29 mai, 2022 - 09:22 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
“É um assunto horrível, mas é preciso falar sobre ele”. Isabel Figueiredo, diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, considera fundamental criar-se uma cultura de prevenção na questão dos abusos sexuais na Igreja.
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, neste Dia Mundial das Comunicações Sociais, Isabel Figueiredo afirma que, apesar de “assustador”, não temos alternativa “senão falar sobre as coisas com verdade e transparência” e garante que “a Igreja tem trabalhado a questão dos abusos, tem andado à frente”. “Porque aquilo que nós queremos é encontrar culpados, pedir perdão às vítimas”, afirma.
A responsável está preocupada com o pouco interesse dos jovens pela informação religiosa “porque, qualquer dia, são só os cabelos brancos que estão nas redações”. Isabel Figueiredo garante que o Secretariado está muito interessado “em abrir esta janela aos mais jovens”.
Isabel Figueiredo sublinha a importância das duas últimas mensagens do Papa para o Dia Mundial das Comunicações Sociais e elogia os repórteres de guerra na Ucrânia e o trabalho “de quem está completamente desinstalado, sem saber o que é que será o dia de hoje, quanto mais o dia de amanhã”.
A mensagem do Papa para o Dia Mundial das Comunicações Sociais fala numa “infodemia”, que desvaloriza o papel da imprensa. Este valor nobre que Francisco atribui ao jornalismo, com vários elogios ao trabalho de quem acompanha a guerra na Ucrânia, por exemplo, é um sinal forte, em tempos de crise no setor?
Claro que sim. Vinha a pensar, precisamente, no Papa Francisco e no que tem feito, em termos de mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais - falo só destas duas últimas, porque são as que estão mais próximas de nós – e ele lembra-me a figura do pai que nos dá uma palmada e depois nos passa uma festa no cabelo.
O Papa tem sido muito claro em termos de elogiar o trabalho dos jornalistas, afirmando que é fundamental. No ano passado, ele disse-nos isso e falava na altura da pandemia. Ao mesmo tempo, disse: “têm de gastar a sola de sapatos, têm de levantar-se do sofá e ir para a rua”.
Estava-nos a dizer: eu preciso de vocês, o vosso trabalho é fundamental, mas é preciso alterar qualquer coisa no vosso trabalho, sair. Este ano, avança mais um bocadinho. Diz-nos que nós temos de fazer a tal escuta com o ouvido do coração.
E é o que acontece muitas vezes, quando fazemos uma pergunta a um convidado e já estamos a pensar na próxima, em vez de ouvir a sua resposta…
Exatamente. Por isso é que, eu própria, faço este exercício que não é fácil, de ler as mensagens e tentar descortinar o que o Papa nos está a dizer, com uma introspeção de crítica, fundamental em qualquer trabalho e de um modo muito específico neste.
"Quase que me faltam as palavras para elogiar o trabalho dos jornalistas em cenários de guerra"
Temo-nos desinstalado como o Papa Francisco quer?
Sim e não. Também alguém dizia, a propósito de toda esta celebração do Dia Mundial das Comunicações Sociais, que nestas matérias nós não podemos ter respostas completamente assertivas. Temos de encontrar aqui o equilíbrio.
Eu penso que há sinais claros de uma vontade de estar fora e aproveito este momento aqui para elogiar - quase que me faltam as palavras - o trabalho dos jornalistas em cenários de guerra.
Nós, todos os dias, olhamos para os ecrãs da televisão e ouvimos na rádio o trabalho de quem está completamente desinstalado, sem saber o que é que será o dia de hoje, quanto mais o dia de amanhã. Portanto, nessa matéria, e porque a vida nos obrigou a isso mesmo, penso que os jornalistas foram obrigados a sair do conforto das redações e do conforto do trabalho e do conforto da vida pacífica que, graças a Deus, nós vivemos e desinstalaram-se completamente.
São o exemplo vivo disso que me perguntaste. Agora, se caímos aqui no nosso bem-estar, acho que ainda há muito a tentativa de fazer as coisas sentados à secretária. Com uma justificação que é sempre recorrente e que também tem a sua verdade, que é a falta de meios.
No entanto, nós também temos de fazer este exercício de introspeção e de avaliação própria, de autoavaliação e pensar em que é que nós conseguimos mudar.
