14 mai, 2017 - 13:07
Da estação de Santa Apolónia, Lisboa, partiram dois mil de madrugada em oito comboios cheios. Às cinco da manhã, com o peso das mochilas às costas, puseram-se a caminho e viram o nascer do sol em Chão de Maçãs. Ao meio-dia de 12 de Maio, chegavam ao Santuário de Fátima, onde os esperavam mais mil peregrinos do norte do país.
A GNR fez a escolta à entrada da cidade e a revista das mochilas à entrada do recinto. Com a roupa ainda húmida e os pés enlameados, a mancha azul-turquesa do Eu Acredito começou de imediato a marcar território no recinto do santuário. Colchonetes, lancheiras, guarda-chuvas e sapatos, um verdadeiro acampamento improvisado no chão duro frente à basílica. O sol apareceu, os olhos cansados foram-se fechando à luz e ao calor, a pele cada vez mais escaldada. Horas depois, os helicópteros começam a sobrevoar o recinto. A partir daí, foi uma prova de esforço e de fé até ao dia seguinte.
O Papa chegou, aclamado pela multidão, e com ele rebentam os primeiros cânticos, ainda tímidos: “Esta é a juventude do Papa!”. Mas Francisco dirigiu-se em silêncio à Capelinha – e calaram-se as vozes no Santuário.
Não arredaram pé. Com o farnel de sobrevivência à mão, o saco-cama e os impermeáveis, deixaram-se ficar até à Procissão das Velas. No escuro, com os cânticos a Maria a encher o recinto, a recitação do terço com o Papa, a noite iluminada com milhares de velas, o tempo parou.
O símbolo daquilo que a Igreja é
“É das imagens mais bonitas de Fátima. Este ano – eu costumo vir – com muito mais gente, ainda mais emocionante fica. Como símbolo daquilo que a Igreja é: uma noite escura e nós temos velinhas e andamos a tentar descobrir uma luz por aí”, descreve Vasco Cardoso, professor de Filosofia do Colégio São João de Brito, em Lisboa, que acompanha 75 alunos até Fátima.
O Papa retirou-se, celebrou-se a missa e, já depois da meia-noite, os jovens recolheram aos sacos-cama, ao relento, para tentar dormir até à manhã seguinte. No dia 13, as estrelas foram Francisco e Jacinta, os “nossos pastorinhos”, diziam.
“Cansados mas felizes”, conta Júlio, estudante de Direito, 18 anos, do Porto. “Dormi quatro horas. Mas dormirmos aqui foi uma coisa espectacular. Só acordar e ver o santuário e estar aqui rodeado de tanta pessoa é inesquecível. Deitei-me às duas da manhã, sem me importar se ia dormir sete horas ou seis.”
“Não me posso esquecer do frio”, ri-se. “E a chuva também. São os ossos do ofício”.
O que via, quando olhava em volta? “Alegria. Disso não há dúvida. E via-se, obviamente, muita luz, não só no sentido literal.”
São Francisco, Santa Jacinta, os “nossos” pastorinhos
No dia 13, o momento em que se ouve “São Francisco” e “Santa Jacinta”, numa manhã quase limpa, é recebido cá em baixo, entre os jovens, com enorme emoção.
Maria Clara, 26 anos, estudante de Geologia, juntou-se ao grupo já em Fátima na sexta-feira. No sábado, já muito depois da noite ao relento, revê o dia que passou. “Eu conhecia pouco a história dos – agora – santos, mas é impressionante. Sendo crianças, a própria da Jacinta, que tinha tanto cuidado com os doentes e com os que não acreditam, é impressionante.”
“Vejo as minhas sobrinhas de cinco anos e fico a pensar: elas já rezam, já conseguem ter este tipo de consciência. É mesmo muito bonito.”
Antes da chegada à Cova da Iria, durante o caminho pelas estradas de Ourém, o jesuíta Ricardo Dias, 33 anos, passou horas a cantar para distrair o corpo do cansaço. Mal parava para ajeitar a roupa, já os adolescentes mais afoitos tinham avançado 300 metros.
De Guimarães, a dar aulas de Religião no São João de Brito, em Lisboa, acompanhou Vasco e o grupo de alunos do 11.º e 12.º anos. Trocavam piadas pelo caminho. Os dois de barba e óculos, gozavam que precisavam de “limpa pára-brisas” para os óculos e inventavam parvoíces para entreter as crianças. Mais perto de Fátima, revezavam-se com o coordenador da pastoral do colégio, o padre Luís Onofre, como porta-estandartes da bandeira do CSJB.
Gracinhas à parte, o caminho, diz Ricardo, foi “muito profundo e discernido”. “ É uma palavra que está muito aí a ser dita. Em muitas das conversas que íamos tendo, quer de forma mais individual quer a nível de grupo, os alunos diziam-nos isso: que é uma experiência que marca e que mexe muito cá dentro, e que põe a pensar. Isso é muito bom.”
E o que ficou, das palavras do Papa? “Que Ela [Nossa Senhora] é nossa Mãe e que com ela estamos seguros.”
E, U, A, C, R, E, D, I, T, O
No acampamento improvisado do Eu Acredito, a maioria dos jovens não se conhece entre si. Juntam-se por grupos, uns maiores, outros mais pequenos; há também quem venha aos pares ou sozinho.
