06 mar, 2022 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
“Pagar imposto para fazer caridade não soa bem”. O reparo é do presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, D. José Traquina, em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia.
O bispo de Santarém refere que “uma casa que a Igreja tenha ao serviço dos pobres, se não houver um entendimento com os serviços estatais, tem de pagar imposto”.
Numa altura em que Portugal prepara o acolhimento de refugiados da Ucrânia, D. José Traquina apela “a um bom entendimento, porque o nosso gosto de estar é de lealdade e cooperação”.
O responsável não tem dúvidas da solidariedade nacional para com a Ucrânia e sublinha a preocupação da Igreja Católica com a pobreza: “por muito que se faça na ajuda aos pobres a sociedade não consegue resolver o problema da carência de muitas pessoas em Portugal”.
O prelado deixa ainda uma outra preocupação com as repercussões que o aumento do salário mínimo tem nas instituições sociais. O bispo considera que “as pessoas ganham pouco”, mas assegura que “as instituições e as empresas não podem pagar mais”, por isso pede “equilíbrio”.
No momento em que falamos há cerca de um milhão de refugiados da Ucrânia e sabemos das suas dificuldades em chegar a locais de abrigo. É fundamental, como sugeriu o Papa, criar corredores humanitários?
Sim, obviamente, pedimos que se possa chegar às pessoas onde elas se encontram, que haja esses corredores humanitários, até para que os apoios cheguem. É uma preocupação grande. Espero que as Cáritas locais também possam ter essa possibilidade de se aproximar de quem precisa.
Sente haver a coordenação necessária na ajuda que vai sendo disponibilizada e anunciada em Portugal?
A coordenação que estamos a fazer, em termos de Cáritas Portuguesa, é com as duas Cáritas ucranianas – a de rito latino e a de rito greco-católico – e também com a da Moldávia, Roménia, Polónia, para que o nosso apoio lhes possa chegar. A Cáritas Europa e a Cáritas Internacional estão a corrente do que é feito.
"Uma casa que a Igreja tenha ao serviço dos pobres, se não houver um entendimento com os serviços estatais, tem de pagar imposto"
E a ligação às autoridades nacionais, com o Governo português? Está a ser conseguida?
Sim, aí é mais fácil essa coordenação. A Cáritas Portuguesa lançou uma campanha para a Ucrânia, que teve de ser autorizada pelo Ministério da Administração Interna, portanto, o Governo tem conhecimento da totalidade dessa campanha.
A Igreja Católica em Portugal acionou de imediato os mecanismos ao seu dispor para ajudar a população, vítima da guerra, e nesta Quarta-feira de Cinzas, simbolicamente, a Cáritas arrancou mesmo com essa campanha, que vai decorrer até 30 de março. São sinais significativos?
São. Quarta-feira de Cinzas foi o dia que o Papa quis salientar, como importante, para os católicos se encontrarem na oração e em jejum, na solidariedade e em prece pelo povo ucraniano.
A Cáritas considerou, e muito bem, inserir nesse contexto o lançamento de uma campanha a favor da Ucrânia. Foi feito de uma forma muito simples, com um texto da Palavra de Deus como fonte de bem e de inspiração para o bem que Deus quer que se faça, através das pessoas. Nós somos corresponsáveis por um desígnio de Deus, que quer que o bem aconteça. Essa é a nossa vocação e missão.
Esta campanha poderá prolongar-se para lá de dia 30?
Para já, tem uma autorização até final do mês, a partir daí far-se-á de acordo com as autorizações, que têm de ser pedidas. Não sabemos qual é o desfecho, até onde vai a necessidade. Pode ser para os países vizinhos, imediatamente, mas eventualmente para alguns ucranianos em Portugal, também. Aí já entramos em rede com as Cáritas diocesanas, para fazer esse apoio. Tudo isto tem de ser pensado e avaliado semana a semana, de acordo com o desenvolvimento da situação na Ucrânia.
Esta guerra pode gerar cinco milhões de refugiados, isso obrigará a uma onda solidária robusta. Até onde vai a disponibilidade da Igreja e das estruturas da Igreja portuguesa para acolher?
Eu estou convencido que, perante a necessidade, os portugueses são generosos. Não gostam apenas de uma generosidade no vazio, quando há credibilidade, informação, quando veem a necessidade, os portugueses são generosos, no seu conjunto.
