27 mar, 2022 - 09:30 • Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Foi mais difícil ser capelão durante a pandemia, admite o padre Fernando Sampaio, que assegura assistência religiosa no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, o coordenador nacional das Capelanias Hospitalares reconhece o esforço meritório dos profissionais de saúde neste período, mas lamenta os excessos que houve no isolamento dos doentes.
Lembra que todos têm direito a assistência religiosa, e que quem presta este serviço tem de se formar para “saber escutar de forma empática”, porque isso “não se aprende no curso de Teologia”. No país, entre público e privado, há nesta altura cerca de 120 capelães.
Como responsável pela Pastoral da Saúde na diocese de Lisboa fala, ainda, das apostas que é preciso fazer para atrair mais voluntários, e pôr os vários grupos que existem nas paróquias a trabalhar mais em rede.
Conversamos a propósito da Semana Diocesana da Saúde, que o Patriarcado de Lisboa vai assinalar, de 2 a 7 de abril, com o tema “Doente na paróquia: presença e proximidade”. Como é que a Pastoral da Saúde tem marcado presença ao nível das paróquias?
Vai marcando presença através dos diversos grupos que existem nas paróquias. Evidentemente que as paróquias são ativas, e não deixam os doentes de fora dos seus cuidados. Ao nível diocesano, a Pastoral da Saúde vai sinalizando uma ou outra coisa, vai dando uma pequena ajuda e suporte, e surge agora esta Semana da Saúde para enfatizar, por um lado, a importância da promoção da saúde e da vida, e por outro para alentar os grupos e núcleos da Pastoral da Saúde nas paróquias.
Serve também para reforçar a aposta neste âmbito, para dinamizar a Pastoral da Saúde nas paróquias?
Sim, um dos aspetos é exatamente esse: dinamizar a Pastoral da Saúde. Não é que não haja Pastoral da Saúde nas paróquias, existe, mas é necessário reorganizá-la, dar-lhe uma nova ênfase, pô-la a trabalhar em rede. Porque, às vezes, nas paróquias existem diversos grupos e é necessário que colaborem entre si, saibam que doentes estão a assistir, e não se fixem apenas no que se refere aos cuidados espirituais aos doentes que a paróquia realiza, mas que se importem também com a promoção da saúde e da vida.
E é preciso atrair mais voluntários, mais gente que trabalhe nesta área e se dedique a ver quem precisa de ajuda, quem está só?
Exatamente, mas para isso é necessário organização, que a Pastoral da Saúde seja transversal aos diversos grupos e pastorais da paróquia. É necessário torná-la mais atrativa, e não se centrar apenas nos doentes, volto a dizer, mas em projetos de promoção da saúde, em colaboração e diálogo com a sociedade, por exemplo com grupos de profissionais que fazem apoio domiciliário, com as instituições que promovem a saúde e a formação a este nível. Há um campo vasto daquilo que se pode fazer.
É importante reforçar a presença das paróquias junto dos cuidadores, formais e informais?
Essa é uma das questões que é muito importante, porque muitas vezes as famílias estão sozinhas, os cuidadores estão sozinhos e necessitam de ajuda. Muitas vezes falamos do abandono dos idosos e dos doentes, às vezes de violência, e isso acontece porquê? Porque as pessoas, as famílias e os cuidadores, estando sozinhos, ficam cansados e entram em 'burnout', ficam com o stress próprio do cuidado, isso é natural.
Às vezes, precisam de ir fazer pequenas compras, de ir ao banco, cuidar da sua saúde ou descansar um pouco, e não têm oportunidade para o fazer. Creio que neste sentido uma boa organização da Pastoral da Saúde na paróquia, e mesmo ao nível social, pode proporcionar às famílias um bem extraordinário para que possam ter tempo para fazer essas coisas.
"Muitas vezes as famílias estão sozinhas, os cuidadores estão sozinhos e necessitam de ajuda"
Essa rede de proximidade que as paróquias têm é fundamental para chegar a quem está mais isolado?
