26 mai, 2016 - 14:47 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
É possível contrariar a sua própria natureza? No caso de Donald Trump parece difícil, muito difícil.
Para um candidato que subiu nas sondagens à custa de um discurso de provocação permanente, de insultos e achincalhamentos, assente em preconceitos raciais, morais e de género, não parece fácil vestir uma pele diferente. Sobretudo porque foi justamente essa atitude provocadora, de ruptura com o politicamente correcto e com o establishment partidário, que lhe valeu a vitória sobre os adversários e lhe vai valer a nomeação do Partido Republicano às eleições presidenciais de Novembro.
O próprio Trump mostrou ter disso consciência quando admitiu que “tinha de fazer campanha assim” para vencer e que sabia muito bem como “se tornar presidencial”. Mas ao mesmo tempo disse recear que isso o torne “chato, muito chato”.
Agora que a campanha das primárias acabou e Trump garantiu a nomeação, seria a hora de curar as feridas abertas durante esse período de luta acesa em que quase ninguém escapou à sua língua desbragada. É isso que querem os responsáveis do GOP (Grand Old Party) e todos aqueles que só aguardam um bom pretexto para lhe declararem o seu apoio e enterrar o machado de guerra. Querem unir o partido em torno do seu candidato oficial e cerrar fileiras contra Hillary Clinton.
Mas Trump não está a ajudar. E porquê? Porque teme perder votos se se tornar mais presidencial ou porque a sua natureza torna essa mutação impossível? As opiniões dividem-se no Partido Republicano. Há os que já se lhe renderam porque gostam dele ou porque lhe reconhecem a legitimidade dos votos. Há os que esperam ainda ansiosamente que ele contrarie a sua natureza e se torne um candidato aceitável, presidencial. E há os que o consideram um caso perdido que arrastou consigo o partido para a perdição. Eleitoral e de valores, entenda-se.
Esta terça-feira, Trump voltou a dar razão aos últimos. Num comício no Novo México, desatou a criticar a governadora do estado, Susana Martinez, uma destacada republicana. Considerou-a responsável pelas “desgraças económicas” no estado, culpou-a pelo aumento do desemprego e do crime, e disse que tinha triplicado o número de pessoas a viver com senhas de alimentação. “A culpa é da vossa governadora. Temos de fazer com que ela se mexa mais. Ela tem de fazer um trabalho melhor”.
Depois acusou-a ainda de ter autorizado a instalação de inúmeros refugiados sírios no Novo México, o que não corresponde à verdade, já que Martinez se opôs vigorosamente ao plano do presidente Obama para distribuir refugiados sírios pelos diferentes estados.
Mas mais do que o tom e a substância das acusações, conta a inconveniência e inabilidade do ataque à primeira governadora hispânica do país, uma mulher que é uma estrela em ascensão no partido e que preside à Associação dos Governadores Republicanos.
O motivo do ataque estará no facto de Susana Martinez ser crítica de Trump e ter recentemente considerado, em privado, a sua proposta de construir um muro na fronteira com o México “irrealista” e “irresponsável”. Além de que não o apoiou enquanto candidato do partido, dizendo apenas que não votará em Hillary Clinton. E não compareceu ao comício de Trump, claro, por estar “bastante ocupada”.
Na atitude do multimilionário, mais uma vez, a vingança pessoal terá triunfado sobre o discernimento político. Hostilizar um destacado membro republicano, uma mulher, uma hispânica, num estado onde existe a maior concentração de população hispânica do país, não é seguramente contribuir para curar as feridas no partido. E sobretudo é reavivar a hostilidade que mostrou ao longo da campanha a dois grupos de eleitores onde as sondagens o colocam em pior posição: as mulheres e os hispânicos.
Susana Martinez não é a única governadora republicana relutante em apoiar Trump. Nikki Alley, a governadora da Carolina do Sul, que apoiou Marco Rubio nas primárias, também teve direito aos remoques de Trump a propósito desse apoio. E o multimilionário voltou a atacar Mitt Romney, chamando-lhe “estúpido” e dizendo que ele “anda como um pinguim”. Tudo isto em menos de 24 horas.
Romney, que há cerca de dois meses fez uma declaração arrasadora para as ideias defendidas por Trump, está a ser pressionado para se candidatar contra o multimilionário, à margem do partido e em defesa dos “valores conservadores” típicos dos republicanos.
Quem pôs o dedo na ferida foi John Kasich. O governador do Ohio, que concorreu contra o multimilionário, disse a um jornal local que talvez não lhe seja possível apoiar Trump por causa do seu negativismo e da sua propensão para encontrar sempre bodes expiatórios e atirar as pessoas para a valeta. “A menos que haja uma mudança nesta atitude, não posso fundir-me com ele”, afirmou, usando uma analogia com as fusões empresariais. “Se os valores não forem semelhantes, se a cultura não for parecida, é muito difícil fazer uma fusão”.
Ora, se esta diferença de culturas persistir porque Trump obedece mais à sua natureza do que aos raciocínios políticos, tudo leva a crer que a sua candidatura estará condenada ao fracasso. O Ohio de Kasich é um estado fundamental para vencer as eleições. Considerado um estado-padrão, costuma reflectir com fidelidade as tendências eleitorais do país no seu todo. “Swing state” por excelência, quem vence no Ohio geralmente vence as eleições. Por isso, desperdiçar o apoio do seu governador, um homem bastante popular no estado – o único que venceu nas primárias – e ainda por cima membro do mesmo partido pode equivaler a um suicídio político.
E o mesmo se diga da atitude em relação ao eleitorado latino, concentrado sobretudo em estados do sul e na Califórnia. Com as suas propostas de expulsão de 11 milhões de imigrantes ilegais, da construção de um muro na fronteira e do insulto aos “mexicanos” que apelidou de “ladrões”, “violadores” e “contrabandistas”, Trump dificilmente conseguirá garantir sequer 20% destes eleitores, um “score” ainda mais baixo do que Mitt Romney obteve em 2012. E em estados como a Florida, por exemplo, a conquista do voto latino é decisiva para vencer.
Voltamos, portanto, à questão inicial. Será Donald Trump capaz de contrariar a sua natureza ou fará como o escorpião que mordeu mortalmente o hipopótamo a meio do rio, afogando-se com ele?