Lembro-me com agrado do que se passou em 2004, quando foi o tsunami, na Ásia: Portugal apoiou, através da Cáritas, o Sri Lanka. É muito curioso que, nesse apoio, fomos dos países europeus que mais ajudou, esse auxílio fez com que, 10 anos, viessem a Portugal um bispo e um padre, agradecer a iniciativa, informando que outros países da Europa, nomeadamente, sabendo da generosidade dos portugueses, acabaram por aumentar a sua oferta. Na verdade, a generosidade foi grande, com essa ajuda foram construídas 500 habitações para pessoas que ficaram sem casa.
E a experiência da Igreja Católica ao nível do acolhimento não poderia ser aproveitada de uma outra forma?
Pode, de acordo com as necessidades. A nossa maior experiência, em termos de acolhimento, aconteceu em 1974-75, com o regresso dos portugueses dos países que eram, então, províncias ultramarinas. Foram cerca de 500 mil pessoas que regressaram, foram recebidos, embora não nas melhores condições – porque não estávamos preparados para tal.
Penso, que de acordo com as necessidades e capacidades, se alargará a boa vontade dos portugueses, das instituições que temos, para acolher. Gostamos de acolher com as melhores condições, mas às vezes, quando a necessidade é muita, não as temos. Entre ficar na rua ou ter algumas condições, é melhor ter essas condições.
Não sente que, por vezes, essa capacidade, esse “background” que a Igreja Católica tem, não é devidamente aproveitado?
A Igreja Católica teve alguma dificuldade, nos últimos tempos, para ter espaços preparados para acolhimento. Isso resulta, considero eu, do relacionamento com o Estado. Uma casa que a Igreja tenha ao serviço dos pobres, se não houver um entendimento com os serviços estatais, tem de pagar imposto. Ora, estando nós a fazer um ato de caridade com uma família pobre, uma pessoa estrangeira, seja quem for, termos de pagar sobre isso e ainda ajudar nas despesas da própria casa… isso não está bem.
Isto diz respeito, nomeadamente, ao que em Portugal se chama o “património dos pobres”. Ele está em nome de muitas paróquias, onde se encontram essas casas, mas tem sido difícil convencer as autoridades de que estas devem ser isentas de imposto, porque estão cedidas a famílias pobres. Pagar imposto para se fazer caridade não soa bem.
Se isto fosse considerado, a capacidade e a boa vontade, o gosto de ter espaços de acolhimento aumentariam. Esse é também um apelo que fica, para um bom entendimento, porque o nosso gosto de estar é de lealdade e cooperação. É isso que queremos fazer.
É uma luta para manter com o próximo Governo?
Sim, entenda-se: não quer dizer que não se possam ceder os espaços disponíveis para algumas pessoas viverem. Mas reconheçamos – e tivemos essa experiência em 1975 – que a certa altura viverem muitas famílias, várias famílias, num espaço que não está preparado para elas, o ambiente pode degradar-se, não é o melhor.
O ideal é que estas situações não se prolonguem no tempo, é isso?
Exatamente. Há situações de guerra, de conflito, em que são dadas respostas, mas são provisórias, para as pessoas não ficarem na rua. Depois tem de se ajudar a criar respostas mais comuns, de melhor instalação das famílias.
"As pessoas ganham pouco e as instituições e as empresas não podem pagar mais. Este equilíbrio tem que ser estudado"
Falava ainda há pouco das migrações da Ásia. Nós tivemos durante a pandemia um caso infeliz, com trabalhadores agrícolas em Odemira. As confederações patronais estão disponíveis para integrar profissionalmente os refugiados ucranianos. Corremos de alguma forma o risco de voltar a esbarrar com situações como a que vivemos em Odemira?
Eu espero que não e, por isso, aquela observação que eu disse que os ucranianos que venham e sobretudo que tenham cá ucranianos que falem a sua língua, isso é importante, é também uma defesa. Porque trata-se de defender as pessoas. E tanto quanto sei, dessas pessoas que ficaram mal-acondicionadas em Portugal têm entre eles e as empresas onde trabalham, empresas intermediárias. E essas empresas intermediárias é que é preciso saber quem são e o que é estão a realizar.
Não há desculpa para que as pessoas estejam em Portugal e não sejam cuidadas e recebidas com as justas condições a que têm direito. Embora nesta matéria é preciso também reconhecer e algumas pessoas portuguesas gostam de ouvir também, nós temos um problema não só daquelas pessoas que veem de fora, mas também dos próprios portugueses. Estamos preocupados com o que se passa em Portugal, nomeadamente em relação ao rendimento das pessoas.
