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Esta é a juventude do Papa

14 mai, 2017 - 13:07

Dormiram ao relento, apanharam frio, calor e chuva, tudo nas mesmas 24 (ou seriam 48?) horas. É difícil fazer as contas ao tempo quando o tempo está em suspensão. Gonçalo, Júlio, Paulo, Ricardo, Vasco, Maria, Verónica e Olinda foram oito em mais de três mil jovens que caminharam ao encontro de Francisco na Cova da Iria. De viagem a partir do Porto, Coimbra e Lisboa, feita de comboio, autocarro e a pé, o movimento Eu Acredito congregou-se em Fátima para esperar a chegada do “peregrino da paz”. Esta é a juventude do Papa.

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Da estação de Santa Apolónia, Lisboa, partiram dois mil de madrugada em oito comboios cheios. Às cinco da manhã, com o peso das mochilas às costas, puseram-se a caminho e viram o nascer do sol em Chão de Maçãs. Ao meio-dia de 12 de Maio, chegavam ao Santuário de Fátima, onde os esperavam mais mil peregrinos do norte do país.

A GNR fez a escolta à entrada da cidade e a revista das mochilas à entrada do recinto. Com a roupa ainda húmida e os pés enlameados, a mancha azul-turquesa do Eu Acredito começou de imediato a marcar território no recinto do santuário. Colchonetes, lancheiras, guarda-chuvas e sapatos, um verdadeiro acampamento improvisado no chão duro frente à basílica. O sol apareceu, os olhos cansados foram-se fechando à luz e ao calor, a pele cada vez mais escaldada. Horas depois, os helicópteros começam a sobrevoar o recinto. A partir daí, foi uma prova de esforço e de fé até ao dia seguinte.

O Papa chegou, aclamado pela multidão, e com ele rebentam os primeiros cânticos, ainda tímidos: “Esta é a juventude do Papa!”. Mas Francisco dirigiu-se em silêncio à Capelinha – e calaram-se as vozes no Santuário.

Não arredaram pé. Com o farnel de sobrevivência à mão, o saco-cama e os impermeáveis, deixaram-se ficar até à Procissão das Velas. No escuro, com os cânticos a Maria a encher o recinto, a recitação do terço com o Papa, a noite iluminada com milhares de velas, o tempo parou.

O símbolo daquilo que a Igreja é

“É das imagens mais bonitas de Fátima. Este ano – eu costumo vir – com muito mais gente, ainda mais emocionante fica. Como símbolo daquilo que a Igreja é: uma noite escura e nós temos velinhas e andamos a tentar descobrir uma luz por aí”, descreve Vasco Cardoso, professor de Filosofia do Colégio São João de Brito, em Lisboa, que acompanha 75 alunos até Fátima.

O Papa retirou-se, celebrou-se a missa e, já depois da meia-noite, os jovens recolheram aos sacos-cama, ao relento, para tentar dormir até à manhã seguinte. No dia 13, as estrelas foram Francisco e Jacinta, os “nossos pastorinhos”, diziam.

“Cansados mas felizes”, conta Júlio, estudante de Direito, 18 anos, do Porto. “Dormi quatro horas. Mas dormirmos aqui foi uma coisa espectacular. Só acordar e ver o santuário e estar aqui rodeado de tanta pessoa é inesquecível. Deitei-me às duas da manhã, sem me importar se ia dormir sete horas ou seis.”

“Não me posso esquecer do frio”, ri-se. “E a chuva também. São os ossos do ofício”.

O que via, quando olhava em volta? “Alegria. Disso não há dúvida. E via-se, obviamente, muita luz, não só no sentido literal.”

São Francisco, Santa Jacinta, os “nossos” pastorinhos

No dia 13, o momento em que se ouve “São Francisco” e “Santa Jacinta”, numa manhã quase limpa, é recebido cá em baixo, entre os jovens, com enorme emoção.

Maria Clara, 26 anos, estudante de Geologia, juntou-se ao grupo já em Fátima na sexta-feira. No sábado, já muito depois da noite ao relento, revê o dia que passou. “Eu conhecia pouco a história dos – agora – santos, mas é impressionante. Sendo crianças, a própria da Jacinta, que tinha tanto cuidado com os doentes e com os que não acreditam, é impressionante.”

“Vejo as minhas sobrinhas de cinco anos e fico a pensar: elas já rezam, já conseguem ter este tipo de consciência. É mesmo muito bonito.”

Antes da chegada à Cova da Iria, durante o caminho pelas estradas de Ourém, o jesuíta Ricardo Dias, 33 anos, passou horas a cantar para distrair o corpo do cansaço. Mal parava para ajeitar a roupa, já os adolescentes mais afoitos tinham avançado 300 metros.

De Guimarães, a dar aulas de Religião no São João de Brito, em Lisboa, acompanhou Vasco e o grupo de alunos do 11.º e 12.º anos. Trocavam piadas pelo caminho. Os dois de barba e óculos, gozavam que precisavam de “limpa pára-brisas” para os óculos e inventavam parvoíces para entreter as crianças. Mais perto de Fátima, revezavam-se com o coordenador da pastoral do colégio, o padre Luís Onofre, como porta-estandartes da bandeira do CSJB.

Gracinhas à parte, o caminho, diz Ricardo, foi “muito profundo e discernido”. “ É uma palavra que está muito aí a ser dita. Em muitas das conversas que íamos tendo, quer de forma mais individual quer a nível de grupo, os alunos diziam-nos isso: que é uma experiência que marca e que mexe muito cá dentro, e que põe a pensar. Isso é muito bom.”