Para essas pessoas mais isoladas é importante para aí chegar. Um aspeto da transversalidade que aqui pode acontecer: dentro da paróquia há grupos de crianças, de adolescentes e de jovens, de escuteiros que podem ser levados, até como educação cristã, a "adotar" um idoso que está sozinho, de ir celebrar com ele os anos, levar um bolo e ir celebrar com ele o Natal ou a Páscoa, de vez em quando ir cantar canções com ele. Pode-se fazer tanto bem! Isso, para além do mais, é educativo, ajuda as crianças a compreender o que é a compaixão e a misericórdia. Por exemplo, quando o padre vai dar a Santa Unção, porque não pedir às crianças que o acompanhem? Porque com a Santa Unção ninguém morre, pelo contrário, é o Sacramento dos doentes.
Que não deve ser pedido apenas na hora da morte...
Sim, é necessário que as pessoas o peçam quando estão doentes, é essa a lógica deste Sacramento. Nesse sentido, porque não levar as crianças da paróquia, de um grupo de catequese, a acompanhar o padre? É uma ótima catequese sobre a Santa Unção e sobre os sacramentos na doença.
E é essa reflexão que também vão fazer nesta Semana da Pastoral da Saúde?
Algumas destas reflexões, sim. Na Semana da Saúde temos a temática “Doente na paróquia: proximidade e presença”, e há uma série de subtemas que vamos propor em textos para reflexão nas paróquias. Não vamos fazer um encontro, aproveitamos este tempo em que os encontros são mais complicados para enviar os textos às paróquias, para que os próprios grupos da Pastoral da Saúde possam, ao longo de diversas semanas, refletir e criar as suas próprias linhas de orientação para a organização da pastoral na paróquia.
Na mensagem para o Dia Mundial do Doente (11 fevereiro), o Papa lembrava que "o doente é sempre mais importante do que a doença", e que “qualquer abordagem terapêutica não pode prescindir da escuta do paciente”, do que pensa, da sua história e da sua realidade. Isto já é mais tido em conta nos hospitais e centros de saúde, ou a pandemia veio mostrar precisamente o contrário?
É um desafio, para a Pastoral da Saúde, para os profissionais de saúde, para os hospitais, para quem cuida dos doentes. De facto, tudo o que foi feito ao nível da pandemia foi extraordinário, no sentido de vencer a pandemia e ajudar as pessoas, mas parece-me que aquilo em que muitos dos cuidados se centraram foi exatamente na doença, não foi na pessoa.
E numa doença em concreto...
Numa doença em concreto, não foi na pessoa. A grande preocupação era a não transmissão, mas a seguir descuidou-se bastante os aspetos sociais da pessoa, os aspetos afetivos, as pessoas eram separadas dos seus familiares, morriam e eram enterrados sem a presença dos familiares, sem os rituais da fé. Não se ligava às questões mais de natureza psicológica nem às questões espirituais.
E em dois anos aprendeu-se alguma coisa? Porque houve várias fases na pandemia, houve momentos em que não havia visitas para quem estava internado, mas isso no momento atual ainda se passa nalguns hospitais…
Ainda se passa muito, as visitas ainda estão muito arredadas dos hospitais.
E isso justifica-se?
Não posso falar em nome da Direção-Geral da Saúde, mas na minha opinião pessoal, como pessoa, como cidadão, creio que não. Há muito mais que poderia ser feito, nomeadamente na aproximação dos familiares aos doentes, com o cuidado respetivo. Inclusivamente, quando os doentes estão em fase terminal, que pudessem ser acompanhados pelos seus familiares.
Parece-me que aqui muitas vezes estamos como os fariseus, que eram demasiado rigoristas no cumprimento do pormenor da lei, e dá-me a impressão que aqui se quer cumprir também a lei, mas se esquece as pessoas.
Essa é uma das lições que pode ficar para o futuro? Aliás, quando aqui entrevistamos alguém ligado à área da saúde, essa é sempre uma preocupação, não centrar demasiado na doença, mas olhar para o cuidado da pessoa que tem uma doença…
Mas para isso é necessário olhá-la na sua integralidade…
Isso tem de vir desde a formação?
