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Coreia do Norte. Um "país estranho" com "pessoas normais" (e não "lunáticos")

20 ago, 2015 - 17:07 • Teresa Abecasis (texto e vídeo)

Uma sul-coreana encontrou na Coreia do Norte "o país mais solitário do mundo" e nos norte-coreanos pessoas como as de Seul ou Lisboa. No meio da escalada de tensão entre as duas Coreias, a Renascença falou com Soon-Mi Yoo, autora de "Canções do Norte", documentário que incomodou os dois lados do paralelo 38.

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Coreia do Norte. Viagem a um país com "pessoas e não lunáticos"
Coreia do Norte. Viagem a um país com "pessoas e não lunáticos"

"Canções do Norte" deixa no espectador uma sensação ambígua: em vez de salientar tudo o que há de errado com o país mais fechado do mundo, onde se executam os dissidentes do regime e milhares de pessoas morrem à fome, coloca-o ao lado dos norte-coreanos. O filme, com co-produção portuguesa, estreia-se esta quinta-feira em Portugal.

Na primeira cena do filme, vemos dois ginastas numa coreografia arriscada, suspensos por uma corda muitos metros acima do solo. Dois focos de luz seguem os movimentos dos artistas, projectando a sua sombra numa parede, ao som de uma música bucólica. Os gestos são lentos, graciosos, perfeitos.

De repente, um dos ginastas cai. Os espectadores, até aí silenciosos, mantidos de fora deste quadro imaculado, soltam um grito enquanto o corpo do artista atravessa a escuridão em direcção ao solo. Uma rede de segurança interrompe a queda livre e segura-o. A cena é cortada.

Para Soon-Mi Yoo, realizadora sul-coreana a viver nos Estados Unidos, fazer um filme sobre a Coreia do Norte implica mergulhar nesta escuridão. Perceber o buraco negro de onde o país emergiu para conseguir perceber onde ele está hoje.

"Não pretendo desculpar ou justificar o regime norte-coreano", assegura, numa entrevista por videoconferência dada à Renascença. "Mas, para compreender o que está a acontecer na Península da Coreia e encontrar uma maneira pacífica de resolver o conflito, é preciso perceber melhor o que está a acontecer na Coreia do Norte e a maneira como eles pensam."

"Canções do Norte" cruza os raros momentos de espontaneidade que conseguiu filmar em três viagens ao país a norte do paralelo 38 na Península Coreana com uma série de imagens de arquivo de quadros perfeitos pintados pelo regime, de espectáculos, filmes e programas propagandísticos ali produzidos.

O resultado é um filme que pretende mostrar os norte-coreanos "como pessoas e não como lunáticos".

Os olhares que se cruzam com a lente de Soon-Mi Yoo são os mesmos que encontramos em Seul ou em Lisboa, onde a realizadora passou cinco semanas, quando estava acabar a edição do filme. "As suas principais preocupações são a família, o emprego, o amor, aquilo em que toda a gente pensa."

Já os trechos de filmes oficiais do regime que integram o documentário contêm uma carga dramática muito forte, uma característica que faz parte da cultura coreana e que Pyongyang sabe trabalhar.

"As emoções são a maneira mais rápida de chegar ao outro. Podemos tentar argumentar com alguém, mas, apesar de outra pessoa poder perceber os nosso argumentos, não chega a senti-los. Isso não é uma comunicação eficaz", explica Soon-Mi Yoo.

O país mais solitário do mundo

"Canções do Norte" foi feito em quatro anos, o último foi dedicado à edição. Cada cena que aparece "é muito bem pensada" e há muito material que ficou de fora. Ao longo do documentário, Soon-Mi Yoo vai partilhando os seus próprios pensamentos sobre a Coreia do Norte.

"O nosso país é um país de heróis". A propaganda ao regime está presente em todos os momentos da vida de um norte-coreano. Imagem: "Canções do Norte"

"Será a Coreia do Norte o lugar mais solitário no mundo? Um país sem amigos, sem história? Apenas mitos, repetidos até à exaustão de manhã à noite", escreve a dada altura.