E o que ficou, das palavras do Papa? “Que Ela [Nossa Senhora] é nossa Mãe e que com ela estamos seguros.”

E, U, A, C, R, E, D, I, T, O

No acampamento improvisado do Eu Acredito, a maioria dos jovens não se conhece entre si. Juntam-se por grupos, uns maiores, outros mais pequenos; há também quem venha aos pares ou sozinho.

Paulo, estudante do 11.º ano, veio do Porto. O caminho até aqui foi simples”, conta. “Foi pequeno, interrompido duas ou três vezes por momentos de oração em que líamos leituras da Bíblia e reflectíamos um bocado sobre a vida no geral, quem somos, e quem temos à nossa volta.” Os mil que vieram do Porto chegaram de autocarro a Santa Catarina da Serra, fazendo a pé os cinco quilómetros finais até Fátima.

“Foi a primeira vez que vim a Fátima. Podia ter vindo quando era pequeno, mas nunca tive essa hipótese. Os meus pais nunca foram muito para aí virados”, conta a rir-se. Sem filtros, de sorriso rasgado, Paulo não esconde a alegria. “Estou a adorar, é incrível. É a primeira vez e vejo logo o Papa, assisto ao acenar dos lenços e das velas. Foram dois momentos que passei incríveis. E inesquecíveis.”

Gonçalo Guimarães de 15 anos, também veio do Porto. Queria ver o Papa, fazer novos amigos, e rezar “um pouco mais”. O caminho, “para quem fez Santiago de Compostela, é fácil”.

Em comum, todos têm as t-shirts azuis com as letras E, U, A, C, R, E, D, I, T, O. O movimento nasceu em 2010 com a visita de Bento XVI a Portugal, por iniciativa dos jovens de Schoenstatt, que quiseram juntar todos os movimentos juvenis católicos numa só massa para receber o agora Papa emérito. Centros universitários e colégios jesuítas, jovens do movimento Comunhão e Libertação, do Opus Dei, das Equipas de Jovens de Nossa Senhora, dos escuteiros, das paróquias, unidos sob o mesmo propósito: acompanhar o Papa, seja Ratzinger ou Bergoglio – não é o indivíduo, é o sucessor de Pedro que aqui se espera. Mas o protocolo não tem nada de formal.

Os mais novos, longe dos pais, aproveitam para dar uma de crescidos. Sem sapatos, de perna para o ar, espalham o farnel pelo chão e exibem com orgulho as marcas do cansaço, as meias furadas, até o escaldão. Os mais velhos fingem não reparar, concentram-se noutras coisas.

- O lencinho branco é já?
- Sei lá, se quiseres abana já!
- Oh, mas se há uma tradição, não me vou pôr a inventar!
- A sério que trouxeste um lencinho?

O adeus do Papa

Verónica Machado veio de Coimbra com a amiga Olinda. Com 32 e 34 anos, são peregrinas mais comedidas, mais arrumadinhas. Uma é educadora de infância, outra é professora de Formação Cristã e Educação Moral. Juntaram-se ao Porto em Santa Catarina da Serra. No dia 13 à tarde, visivelmente cansadas, aproveitam para comer sandes sentadas de costas para o sol.

“O que trouxe aqui foi a causa maior do centenário, este grande momento importante no nosso país e neste lugar de Fátima. Foi esse o motivo principal”, diz Verónica. “Quando o senhor padre diz: ‘a partir de agora será São Francisco e Santa Jacinta’, foi muito marcante.”

Com os olhos azuis semifechados pela luminosidade do recinto, explica a relação que tem com os pastorinhos. “É pelo facto de serem crianças muito simples e de um meio muito pobre, mas, ao mesmo tempo, na sua simplicidade, transmitirem esta fé, esta fé que nos leva a buscá-la em Deus.”

Do Papa Francisco guarda a proximidade e o tom das palavras. “Falou connosco com uma leveza… e marcou-me também o silêncio que se gerou quando se juntou ali diante de Nossa Senhora.”

E a viagem com os jovens, a confusão, a barafunda? “Foi uma aventura”, admite Olinda, a rir-se. “A aventura das comidas, de procurar as mochilas, ora íamos para aqui, ora para ali; mas foi viver uma união, gritar 'Papa Francisco, juntos em Cristo’.”

A aventura está a chegar ao fim. Dos altifalantes ouve-se dizer que Francisco se vai despedir da multidão passando pelo meio do Santuário. A última espera faz-se junto ao gradeamento, no chão, empoleirados nos bancos e cadeiras, à procura do melhor ponto de vista.

- ‘Tá a sair agora, ´tá a sair agora! 'Tou a ver melhor ali…
- Vai dar a volta, vai fazer agora a curva
- Viva o Papa! Viva o Papa!

E em poucos segundos, acabou.

“Assim de repente – ainda não digeri muita coisa – as duas coisas que mais me emocionaram foram o momento da canonização e o da visita do Santíssimo aos enfermos, aos doentes”, diz Vasco, a olhar ainda para o fundo do recinto, a Cruz Alta, por onde o Papa acaba de desaparecer.

Maria acrescenta: “A visita aos doentes com o Santíssimo exposto é mesmo bonita”. “Apesar de estarem ali, e de os vermos, é preciso tirar um momento para se estar lá, junto aos doentes”, diz. E foi isso que o Papa mostrou.

Nestas horas, um cântico entoou-se vezes sem conta, como hino: “Nós é que somos a juventude do Papa”. Olinda explica-o: “Quer dizer que acarinhamos o Papa. É essa a ideia.”

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