09 out, 2015 - 14:29 • Celso Paiva Sol
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“Eu já tinha visto pessoas a morrer, nós crescemos a assistir a execuções públicas constantes. Eu vi homens a serem enforcados em pontes. Vi pessoas a serem baleadas em execuções públicas. Mas, para mim, ver as pessoas a morrerem nas ruas de fome, pela primeira vez, isso é que foi realmente chocante.”
Aos 17 anos, Hyeonseo Lee fugiu da Coreia do Norte, o país que não era o “melhor do mundo” que a propaganda de Estado pintava. No livro “A Mulher com Sete Nomes” (ed. Planeta), agora editado em Portugal, conta a sua história – uma história de quem vive em perigo permanente, mesmo depois de deixar um país ditatorial.
Em entrevista à Renascença, Hyeonseo Lee conta como é viver no regime fechado dos “grandes e queridos líderes”, mas também como é difícil sair e encontrar um destino seguro. A história de vida de Hyeonseo é uma rara oportunidade de espreitar a Coreia do Norte, mas também o que espera quem de lá quer sair.
“Achamos que vivemos no paraíso”
O Estado controlou todos os aspectos da vida de Lee. E o Estado dizia-lhe que vivia num regime perfeito. Essa era – e é – a verdade única e absoluta de Pyongyang.
“Dizem-nos que existem países incrivelmente pobres e que são colonizados pelos imperialistas americanos. Que as pessoas lá vivem como escravos e que os americanos as matam, as executam. Quando ouvimos isto achamos que vivemos no paraíso.”
Quem vive no país mais fechado do mundo, não tem pontos de comparação nem outras referências que não sejam as da exaltação do próprio regime, refere a dissidente.
“Aquele tipo de regime não nos permite ter acesso a informações do exterior. Estamos isolados do mundo. Só temos um canal de televisão, que apenas passa programas de propaganda. Apenas ouvimos falar sobre o Kim Jong-il ou Kim Il-Sung. Ouvimos os seus nomes umas cem vezes por dia na televisão, os seus nomes são sempre associados a slogans de propaganda.”
O choque da “grande fome”
Nas memórias agora partilhadas, destaca-se a década de 90 e a forma como acabou por ser um ponto de viragem na percepção que Hyeonseo Lee tinha do seu país.
À morte em 1994 de Kim Il-Sung, o “grande líder” e fundador da Coreia do Norte, seguiu-se aquilo a que o regime chamou de tragédia da “grande fome”.
A culpa foi atribuída oficialmente à seca e aos bloqueios internacionais, mas o que o povo viu nas ruas foi pobreza, criminalidade, fome e indisciplina nas forças policiais e militares.
Hyeonseo Lee, como qualquer norte-coreano, já tinha assistido várias vezes a execuções públicas, mas ver pessoas a morrer de fome, num país que diziam ser o melhor do mundo, foi um facto novo e chocante.
“Eu comecei a ver pessoas a morrerem nas ruas. Antes só tinha visto pessoas a morrerem nos filmes e nas séries. Eu nunca pensei que as pessoas podiam morrer de cansaço em pleno século XX”, conta à Renascença.
Hyeonseo Lee, aos três anos, às costas da mãe. É a única fotografia de Lee tirada na Coreia do Norte
Depois de 17 anos a viver dentro dos parâmetros obrigatórios que orientam o crescimento de qualquer norte-coreano, o que incluiu o ingresso na Liga da Juventude Socialista aos 14 anos, Hyeonseo Lee cedeu à curiosidade de olhar para lá da fronteira.
A incursão na China deveria ser de dois ou três dias, mas acabou por transformar-se em quase 12 anos.
Uma segunda vida, passada em permanente clandestinidade, durante a qual aprendeu que a China não é o melhor destino para quem foge da Coreia do Norte.
“Quando cheguei à China, ‘uau’, aquilo era espantoso! Não há imagens para o descrever. Depois, descobri que o brilhante e novo mundo na China era para todos neste mundo, mas não para os desertores. Descobri que o governo chinês captura os desertores e manda-os de volta para a Coreia do Norte. Eles fazem isso mesmo sabendo que os desertores vão ficar com graves problemas e que alguns serão executados publicamente, presos ou torturados. Eles sabem de tudo, mas, mesmo assim, mandam os desertores de volta, porque a Coreia do Norte e a China são aliadas.”
“Os ditadores não duram para sempre”
Em 2008, fazendo-se passar por cidadã chinesa, usando um dos sete nomes que foi adoptando durante a clandestinidade, Hyeonseo Lee conseguiu chegar à Coreia do Sul e trazer para junto de si a mãe e o irmão.
Agora, já como estudante universitária, activista dos direitos humanos e autora destas memórias, Hyeonseo Lee esforça-se por explicar de onde vem e como é difícil tentar alterar as coisas.
“Na história podemos ver que os ditadores não duram para sempre. O meu povo vive há sete décadas no sofrimento. O ditador actual, Kim Jong-un, é completamente louco. Até o seu pai, Kim Jong-il, que foi o ditador mais louco da história, não fez as coisas que o filho agora está a fazer”, conta a refugiada.
“As pessoas do ‘mundo exterior’ estão sempre a perguntar por que razão os norte-coreanos não fazem nada para os parar. A verdade é que, se alguém tentar fazer alguma coisa, sabe, a priori, que pode ser executado publicamente, ver toda a sua família a desaparecer no meio da noite ou arriscar-se a ir parar a um dos campos de concentração, para onde vão os presos políticos. Ninguém arrisca sabendo o que lhe pode acontecer”, sublinha Hyeonseo Lee.
Sobre o futuro, diz acreditar na reunificação das Coreias, embora reconheça que o processo será lento e difícil.
“Eu acredito que a mudança tem que vir do círculo que rodeia o ditador. Aquelas pessoas têm um poder semelhante ao do ditador. Será muito melhor se removermos o Kim Jong-un do sistema de poder na Coreia do Norte. O novo Governo tem que fazer melhor, tem de começar a falar com a comunidade internacional ou fazer uma abertura económica. Existe ainda um longo caminho a percorrer para que se possa pensar na reunificação.”
Se pudesse escolher como seria o futuro dos norte-coreanos, Hyeonseo Lee não tem dúvidas de que seria poderem viver como os irmãos do Sul.