Os norte-coreanos vivem numa sociedade completamente fechada ao exterior. Toda a informação a que têm acesso é controlada pelo governo. Para além disso, têm de participar regularmente em encontros organizados pelo partido.

O governo transmite-lhes uma mensagem de perigo iminente, personalizado na figura dos Estados Unidos. Os norte-americanos "vão bombardear o país e matar toda a gente", mas o "grande líder", Kim Jong-un, protege-os dessa ameaça.

O "grande líder" é a única figura de confiança numa narrativa onde nem a família é considerada segura. Numa cena do documentário, vemos uma criança que chora enquanto agradece a Kim Jong-un o facto de o ter promovido a representante da turma mesmo sabendo que o pai dele cometeu "um crime terrível" contra a pátria. Uma "notícia de sonho" que provocou a morte da mãe - "morreu a chorar" - conta o rapaz em lágrimas.

"Se tu pensas que a tua própria família não é de confiança, que o mundo exterior é uma ameaça e que a única coisa que tens é o partido, isso cria um sentimento de solidão muito grande", conclui Soon-Mi Yoo.

Um filme banido dos dois lados da fronteira

Filmar na Coreia do Norte foi uma negociação constante com os guias da viagem para perceber onde estavam os seus limites, mas sem querer ultrapassá-los. Qualquer estrangeiro que entre no país está sempre acompanhado e só pode percorrer os percursos autorizados.

Soon-Mi Yoo sabia destas regras apertadas à partida, mas contava conseguir filmar as pessoas com as quais se ia cruzando nos percursos obrigatórios para os turistas.

Os turistas na Coreia do Norte têm de seguir um roteiro completamente controlado. Imagem: "Canções do Norte"

"Sempre que eu tentava filmar, eles diziam-me para parar. Eu compreendo os guias, eles estavam a fazer o trabalho deles. Eu parava quando eles me mandavam, e depois voltava a tentar. Parava outra vez. Pedia desculpa. Foi uma luta constante ao longo da visita. Tive de ter algum cuidado para não ir longe de mais, e criar um verdadeiro problema."

O problema nunca surgiu, mas ouviu algumas, poucas, ameaças subtis. "Se calhar queres ficar no nosso bonito país mais tempo", chegaram a dizer-lhe.

Agora que o filme está acabado e já começou a ser exibido, Soon-Mi Yoo não tem maneira de saber o que pensa o regime do trabalho final. Tentou falar com o seu contacto dos Estados Unidos que fazia a ponte com a Coreia do Norte. Nunca teve resposta.

Não é só dentro das fronteiras do país mais fechado do mundo que o documentário pode não ser bem aceite. Nos festivais de cinema da Coreia do Sul, o país de Soon-Mi Yoo, o filme tem sido rejeitado. "O meu documentário tem partes de filmes que estão banidos na Coreia do Sul por razões de segurança", explica.

A sul do paralelo 38, a história da Península da Coreia é contada de maneira a salientar "a crueldade, a violência e a selvajaria dos comunistas" durante a guerra, mas os massacres aconteceram de ambos os lados.

"Há muitos factos históricos que a maioria das pessoas não sabe", lamenta Soon-Mi Yoo, e agora não está a falar apenas dos coreanos. "Ninguém sabe que os americanos bombardearam a Coreia do Norte. Não deixaram nada de pé. A ambição nuclear do país pode ter começado aí".

"Canções do Norte" teve a sua estreia mundial em Agosto do ano passado no Festival Internacional de Cinema de Locarno, onde ganhou o prémio de Melhor Primeiro Filme. Entretanto, tem vindo a juntar várias distinções em festivais de cinema por todo o mundo.

Em Outubro, no DocLisboa, foi distinguido com o Prémio Culturgest para Melhor Primeira Obra. A partir desta quinta-feira, pode ser visto em Lisboa, nas salas do cinema Medeia Monumental.

O filme é co-produzido pela Rosa Filmes. Soon-Mi Yoo está já a trabalhar num outro documentário, que incluirá uma parte sobre os portugueses missionários no Japão.

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