? “Tenho dificuldade em acreditar em milagres”

16 fev, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta

“A taxa de execução do PRR é preocupante”, considera Sandra Pereira, especialista no setor da habitação. A investigadora também diz que não são as 700 mil casas vazias que vão resolver o problema do mercado.

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Até setembro do ano passado, as quatro vertentes do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a habitação tinham uma execução inferior a 4%. Estes números levam a investigadora do ISCTE Sandra Pereira a levantar muitas dúvidas quanto ao objetivo final de mais do que duplicar o parque habitacional do Estado, passando das atuais 120 mil para cerca de 300 mil casas.

“Tenho dificuldade em acreditar em milagres. A taxa de execução do PRR é preocupante”, diz Sandra Pereira.

Os números são do Portal de Transparência do Governo e mostram que, no programa de apoio ao acesso à habitação, que tem como objetivo construir 26 mil casas até 2026, foram executados 46 milhões de euros de um total de 1,2 mil milhões de euros.

É o equivalente a 3,8%, muito longe da meta de quem, em média, e só neste programa, se propunha a construir uma média de cinco mil casas por ano.

As outras três vertentes − fundos para o alojamento estudantil a custos acessíveis, a bolsa nacional de alojamento temporário e o parque público de habitação a custos acessíveis − têm taxas de execução entre os 0,5% e os 2,7%.

A execução dos fundos do PRR tem, aliás, sido motivo de agitação política com informações de que o primeiro-ministro, António Costa, foi chamado duas vezes numa semana ao Palácio de Belém para dar justificações ao Presidente da República.

É com este quadro que, esta quinta-feira, o Governo se reúne para um Conselho de Ministros dedicado à habitação e em que são esperadas novidades a serem anunciadas pela ministra Marina Gonçalves.

Estes dados, segundo a professora do ISCTE, têm data de publicação de 22 de setembro, sendo os mais recentes disponíveis.

“Parece-me que deveria haver uma preocupação de uma monitorização muitíssimo mais em tempo real da execução do PRR, porque neste caso passaram cerca de seis meses. Deveríamos ter uma monitorização de dois em dois meses”, concretiza.

A dificuldade em comprar casa atinge dois grupos em específico: os jovens que se querem autonomizar e as famílias que estão no mercado de arrendamento − que, no entender de Sandra Pereira, se pautam por uma “instabilidade muito grande”.

Crise chegou à classe média e tornou-se visível

E se o problema em conseguir comprar casa sempre esteve presente no dia a dia de muitos portugueses, porque é que agora é tão audível?

“O enorme crescimento dos preços relativamente aos salários começa a afetar largos segmentos da população, não apenas os jovens”, começa por explicar a investigadora.

Mas há outra razão: “Há grupos sociais com uma voz muitíssimo mais forte e com um peso político e influência mediática muito mais fortes. É o que transforma a questão da habitação num tema central político.”

No entanto, Sandra Pereira ressalva que este não é um problema português, ele alarga-se a todas as cidades que são destinos turísticos.

Muitas vezes, é dito que é a pouca presença do Estado no mercado da habitação que leva a que tenha dificuldades em intervir. A investigadora do ISCTE discorda e defende que o que reduz a capacidade do setor público é o facto de o Estado depender “do investimento imobiliário e do turismo”.

“Do ponto de vista económico, esse é o problema, a que acresce uma dinâmica internacional muito forte a que Portugal sozinho não consegue condicionar”, explica.

Ou seja, a especialista entende que as dinâmicas do setor da habitação são supranacionais, nomeadamente a nível europeu. “Enquanto não houver uma homogeneização, por exemplo, fiscal, a nível dos benefícios fiscais na Europa, isso vai ser muito difícil”, concretiza.

Solução não é dar benefícios a promotores imobiliários

Em relação à forma como se pode ajudar a resolver o problema, e aos benefícios fiscais que venham a ser dados a promotores imobiliários para a construção de casas a colocar no mercado sob custos controlados, a investigadora pensa que são um contrassenso.

“Francamente, duvido que tenha algum efeito. Não podemos pensar numa lógica de ‘wishfull thinking’. Pensar que os promotores imobiliários alguma vez vão ter aqui uma lógica solidariedade ou de contributo para a redução dos preços... não é esse o seu racional, não são essas as suas motivações”, avalia.

Mas Sandra Pereira põe noutro espectro a questão da compra de imóveis por estrangeiros. Não acha que a proibição resolvesse o problema, no entanto, afirma que “sabemos que os benefícios fiscais a estrangeiros são um fator que contribui para o aumento dos preços” também nesse setor.

E aqui mais uma vez diz que o atual estado das coisas só se justifica com “a dependência do Governo e a dependência do Estado português relativamente a este investimento e a insistência numa estratégia económica”.

60 casas públicas por ano entre 2015 e 2019

A habitação social vale 2% de todo o edificado em Portugal. A falta de aposta neste segmento em Portugal, que compara mal com o resto da Europa, tem segundo Sandra Pereira um contexto histórico que a explica. Depois do esforço feito no pós-25 de abril, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo neoliberalismo em termos internacionais e o decréscimo de peso dos estados providência.

No entanto, se olharmos para os dados da última década, entre 2010 e 2019 construíram-se em Portugal 1.700 casas públicas, sendo que se olharmos para os cinco anos desse período, a média anual foi de 60 casas.

A aposta do estado no setor da habitação tem sido, ao longo dos anos, muito marcada pela bonificação dos juros do crédito à habitação em detrimento da construção social. Entre 1987 e 2011, representou 73% do investimento do Estado.

“Tenho muitas dúvidas em dizer que tenha sido uma política completamente errada, porque não sei qual seria a capacidade de construção pública por parte do Estado”, diz Sandra Pereira.

Em relação às cerca de 700 mil casas vazias em Portugal, de acordo com o INE com base no último Censos, em 2021, a investigadora não acredita que mudassem o mercado em Portugal.

“Acho um raciocínio um bocado ingénuo ou demagógico. Os censos, de onde esse número sai, face a uma realidade como a atual, que tem uma multiplicidade enorme e uma mudança acelerada, não é, parece-me a mim, o indicador mais fiável sobre esta realidade.”

A investigadora diz que deve ser um número a ter em conta, mas não o valor central na elaboração de políticas de habitação. “Não é por aí. Se vamos estar à espera [das casas devolutas], não vamos a lado nenhum.”

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