13 abr, 2016 - 09:27 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Foi um António Guterres confiante e determinado que se apresentou terça-feira perante a Assembleia Geral das Nações Unidas para defender o seu programa de candidatura a secretário-geral da organização.
Confiante, mas nada arrogante, Guterres proclamou mais do que uma vez a sua humildade e o seu sentido de serviço público para rejeitar dois entendimentos negativos da função a que se candidata: não será um secretário no sentido de um burocrata e não será um general no sentido de comandar. Tentará, sim, construir consensos através do diálogo para corresponder aos objectivos dos países-membros da ONU.
Consenso e diálogo foram duas das palavras mais utilizadas pelo antigo primeiro-ministro, que chegou a ironizar com o facto de em Portugal, quando chefiou o Governo, ter sido criticado por dialogar demasiado. Foi apenas uma das cinco referências que fez ao seu passado político em Portugal; mas já lá vamos. Antes disso, é importante salientar que dificilmente a prestação de Guterres poderia ter corrido melhor.
Perante uma sala cheia, onde estava representada quase a totalidade dos países com assento na ONU, Guterres começou por fazer uma apresentação breve do seu programa eleitoral e fê-lo sem ter qualquer nota, qualquer papel à frente. E nessa intervenção passou do inglês ao francês e ao espanhol com uma fluência e à-vontade pouco comuns.
Para quem conhece a capacidade comunicativa e a facilidade discursiva de Guterres isto não terá sido surpresa, mas num fórum mundial como a ONU a imagem deixada pelo candidato português esteve ao mais alto nível. Não teve uma única hesitação, um embaraço, um abrandamento de ritmo, um deslize no debate de todos os temas que lhe foram colocados.
Respondeu sem rodeios a todas as perguntas, excepto a uma. Quatro vezes foi inquirido sobre o que pensava da chamada reforma do Conselho de Segurança (CS), expressão que remete para o alargamento do número de países-membros permanentes, que hoje são apenas cinco.
Como as perguntas iam surgindo agrupadas em três ou quatro intervenções de cada vez, Guterres evitou sempre referir-se ao assunto. Até que quase no final da sessão, o embaixador sul-africano insistiu no tema e o candidato não lhe pôde fugir.
Começou justamente por gracejar que o autor da pergunta lhe queria arranjar problemas com os membros do Conselho de Segurança e depois refugiou-se numa resposta algo ambígua, ao referir que a actual composição reflectia a realidade do pós-guerra, que já não existe, mas sublinhando também que esse é um tema que extravasa as competências do secretário-geral.
Claro que as perguntas sobre este tema tinham sido colocadas sobretudo por embaixadores de países aspirantes a integrar um remodelado CS - Índia, Japão, Alemanha, África do Sul – mas Guterres não se quis comprometer.
Ficou-se sem perceber se por razões de convicção se por razões meramente tácticas, dado que defender o alargamento do CS não é do agrado das actuais cinco potências que o integram e delas depende afinal a escolha do futuro secretário-geral.
No entanto, não se inibiu de reclamar para si os louros de ter reformado o Alto Comissariado para os Refugiados, a que presidiu durante dez anos, e de criticar a excessiva centralização e burocracia da ONU. Sejamos claros, disse, “fazemos reuniões de mais, com pessoas de mais, com temas de mais e tomamos decisões de menos”.
Outro tema sensível no domínio das reformas é o da promoção da paridade de género nos cargos da organização. Guterres recordou que, nesta matéria, os objectivos tinham falhado porque o que estava previsto era que em 2015 houvesse paridade entre homens e mulheres em enviados especiais e representantes em missões.
Contudo, hoje verifica-se que 84% dos que ocupam aquelas posições são homens. O candidato afirmou-se “totalmente comprometido” com a paridade, prometendo definir um plano calendarizado cuja implementação possa ser escrutinada por todos a qualquer momento. E aqui fez outra referência ao seu passado político em Portugal, recordando que introduziu quotas de 30% de mulheres nos cargos dirigentes do PS quando o dirigiu nos anos 1990, o que “então não era fácil na Europa do Sul”.