Por parte da Ecclesia, este esforço tem sido feito, para colocar em destaque o trabalho que é feito pelas várias dioceses através do exercício dos secretariados diocesanos, mas não só. É um esforço real de nós nos abrirmos e bem sei que há uma abertura e um sair da redação diferente, mas é um sair da redação efetiva.
E contar com quem está no terreno?
Contar com que está no terreno, exatamente.
O Secretariado Nacional das Comunicações Sociais quis assinalar o Dia Mundial das Comunicações Sociais com alunos do curso de Comunicação Social da Universidade Católica, para dar voz aos mais jovens. É fruto de um desejo de renovação? A temática religiosa interessa mesmo aos futuros jornalistas?
Essa opção realmente não foi feita por acaso. Inicialmente, ela tinha como horizonte a Jornada Mundial da Juventude e a necessidade efetiva de dar palco aos jovens. Como também alguém me chamava a atenção, no caso um jovem: os jovens não podem estar na Igreja só para arrumar os bancos dos salões paroquiais.
Começou efetivamente por aí, mas depois houve uma reflexão um pouco mais aprofundada, ou seja, haverá efetivamente interesse por parte dos estudantes de comunicação social pelo fenómeno religioso? Interessa-os, efetivamente? E numa conversa que tive, com uma pessoa muito responsável por toda esta matéria, a resposta que me deu foi: “Isabel, eles não têm interesse nenhum”.
É uma coisa que nos preocupa, porque ou nós conseguimos fazer efetivamente uma passagem de geração, ou seja, ou nós conseguimos formar novos jornalistas que querem efetivamente fazer desta área de trabalho na informação algo de sério e de responsável, capaz de ser transformador; ou então estamos mal, porque qualquer dia são só os cabelos brancos que estão nas redações, e não pode ser.
Há aqui uma questão que está relacionada e que tem a ver também com o que eles veem, pois foram-se perdendo grandes referências do trabalho especializado, que poderiam ser inspiradoras. O facto de as redações terem vindo a perder este trabalho mais específico em determinadas áreas, apesar das exceções, também pode comprometer esta renovação geracional?
Sim, claro, por isso mesmo é que nós queremos dar sinais efetivos de que estamos interessados em abrir esta janela aos mais novos. É este o nosso horizonte de esperança e é essa a nossa tentativa de fazer algo de diferente, colocando a realidade da comunicação social, com um acento religioso, no seio de uma sala de aula.
Há uma maior profissionalização das várias instituições, não de todas, mas de várias. A questão é que isto não é aplicável a todos os níveis, ainda. Falta esta atenção de aplicar um Plano Nacional de Comunicação que ajude todos a comunicar na Igreja e a comunicar a Igreja com mais rigor?
Na verdade, havia um desejo enorme de ir ao terreno. Foi um dos meus compromissos públicos. Fi-lo aqui também aos microfones da Renascença. E esse desejo está muito a meio gás, porque a pandemia surgiu de uma maneira intensa, mas não justifica tudo e não é justificação para tudo. Eu espero retomar esse contacto local.
Do contacto que já tive e que vou tendo noutras ocasiões, sem ser propriamente em visitas específicas, eu penso que sim. Penso que não há comparação com aquilo que eu conheci há 20 anos atrás, quando ia aos primeiros encontros, às primeiras Jornadas de Comunicação Social em Fátima.
Com todo o respeito, com tudo o que eu aprendi com toda a consideração por todos, comparar essa realidade com a realidade de hoje é absolutamente impossível, éramos meia dúzia de pessoas, éramos sempre os mesmos. Lembro-me de anos em que nós enchemos o auditório da Domus Carmeli com gente diferente e nova. Portanto, há uma mudança enorme e é transversal ao país inteiro.
Temos a questão de apontar as fragilidades, o que é completamente correto, e a possibilidade de pensar na questão do plano nacional, mas é algo que também me tem vindo a criar novas dúvidas. Ou seja, se durante muito tempo achei que esse era o caminho certo, hoje em dia já não estou tão certa disso, porque a diversidade e a riqueza do que se faz localmente também tem um caminho próprio para ser feito. E nós temos muitas vezes a tendência, falo por mim própria, de desvalorizar as identidades locais e pensarmos que se conseguirmos ter uma estrutura nacional que manda em todos, a coisa funciona melhor.
E isso pode descaracterizar?
É, não tenho a certeza se esse é o melhor caminho.
