08 mai, 2017 - 16:23 • Filipe d'Avillez
Na semana em que o Papa Francisco visita Fátima, a Renascença recupera as visitas dos anteriores Papas ao país. O primeiro a fazê-lo foi Paulo VI, em 1967. Bruno Cardoso Reis, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica, e docente no Centro Estudos Internacionais, do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, é também autor de um livro sobre “Salazar e o Vaticano”.
A Renascença falou com o historiador para melhor compreender o contexto e as consequências desta visita histórica.
Para se compreender o contexto da visita de Paulo VI a Fátima em 1967, é preciso recuar no tempo…
O contexto mais imediato é um contexto de crise nas relações entre Portugal e a Santa Sé, naqueles anos finais do regime de Salazar.
Obviamente o caso mais conhecido é o caso do bispo do Porto, mas há um caso, hoje em dia menos conhecido, que foi a visita do Papa Paulo VI a Bombaim em 1963, num contexto em que as viagens papais eram extremamente raras. Paulo VI é o primeiro Papa que começa a viajar para fora do Vaticano com alguma regularidade, mas faz muito poucas viagens. Esta viagem a Fátima é apenas a quarta viagem que ele faz: vai a Jerusalém, vai à ONU, mas também vai em 1963 a um congresso eucarístico em Bombaim, naquele contexto de uma política de abertura do Vaticano aos novos países independentes, em que a Índia era obviamente um país importante.
O problema é que havia um conflito muito grave entre a Índia e Portugal. A Índia tinha invadido Goa dois anos antes, em 1961, e, apesar de todas as tentativas do Papa de procurar mostrar que não se tratava de um gesto hostil nem a Portugal nem ao catolicismo português, acentuando sempre que era uma viagem religiosa e não política, provocou uma forte reacção da parte de Salazar e do regime, uma reacção pública, de crítica ao Papa, bastante invulgar.
Foi nesse contexto que, que a diplomacia, quer a papal quer a portuguesa, até um pouco à revelia do próprio Salazar, começou a preocupar-se com uma eventual vinda do Papa a Fátima no cinquentenário.
Há referências logo no próprio dia em que é anunciada a ida a Bombaim. A então presidente da Cáritas Portuguesa faz um contacto com Salazar, depois é também dado conta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, dizendo precisamente isso, que havia essa possibilidade.
Inicialmente o Salazar é bastante hostil a isso e chega a dizer ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, que enquanto for vivo o Papa não vem a Portugal e que lhe recusa o visto se ele quiser visitar Fátima.
Depois a diplomacia portuguesa tem de fazer esse trabalho também em relação ao seu próprio chefe, não só em relação ao Papa, para o convencer.
O Estado Novo assenta muita da sua ideologia numa identidade religiosa, especificamente católica. O conflito com o Vaticano abalou essa identidade?
Era uma grande fonte de preocupação. Salazar encarava isso como uma manifestação dos erros que estavam a ser cometidos na Igreja, que a Igreja estava a tomar uma direcção errada, que seria negativa para o catolicismo. Chega a dizer que se a Igreja avança neste sentido é porque vai estar a dar força ao comunismo, que quer ser uma igreja de mártires em vez de ser uma igreja que consiga realizar coisas.
Obviamente o lado das lideranças católicas, inclusive de algumas lideranças católicas do lado português, a crítica feita é contrária, de uma convergência excessiva entre o episcopado português da mesma geração de Salazar, que tinha vivido o trauma da Primeira República, e que era positivo, não era mau, que houvesse algum distanciamento.
Mas do lado do regime houve muitas preocupações. Franco Nogueira, um protagonista importante na gestão desta questão, disse a Salazar que uma coisa era as forças mais fictícias, com pouco peso, como por exemplo a ONU… Portugal podia ter conflitos com a ONU que isso não seria um problema em relação ao regime, mas com forças reais, com influência real no país, como a Igreja Católica, isso era preocupante, seria de evitar, e portanto a eventual visita do Papa a Fátima seria uma oportunidade de tentar recompor um pouco as coisas.
O conflito diplomático com o Vaticano foi aproveitado pela oposição ao regime? Nomeadamente pela oposição mais anticlerical.
O que é mais interessante é que a visita do Papa Paulo VI a Fátima acaba por ser um pouco um pretexto, ou um prenúncio, de uma alteração na posição de uma componente importante da oposição, aquela oposição mais ligada às tradições republicanas e de que a grande figura de referência já é na altura, e vai ser cada vez mais, Mário Soares...