Ironicamente, esta causa da igualdade de género, com a qual se confessa totalmente comprometido e em que se afirmou como uma espécie de pioneiro, poderá ser a razão mais forte para a sua derrota nesta corrida a secretário-geral.
Como já assinalámos, há uma crescente pressão nas instâncias da ONU para que seja uma mulher a ocupar o cargo agora em disputa e no próprio dia em que Guterres veio defender a sua candidatura surgiu um documento assinado por 56 países, uma iniciativa da Colômbia, a advogar a escolha de alguém do sexo feminino. O número representa cerca de 25% do universo eleitoral, mas que pode vir a aumentar.
No final da sessão, interrogado pela Renascença sobre se o critério do género não poderia distorcer a escolha do candidato mais qualificado para o cargo, Guterres hesitou um pouco antes de repetir que da sua boca ninguém ouvirá qualquer crítica a uma política de promoção da paridade entre géneros.
A questão é que o seu compromisso em aplicá-la pode não ser suficiente para convencer quem decide. Lembremo-nos que os Estados Unidos têm na ONU uma embaixadora – Samantha Power – e poderão vir a ter em Novembro uma presidente – Hillary Clinton.
Uma outra referência ao seu passado político em Portugal surgiu quando falava sobre a gestão de crises internacionais e a experiência adquirida no âmbito do Comissariado para os Refugiados. A certa altura, num toque de boa disposição, disparou: “fui líder de um partido durante dez anos, não há nada melhor para gerir crises”.
O objectivo de Guterres, contudo, não é ir para a ONU gerir crises, mas sim tentar evitá-las. Daí que ponha sistematicamente a tónica na prevenção de conflitos, mais do que na sua resolução. Prevenção é uma palavra-chave da plataforma programática que apresentou e que engloba até a questão do terrorismo.
Guterres fala do princípio da prevenção como essencial para combater o terrorismo, admitindo o uso da força, mas sem esquecer que esta é também uma luta por valores.
Sublinha mesmo que há um “dever moral” de acabar com o terrorismo, mobilizando as pessoas contra a intolerância, o extremismo violento e a radicalização. E neste aspecto mostra-se determinado em promover a inclusão social como o melhor antídoto contra o racismo, a xenofobia, a islamofobia e o anti-semitismo, fenómenos que têm crescido nas nossas sociedades cada vez mais multiétnicas, multiculturais e multirreligiosas.
“Isso é bom”, acentuou, lembrando que a Europa, por exemplo, necessita de imigração porque tem taxas de crescimento demográfico muito baixas. Deu aqui o exemplo português, mais uma vez, ao citar os dados estatísticos nacionais de 1,2 filhos por mulher fértil e ao falar da sua própria mãe que, com 93 anos, necessita de acompanhamento permanente, uma tarefa “sempre prestada por imigrantes”.
Antes de terminar as duas horas exaustivas de perguntas e respostas, Guterres teve ainda a oportunidade de fazer uma última referência a Portugal, para lamentar a expulsão dos judeus nos séculos XV e XVI pela Inquisição, que considerou “um grande erro” histórico.
Quando interrogado pelos jornalistas, após a sessão, sobre se tinha surgido alguma questão inesperada, Guterres disse que não, como que reflectindo o seu elevado grau de conhecimento dos temas e também a sobejamente conhecida agenda da ONU, cujos tópicos se costumam arrastar durante décadas sem que apareça alguém com um impulso verdadeiramente reformista capaz de a transformar.
Determinação para o fazer parece não faltar ao candidato português, podem é faltar-lhe os votos necessários para tal oportunidade. Mas se isso acontecer, não será seguramente por causa da sua prestação de terça-feira na sede das Nações Unidas em Nova Iorque. Nessa, ele esteve ao seu melhor nível.