Na relação da Igreja com os media generalistas, sentem que ainda predomina uma cultura recíproca da suspeita e da desconfiança?
Eu acho que a suspeita e desconfiança, infelizmente, se instalou na nossa vida, em todos os setores e neste também. Vinha a pensar na conversa que ia ter convosco e em como é verdade que, por exemplo, as escolas nunca são notícia quando trabalham todos os dias com
os seus alunos de uma forma regular e conseguem obter bons resultados. Naquela monotonia dos dias, as escolas não são notícia. As escolas são notícia quando há problemas graves, como tivemos recentemente nos Estados Unidos, ou quando há coisas que acontecem com uma greve de professores que faz com que os pais não possam ir trabalhar.
Os hospitais não são notícia quando todos os dias salvam pessoas, fazem operações, não são notícia. São notícia quando há um problema enorme nas urgências, quando há filas de carros, quando há uma bactéria.
A suspeição e a desconfiança fazem parte da nossa forma de estar na vida e também aqui, na questão da comunicação social e na questão da comunicação social da Igreja, se instalou com todo o à-vontade.
A chegada de um jornalista a uma determinada instituição católica, por exemplo, é sempre vista como sinal de que vêm aí más notícias?
Infelizmente, eu diria que andamos muito atrás disso mesmo. Depois dizem-me: o normal é isso! O que é notícia é o mau. E eu respondo: aceito, mas nunca é possível virar isto ao contrário? Não é possível conseguirmos que as coisas sejam feitas de uma outra maneira?
E basta pensar na dimensão de informação que se baseia na suspeita e na desconfiança e na dimensão de informação produzida, que se baseia pura e simplesmente na capacidade de divulgar algo que está a acontecer, ou algo de bom ou algo inovador, ou seja, o que for. É um caminho e é característico do tempo que estamos a viver.
Mas nós enquanto profissionais também precisamos de ter a capacidade de vender as boas histórias?
É decisivo. O Papa Francisco já disse isso e insistiu. Tentei lembrar-me de exemplos positivos e lembrei-me das últimas reportagens que apareceram quando a Cartuxa saiu de Portugal, foram publicados ótimos trabalhos. Porque é que isto aconteceu? Aconteceu porque eles se iam embora.
Foi um momento extremo, não é? E também foi possível porque houve abertura por parte da instituição.
Sim, mas o motivo pelo qual eles foram procurados foi este. Foi o facto de se irem embora. E depois há outros trabalhos e lembro, por exemplo, o trabalho feito pela Catarina Canelas lá em baixo, no Algarve.
Um trabalho feito sobre a procissão da Mãe Soberana...
Precisamente. Qual é a dimensão? É altamente regional, tem qualquer coisa de diferente, do ponto de vista da imagem é superbonito, mas foi feito. E, portanto, esse é um ótimo exemplo de coisas que se podem e devem fazer.
"[Abusos na Igreja] É assustador, mas não temos outra alternativa senão falar sobre as coisas com verdade e transparência"
Os últimos anos marcados pela crise da Covid trazem desafios específicos para a imprensa cristã, que nós sabemos que ainda está muito ligada ao papel e ao regional. E há locais que se calhar economicamente são mais frágeis. O Secretariado teve eco de dificuldades que tenham surgido nos últimos anos que tenham surgido na imprensa cristã?
Claro que está. É óbvio que sim. Alguns jornais têm fechado e em muitos outros coloca-se a questão da sua viabilidade num futuro muito próximo.
Quando nós conhecemos a realidade local, quando saímos deste conforto em que estamos e desta centralidade em que vivemos, também percebemos que - nesses locais, nesses jornais regionais, nesse tipo de comunicação social - ainda se faz jornalismo de uma forma que já se perdeu em muitos outros lugares, principalmente aqui de Lisboa, mas também se pode falar do Porto.
Nesses locais faz-se um jornalismo, muitas vezes, com uma qualidade que nós desconhecemos e por isso acho tremendamente injusto pensarmos e dizermos: é trabalho que não interessa. Eu acho que é trabalho que interessa.