Também tem a ver com a formação dos profissionais de saúde e de olhar sempre a integralidade da pessoa. Porque, por exemplo, ao nível da assistência espiritual, é possível dar sempre assistência espiritual seja a que doente fôr, desde que se preserve aquilo que é necessário para que não haja contágios. Assim como se prestam os cuidados de saúde também, se podem prestar outros cuidados. É possível.
E isso foi feito durante a pandemia?
Sim, foi feito, mas podia ter sido feito mais. A grande maioria dos profissionais de saúde são muito sensíveis à pessoa doente. Ainda estes dias tive uma experiência nesse sentido, uma doente que estava a falecer e permitiram que a família a visitasse e se despedisse, houve uma grande sensibilidade. Isso é morrer humano, porque naquilo que está a acontecer neste momento, as pessoas não morrem de modo humano, para não dizer que não morrem de forma cristã.
Morrer humano é morrer acompanhado, é morrer com as pessoas, com aqueles que se amam ao lado. A morte não mata ninguém, a seguir. É individual, é uma experiência de cada um. Morrer acompanhado é aquilo que as pessoas mais desejam, porque o que mais apavora, nesse momento, é estar sozinho, não ter uma mão amiga. Nesse sentido, há muita outra coisa que se poderia fazer aqui, neste campo…
"As pessoas não morrem de modo humano. Morrer humano é morrer acompanhado"
Isso para si, como capelão, foi o mais difícil neste período? Houve alguma história que o tenha tocado de forma particular?
Foi das situações mais complicadas, porque nós nunca podemos fazer muita coisa. Às vezes, os doentes desejavam que a gente se aproximasse, tocasse. Lembro-me de uma senhora, que não tinha Covid, estava doente, em internamento, onde também havia restrições: mal me aproximei, pegou-me nas mãos, começou a afagá-las. Até fiquei atrapalhado, porque estava a ver que ia levar um puxão de orelhas! Mas não levei, pelo contrário, os profissionais que estavam ao lado, depois, até conversaram sobre a grande solidão que muitos dos doentes passam, o desejo do toque, da proximidade.
Ao nível da assistência espiritual, dos cuidados espirituais, da atenção espiritual, há muitos profissionais que são extraordinários, neste campo. São sensíveis a isto… Mas, às vezes, também acontece que há uns extraterrestres, infiltrados, no meio dos profissionais, que obstruem a assistência espiritual.
Durante a pandemia, houve alguma alteração? Passou-se a valorizar mais a presença e o contributo de uma assistência espiritual?
Eu não sei, ela esteve aí. Pela minha perceção, deveria estar mais…
Para os profissionais de saúde, também houve necessidade de assistência? Foram muito sacrificados neste período, foi muito duro…
Foi muito duro para eles. Foram autênticos heróis. Era muito importante, às vezes, a gente passar e conversar.
Teve essa experiência?
Sim. Com muitos profissionais, passar e conversar, exteriorizar o medo, o temor. Sobretudo no início, era importante conversar sobre isso, porque eles precisavam também, e às vezes os fatores relacionados com a espiritualidade vinham também ao de cima. E a maior parte dos profissionais, nesse campo, são extraordinários.
Falávamos no toque, ainda há pouco, e todos os sacramentos na Igreja Católica têm uma enorme atenção ao gesto, ao toque. Foi mais difícil ser capelão, por causa desta limitação?
A espiritualidade assenta muito no toque, e foi mais difícil. Eu, na medida em que podia fazer sem luvas, fazia-o, porque me incomoda muito celebrar os sacramentos e dar a Unção com luvas. Às vezes, tínhamos de o fazer e isso é tremendo, porque impede o contacto com a pessoa, com a pele; para os próprios doentes deve ser um pouco confuso. Mas as situações foram assim, exigiam isso.
É o coordenador nacional das Capelanias Hospitalares. Quantos capelães hospitalares existem no país?
Entre os hospitais públicos e privados, que também têm capelão, em muitos casos, penso que será à volta dos 120. O Serviço Nacional de Saúde tem 83, 84, e os outros são de hospitais privados.
Esta é uma missão para a qual os sacerdotes recebem formação específica?
