08 abr, 2016 - 22:43 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Um auditório cheio, quase 300 pessoas escutam em silêncio os acordes de uma guitarra portuguesa. Pedro Silva, há mais de 20 anos músico profissional em Nova Iorque, dá o mote para uma sessão em que Portugal e os portugueses foram objecto dos maiores elogios.
Não, não se trata de mais uma sessão de nostalgia da pátria promovida pela comunidade portuguesa em Nova Iorque. Na sala estão até muito poucos portugueses e talvez seja essa a razão por que só se ouvem elogios e não críticas ao país. Os elogios vêm de americanos que estão eternamente gratos a Portugal e a um português em particular. A um homem que salvou da morte os pais e os avós de muitos dos presentes e mesmo alguns dos presentes.
Aristides Sousa Mendes, o diplomata português que, em Junho de 1940, decidiu dar vistos, em Bordéus, a cerca de 30 mil refugiados da guerra, na sua maioria judeus, é o principal responsável por este auditório cheio. Literalmente. Se não fosse ele, alguma desta gente não estaria viva, e muita nem sequer tinha nascido. Isso percebe-se melhor num momento particularmente tocante da sessão, quando alguém da mesa pede a todos aqueles com familiares salvos por Aristides Sousa Mendes que se levantem. Quase metade da sala! São avós, pais e netos que sabem de certeza certa que foi Sousa Mendes que lhes permitiu a sobrevivência e a existência.
A gratidão e a admiração destas centenas de pessoas pelo diplomata português é ilimitada, ele é um herói que desafiou o ditador Salazar para fazer “the right thing”, aquilo que era justo. No auditório do Centro da História Judaica não há dúvidas sobre isso e todos sabem como Aristides Sousa Mendes pagou cara essa ousadia perante o regime. Todos sabem como ele acabou expulso da função pública, impedido de exercer a sua profissão de diplomata e remetido à miséria.
Mas nem isso abalou a sua determinação e dignidade, valores que transmitiu à família. Sheila Abranches-Pierce, neta de Aristides, americana da Califórnia, testemunha que nunca ouviu qualquer lamento dos seus pais ou dos seus tios sobre a atitude do avô que conduziu a família à miséria. À Renascença, recorda como o pai sempre se sentiu um “americano com sotaque” e a nostalgia que o invadia quando ia a Portugal. “Mas nunca o ouvi dizer uma única vez que se o meu avô não tivesse feito o que fez, ele poderia ter vivido em Portugal. Pelo contrário, sempre se orgulhou do meu avô e sempre disse que era importante divulgar o seu exemplo”. O pai de Sheila era o filho mais novo de Aristides, aquele que viveu o drama de Bordéus com menor consciência dos perigos corridos, tinha apenas cinco anos.
Um ano mais novo era Jean-Claude van Ittalie, que vivia em Bruxelas quando os alemães invadiram a cidade. Acordou com o ruído dos bombardeamentos para ver a mãe a meter à pressa alguns haveres numa mala e fugirem da cidade. Chegaram a Bordéus de automóvel e Jean-Claude ainda se lembra que havia uma fila de milhares de pessoas frente ao consulado português a tentar obter vistos. Mas o acaso fez com que não esperassem muito tempo. “Havia um jovem judeu alemão, de 14 anos, também em fuga, que organizava a entrada e saída das pessoas. Percebeu que tínhamos carro e disse ao meu pai que o metia lá dentro se ele o levasse connosco no carro”, contou à Renascença.
O pai de Jean-Claude, como muitos outros, nem fazia ideia de que Sousa Mendes passava os vistos à revelia do Governo português, mas hoje este sobrevivente diz que Aristides “recusou a noção convencional de obediência enquanto cônsul-geral de Portugal em Bordéus”, e que foi graças a isso que ele e a família sobreviveram. “O Aristides Sousa Mendes foi um herói”, diz, num tom sereno e muito convicto, como quem afasta a suspeita de que o afirma por ser parcial na questão.
Um herói celebrado na quinta-feira à noite pela comunidade judaica de Nova Iorque, quando passam 60 anos sobre a sua consagração como “Homem Justo entre as Nações”, distinção conferida pelo Yad Vashem, a autoridade (e museu) israelita dedicada à recordação do Holocausto. Entidades como o já mencionado Centro da Histórica Judaica, a Fundação Sousa Mendes, a Federação Sefardita Americana, a Sociedade Histórica Judaico-Americana, a Fundação Raoul Wallenberg uniram esforços com algumas portuguesas como o Consulado-Geral de Portugal em Nova Iorque, o Museu Virtual Aristides Sousa Mendes e a Câmara Municipal de Almeida para a sessão de evocação, mas também para inaugurar uma exposição dedicada a Aristides e à época em que Portugal recebeu alguns milhares de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Exposição em que figura material vindo de Portugal.
O próprio presidente da Câmara de Almeida, António Batista Ribeiro, compareceu na cerimónia porque é neste município que se situa Vilar Formoso, a fronteira onde chegaram os refugiados que traziam os vistos passados em Bordéus pelo cônsul português. E ali vai ser criado um museu alusivo à época, cujo projecto foi explicado pelas suas responsáveis científicas – a arquitecta Luísa Pacheco Marques e a historiadora Margarida Ramalho, igualmente coordenadoras do Museu Virtual Aristides Sousa Mendes. Trata-se essencialmente da recuperação de dois armazéns contíguos à estação do caminho-de-ferro e da própria gare do comboio, por onde na década de 1940 os refugiados entravam no país. Daí que o nome do futuro núcleo museológico seja “Vilar Formoso: a Fronteira da Paz”. Uma designação que parece bastante apropriada já que só quando chegavam a Portugal, após atravessarem a Espanha franquista, aliada de Hitler, é que os refugiados se sentiam em terreno seguro.
Entusiasta do projecto, o autarca de Almeida contou à Renascença que foi ele próprio a avançar com a ideia quando percebeu a importância histórica de Vilar Formoso naquela época. “Uma das vezes que fui a Lisboa fui ter com as responsáveis do museu virtual, apresentei-me e disse-lhes ao que vinha”. A partir daí as coisas não mais pararam. Da Fundação Grant, norueguesa, vieram cerca de 350 mil euros e a autarquia está disponível para cobrir o resto do investimento caso não surjam mais apoios financeiros. Segundo Batista Ribeiro, a totalidade do projecto deverá custar entre 700 e 800 mil euros, uma verba que não parece exagerada a quem faz questão de preservar uma memória de que o país tem razões para se orgulhar.
De honra e responsabilidade em celebrar Aristides Sousa Mendes falou também a cônsul-geral portuguesa em Nova Iorque, Manuela Bairos, que aludiu à crise actual dos refugiados que se vive na Europa, para confessar um dilema de consciência: “É difícil recusar um visto nos dias de hoje quando pensamos em Aristides Sousa Mendes”. Depois lembrou que o diplomata português era formado em Direito e que uma forma interessante de o homenagear seria criar uma cátedra e uma bolsa de estudo com o seu nome numa das faculdades de Direito mais prestigiadas de Nova Iorque, ligada à comunidade judaica: a Cardoso Law School.
A exposição sobre Aristides Sousa Mendes, intitulada “Portugal, a última esperança: os vistos de Sousa Mendes para a liberdade” estará patente até 9 de Setembro e a entrada é livre.