Se a pandemia trouxe uma crise, todos nós estamos perfeitamente conscientes que a guerra vai agravar essa crise. A médio, ou a muito curto prazo, a parte da economia vai ser muito mais asfixiante em todas as áreas. Eu acho que as soluções se vão encontrar também localmente. Ou seja, têm de ser as próprias pessoas a defender aquilo que têm e nós, que estamos às vezes com um olhar mais de fora, temos de ter respeito e consideração para defender aqueles projetos. Não podemos ser mais uma voz a dizer “não há nada a fazer, vamos acabar com isto”.
E em certos meios a necessidade de manter o papel vai ser importante ou não?
Perdoem-me a expressão, mas eu acho que isto é um bocadinho como as modas femininas que vão e vêm e depois, passados uns anos, repete tudo outra vez. Ou seja, acho que nós hoje em dia temos consciência de que as pessoas consomem a informação, especialmente através dos ecrãs, dos telemóveis e dos computadores, mas ainda mais dos telemóveis.
Estamos conscientes de que os jovens estão completamente limitados, no bom sentido da palavra. É esta a ferramenta de contacto com o mundo.
Agora, não me parece que o papel seja - a não ser pelo custo e o custo vai determinar que muito não é o custo, o próprio custo do papel - um produto de comunicação que vá desaparecer na história. Não, não acredito. Não acredito. Assim como não acredito que os livros - o objeto - vão desaparecer. Não me parece. Por muitas versões diferentes que nós tenhamos de poder ler um livro hoje em dia no ecrã, eu acho que o livro em papel e o produto em papel não vão desaparecer.
Na questão dos abusos sexuais verificamos um enorme esforço na Igreja para clarificar a situação. Contudo, parece haver da parte alguma comunicação social alguma desconfiança: Que mais é necessário fazer para - não digo acabar -mas pelo menos atenuar esta desconfiança?
Nunca se pode dizer que já se fez tudo, mas também não se fez tudo em nenhuma matéria. Não tenho dúvida que se tem feito o melhor que se é capaz. Não tenho dúvidas que se tem procurado ir à frente, na forma de tratar destas matérias e ir à frente de muitas outras situações que ocorrem e que têm exatamente o mesmo conteúdo.
Ou seja, dizendo as coisas com os nomes corretos: a Igreja tem trabalhado a questão dos abusos. Não interessa aqui dizer se foi obrigado, ou se não foi obrigado, porque o normal é dizer que foi obrigada. E isso é o que é, o que se ouve e o que sai bem. Mas a Igreja tem-no feito e tem andado à frente. É como se fosse um comboio que vai a alta velocidade, a Igreja vai claramente à frente.
E por isso mesmo, a única coisa que eu espero é que isto seja como aqueles copos de água que transbordam. Ou seja, a minha esperança enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto avó, enquanto profissional, é que tudo isto que está a ser feito sobre a questão dos abusos na Igreja Católica consiga ultrapassar as fronteiras da Igreja Católica e consiga atingir a sociedade.
Porque aquilo que nós queremos com tudo isto é encontrar culpados, pedir perdão às vítimas e isso em absoluto. Mas o que nós também queremos é que este tema não seja mais um tabu do qual não se pode falar e que consigamos chegar às crianças e aos jovens. Que, dessa forma, consigam perceber até que ponto é que a prevenção pode começar em si próprios.
A Comissão Independente tem falado muitas vezes na questão da mudança cultural, de criar uma nova cultura de proteção…
Exatamente, isso é fundamental. E, para isso, as coisas têm de ser faladas e têm de ser ditas. Se nós falarmos de prevenção aqui, ali e acolá, eu tenho esperança que, depois, aqui, ali e acolá, transborde para outras áreas completamente distintas.
Portanto, uma criança que é abusada tem de saber o que significa estar a ser abusada. Se este assunto for falado publicamente, teremos mais possibilidades de uma prevenção efetiva.
Obviamente, ninguém gosta que estas coisas aconteçam. Nem na paróquia onde eu estou, nem no movimento a que eu pertenço, nem na família, que é a minha família, nem em lado nenhum. Eu não quero que isto aconteça. É um assunto horrível, mas é preciso falar sobre ele.
É claro que isto é um bocado assustador, porque se falou muito de violência doméstica e fala- se muito violência doméstica. Nunca se fizeram tantas campanhas sobre violência doméstica e as mulheres continuam a morrer. E os homens também continuam a ser vítimas de violência doméstica. As coisas continuam a acontecer. Portanto, isto é assustador, mas não temos outra alternativa senão falar sobre as coisas com verdade e transparência.