Deveria ser. Quando os capelães, os assistentes espirituais são nomeados, uma das coisas que devia ser automática era, exatamente, a preparação para entrar neste campo, que é muito específico.
É necessário preparar-se para o cuidado dos doentes. Há formas de encontro e de conversa com os doentes que não ajudam, só complicam, muitas vezes até ficam irritados. E não é só isso: precisamos de aprender técnicas para a proximidade com o doente, para escutar o doente. Sobretudo escutar, de forma ativa, empática, é isso que cura. Cura a alma, e sobretudo ajuda muito sob o ponto de vista terapêutico. E isto tem de ser aprendido, porque não se aprende no curso de Teologia.
Depois, precisamos de aprender e de conhecer a saúde, inclusivamente o património da Igreja, neste campo, aquilo que deve caraterizar a Pastoral da Saúde, as preocupações e os objetivos que devemos ter. Porque é muito fácil um capelão ir oferecer os sacramentos, mas o doente pode não querer isso, mas apenas que escutem os seus desabafos, a sua ansiedade.
Já há mais leigos a exercer este serviço?
Deveria haver muito mais, sobretudo deveria haver muito mais mulheres, porque são necessárias na Pastoral da Saúde, fazem falta para escutar: o materno faz falta na Pastoral da Saúde. Os padres poderiam ser libertados para outras atividades, porque muito da Pastoral da Saúde não são os sacramentos, mas é a escuta, o acompanhamento, a visita, a relação humana. Depois vêm os sacramentos, mas aí pode chamar-se o padre, para ir celebrar. Há muito trabalho a fazer, neste acompanhamento, na escuta, na ajuda humana e espiritual.
Quem tiver disponibilidade e se sinta motivado, o que deve fazer?
Ainda não estamos abertos a isso! E eu lamento muito, quer a nível da sociedade, quer ao nível da Igreja. E necessitamos…
Mas, as paróquias podem ter aí um papel…
Sim, podem ter um papel enorme, através da Pastoral da Saúde. As capelanias, neste sentido da presença das paróquias, através de voluntários pastorais, podem ser uma plataforma para a presença das comunidades cristãs.
De um modo geral, os doentes sabem que quando entram num hospital, têm direito à assistência espiritual e religiosa?
Nem sempre…
Mesmo os crentes?
Mesmo os crentes. Muitos crentes - e isso aconteceu agora, em muitas situações, durante a pandemia – iam para o hospital, pensando que não poderiam ter a visita do capelão, receber a Comunhão.
Face às limitações que estavam em vigor?
Sim. E parece que, às vezes, as pessoas quando vão para o hospital se esquecem que em todos os hospitais há um capelão e há serviço de assistência espiritual e religiosa.
Essa assistência é garantida a todas as religiões?
Sim. Todos os doentes têm direito à assistência espiritual e religiosa, independentemente da sua religião. Por isso, os diversos líderes espirituais podem aceder aos próprios doentes. Se isso não acontecer – às vezes há dificuldades, impedimentos -, configura uma obstrução à liberdade de religião e culto.
Faz diferença na vida de um doente ter assistência espiritual?
Faz, faz diferença. Na minha experiência, de muitos doentes, é um alento para eles quando recorrem à assistência espiritual e religiosa, porque podem conversar, podem ter a Eucaristia. Muitos doentes que recebem a Comunhão, às vezes em situação complicada, de sofrimento, dizem: “é isto que me ajuda a levar o sofrimento para a frente, a lutar pela saúde, a lutar pela vida”.
O diálogo inter-religioso é uma dimensão importante do trabalho nesta área. Tem sido possível chegar a posições conjuntas sobre temas como a eutanásia, por exemplo.
Eu acho que isso vale a pena, e deve ser um caminho a seguir. As coisas caminharão, a seu tempo, para que as diversas religiões estejam presentes no contexto hospitalar. Sob o ponto de vista legal, a assistência espiritual e religiosa no hospital é, por natureza, inter-religiosa. Porque todos os doentes têm esse direito, é uma questão legal. E é depois uma questão de comunhão. Aliás, isso acontece no Hospital Universitário de Coimbra, e é necessário que essa experiência se estenda a outros hospitais.