Ele vai ter um papel importante e vai assinar um abaixo-assinado importante de vários líderes da oposição dessa área socialista-republicana, vários dos quais tinham inclusivamente tido responsabilidades na Primeira República, no sentido de dizer: “Atenção que a visita do Papa está a ser aproveitada abusivamente pelo regime e pela propaganda do regime”, chamando atenção para o facto de o Papa ter tomado uma série de precauções para não vir a Lisboa, não pernoitar, ser convidado do bispo e não do Governo, para mostrar precisamente o seu distanciamento ao regime.
Mas o que isso significa também é que a oposição se está a demarcar daquilo que tinha sido uma tradição, de crítica ao regime e ao catolicismo, uma crítica a Fátima, que depois será muito importante porque serão esses os interlocutores daqueles católicos mais progressistas, que defendiam também algum afastamento do regime, no período a seguir, e obviamente ao fim de poucos anos temos o 25 de Abril.
Normalmente, para um regime como o Estado Novo, uma visita papal seria um momento de glória. Acabou por ser uma situação até um bocado embaraçosa: a primeira visita de um Papa a Portugal e nem foi visita de Estado.
Salazar não tem ilusões sobre isso. Deixa claro que percebe que o Papa Paulo VI não gosta dele, que não gosta do regime dele. Há uma anedota que ele conta... Não é claro que seja literalmente verdade, mas seja ou não é realmente significativo que ele conte essa história, em que diz que quando é recebido pelo Papa dirige-se a ele como Sua Santidade e que o Papa lhe responde com um “Sua Eternidade”. Parece pouco diplomático para Paulo VI, mas transmite esta ideia de que Salazar tinha bem a noção de que havia esta distância crescente entre o Papado, a própria Cúria e o regime.
Agora, o regime tem uma vantagem, é que controla directamente a comunicação social. Será a RTP a fazer a transmissão; controla a imprensa através da censura, e, portanto, tem uma grande capacidade de apresentar e fazer o enquadramento que quer da visita. Obviamente aí procura o mais possível valorizar a vinda em si e apagar tudo o que possam ser sinais desse distanciamento.
Apesar de tudo, não houve tentativa por parte do Estado de dissuadir visitas…
Pelo contrário, há um incentivar nesse sentido e, por um lado, os grandes derrotados neste contexto vão ser os católicos mais progressistas que acham que, apesar de tudo, o Papa não devia ter vindo. Vivem, por isso, aquela manifestação de uma enorme multidão e a satisfação com a visita do Papa como uma experiência um pouco traumática. Por exemplo, o João Bénard da Costa faz esse registo, de que foi um momento em que no fundo se quebrou a sua ligação com uma igreja mais institucional.
Para o regime é importante confirmar esta imagem do Portugal Católico que era um Portugal leal ao regime. Esta vasta multidão seria uma manifestação de apoio ao regime. Essa leitura será abusiva, mas foi obviamente a que passou e sobretudo a que passou também na comunicação social portuguesa controlada pelo Estado.
Esta tensão entre Lisboa e Roma, quando é que acaba por se normalizar?
A ironia é que toda a gente esperava que uma eventual mudança de regime criasse problemas novamente entre a Igreja e o Estado, que a queda do Estado Novo seria um período de tensão. Ora em Abril de 74 o conflito renovado, sobretudo entre a Santa Sé, mas com cada vez mais bispos, e o Estado Novo, está num ponto em que parece difícil poder piorar mais. O bispo de Nampula tinha sido expulso de Moçambique, várias congregações estavam a ser expulsas de Moçambique... O Vaticano chega a dar sinais de que poderia retirar o núncio de Lisboa e por isso essa situação volta a um crescendo de conflito, sobretudo até 1970, altura em que Paulo VI recebe, ainda que num contexto de alguns cuidados, os líderes dos movimentos de libertação anticoloniais, que estavam a combater Portugal em África, de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau.
A partir daí há um acelerar da crise e da tensão. O 25 de Abril, embora tenha colocado desafios importantes e tenha levado a algumas crises, foi para os dois lados uma oportunidade para fazer um "reset", um regresso a uma certa normalidade e daí a pouco tempo é possível fazer uma revisão bastante limitada da Concordata e isso é crucial para uma normalização das relações. Mas isso só acontece com a queda do regime e com o novo regime democrático.