Nós não estamos preocupados apenas com os migrantes e com aqueles que têm necessidades emergentes, como é o caso da Ucrânia. Também estamos preocupados porque estamos a verificar que por muito que se faça na ajuda aos pobres a sociedade portuguesa não consegue resolver o problema da carência de muitas pessoas em Portugal. Portanto, é preciso aqui um desígnio diferente, é preciso uma política diferente, é preciso um olhar diferente para esta realidade da sociedade portuguesa para que ela seja mais equilibrada economicamente.
Este mês vamos celebrar a Semana Nacional da Cáritas Portuguesa, já num cenário em que a pandemia parece abrandar. Na sua mensagem, D. José Traquina faz eco da preocupação acerca da sustentabilidade das respostas, que tem sido manifestada por vários responsáveis. Há ainda portas que se podem fechar?
Podem fechar-se se a Segurança Social não corresponder às necessidades económicas dessas instituições. E algumas poderão fechar. Aliás eu devo dizer que no princípio de janeiro, na passagem de ano, eu estava preocupado porque eu ouvia das instituições essa dificuldade. Com o aumento do ordenado mínimo, se o Governo não se chegasse à frente para corresponder às instituições, as instituições muitas não iam conseguir pagar. E, portanto, esse é um problema. As pessoas ganham pouco e as instituições e as empresas não podem pagar mais. Portanto, este equilíbrio tem que ser estudado por quem sabe e quem pode e quem o pode equilibrar.
E esse problema pode agudizar-se até porque existe a intenção de aumentos significativos do salário mínimo nos próximos anos?
Acho bem. Nós temos um ordenado mínimo que é metade do ordenado mínimo em França. Estamos na mesma Europa, estamos com a mesma moeda, portanto porque é que é só metade da França? Pode ser mais. Mas é preciso que quem paga os vencimentos possa fazê-lo. Não basta nós estarmos a reivindicar o aumento se não há condições do outro lado para pagar.
Eu sou testemunha. Muitas instituições não tinham possibilidade de pagar os ordenados se a Segurança Social não tivesse olhado imediatamente para o problema logo em janeiro. Parece que para já a situação está resolvida, está assegurada, mas esse problema estava colocado em cima da mesa.
Olhando para o que tem sido a atualidade dos últimos meses antes da guerra pensa que já é possível avaliar todas as consequências sociais e económicas da pandemia ou ainda haverá muitas situações que se vão agravar no futuro próximo?
Vamos ver como é que vai ser este ano. De facto, depois de dois anos de pandemia só nos faltava agora esta preocupação com uma guerra que ninguém quer. Não sabemos como é que vai ser a avaliação do ano de 2022, ainda está a decorrer, mas é preciso reconhecer que logo em 2020 no ano do início da pandemia aparecerem - além dos apoios que a Cáritas em Portugal já dava a pessoas e famílias - surgiram mais oito mil casos de carência. E este é um crescendo que se vai equilibrando ao tempo que vão aparecendo soluções.
De facto, estas coisas têm um impacto e exigem um reforço de boa vontade e de ação. E, portanto, a preocupação é que a pandemia levou à falência de várias empresas e há pouco tempo já se contavam cerca de 13 mil empresas que foram à falência. Foi um número que me ficou de ouvido. E isto tem consequências para quem é o dono das empresas e consequências para quem trabalhava. E foram naturalmente pequenas e médias empresas que sofreram esse embate. Ora isto é preocupante.
Portanto, vamos ver qual é a capacidade das pessoas que ficaram nessas situações de resolver a sua dificuldade e conseguirem naturalmente avançar. É bom saber que temos muitas empresas à procura de gente para trabalhar e é bom saber que nesse aspeto até a própria vinda de estrangeiros para Portugal se torna um bem. Mas, evidentemente que a vinda de estrangeiros, ucranianos ou outros não pode ser uma situação de exploração, e portanto, tudo isto nos preocupa.
Porque a Cáritas, a sua função é apoiar na emergência, mas também promover a ação social no que diz respeito à observação. Aliás, a Cáritas tem um observatório social que tem esta responsabilidade de olhar a sociedade e também dar o seu parecer sobre a realidade para que as coisas possam melhorar. Portanto é outra forma de ajudar. Temos estado a colaborar, e a Cáritas tem apoiado no seu editorial livros, publicações de autores, académicos que promovem estudos sobre a realidade social. A Cáritas tem apoiado a publicação desses livros porque são de interesse para o conhecimento e para o estudo da realidade.