Paulo, estudante do 11.º ano, veio do Porto. “O caminho até aqui foi simples”, conta. “Foi pequeno, interrompido duas ou três vezes por momentos de oração em que líamos leituras da Bíblia e reflectíamos um bocado sobre a vida no geral, quem somos, e quem temos à nossa volta.” Os mil que vieram do Porto chegaram de autocarro a Santa Catarina da Serra, fazendo a pé os cinco quilómetros finais até Fátima.
“Foi a primeira vez que vim a Fátima. Podia ter vindo quando era pequeno, mas nunca tive essa hipótese. Os meus pais nunca foram muito para aí virados”, conta a rir-se. Sem filtros, de sorriso rasgado, Paulo não esconde a alegria. “Estou a adorar, é incrível. É a primeira vez e vejo logo o Papa, assisto ao acenar dos lenços e das velas. Foram dois momentos que passei incríveis. E inesquecíveis.”
Gonçalo Guimarães de 15 anos, também veio do Porto. Queria ver o Papa, fazer novos amigos, e rezar “um pouco mais”. O caminho, “para quem fez Santiago de Compostela, é fácil”.
Em comum, todos têm as t-shirts azuis com as letras E, U, A, C, R, E, D, I, T, O. O movimento nasceu em 2010 com a visita de Bento XVI a Portugal, por iniciativa dos jovens de Schoenstatt, que quiseram juntar todos os movimentos juvenis católicos numa só massa para receber o agora Papa emérito. Centros universitários e colégios jesuítas, jovens do movimento Comunhão e Libertação, do Opus Dei, das Equipas de Jovens de Nossa Senhora, dos escuteiros, das paróquias, unidos sob o mesmo propósito: acompanhar o Papa, seja Ratzinger ou Bergoglio – não é o indivíduo, é o sucessor de Pedro que aqui se espera. Mas o protocolo não tem nada de formal.
Os mais novos, longe dos pais, aproveitam para dar uma de crescidos. Sem sapatos, de perna para o ar, espalham o farnel pelo chão e exibem com orgulho as marcas do cansaço, as meias furadas, até o escaldão. Os mais velhos fingem não reparar, concentram-se noutras coisas.
- O lencinho branco é já?
- Sei lá, se quiseres abana já!
- Oh, mas se há uma tradição, não me vou pôr a inventar!
- A sério que trouxeste um lencinho?
O adeus do Papa
Verónica Machado veio de Coimbra com a amiga Olinda. Com 32 e 34 anos, são peregrinas mais comedidas, mais arrumadinhas. Uma é educadora de infância, outra é professora de Formação Cristã e Educação Moral. Juntaram-se ao Porto em Santa Catarina da Serra. No dia 13 à tarde, visivelmente cansadas, aproveitam para comer sandes sentadas de costas para o sol.
“O que trouxe aqui foi a causa maior do centenário, este grande momento importante no nosso país e neste lugar de Fátima. Foi esse o motivo principal”, diz Verónica. “Quando o senhor padre diz: ‘a partir de agora será São Francisco e Santa Jacinta’, foi muito marcante.”
Com os olhos azuis semifechados pela luminosidade do recinto, explica a relação que tem com os pastorinhos. “É pelo facto de serem crianças muito simples e de um meio muito pobre, mas, ao mesmo tempo, na sua simplicidade, transmitirem esta fé, esta fé que nos leva a buscá-la em Deus.”
Do Papa Francisco guarda a proximidade e o tom das palavras. “Falou connosco com uma leveza… e marcou-me também o silêncio que se gerou quando se juntou ali diante de Nossa Senhora.”
E a viagem com os jovens, a confusão, a barafunda? “Foi uma aventura”, admite Olinda, a rir-se. “A aventura das comidas, de procurar as mochilas, ora íamos para aqui, ora para ali; mas foi viver uma união, gritar 'Papa Francisco, juntos em Cristo’.”
A aventura está a chegar ao fim. Dos altifalantes ouve-se dizer que Francisco se vai despedir da multidão passando pelo meio do Santuário. A última espera faz-se junto ao gradeamento, no chão, empoleirados nos bancos e cadeiras, à procura do melhor ponto de vista.
- ‘Tá a sair agora, ´tá a sair agora! 'Tou a ver melhor ali…
- Vai dar a volta, vai fazer agora a curva
- Viva o Papa! Viva o Papa!
E em poucos segundos, acabou.
“Assim de repente – ainda não digeri muita coisa – as duas coisas que mais me emocionaram foram o momento da canonização e o da visita do Santíssimo aos enfermos, aos doentes”, diz Vasco, a olhar ainda para o fundo do recinto, a Cruz Alta, por onde o Papa acaba de desaparecer.
Maria acrescenta: “A visita aos doentes com o Santíssimo exposto é mesmo bonita”. “Apesar de estarem ali, e de os vermos, é preciso tirar um momento para se estar lá, junto aos doentes”, diz. E foi isso que o Papa mostrou.
Nestas horas, um cântico entoou-se vezes sem conta, como hino: “Nós é que somos a juventude do Papa”. Olinda explica-o: “Quer dizer que acarinhamos o Papa. É essa a ideia.”