13 jul, 2016 - 12:08 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Veja também:
Nenhum dos candidatos a secretário-geral da ONU guardou um trunfo na manga para jogar no debate de terça-feira. Mas enquanto uns se limitaram a debitar lugares comuns, reafirmando pontos das suas candidaturas, outros quiseram mostrar alguma rebeldia. Outros ainda souberam evitar ambas as armadilhas e colher o aplauso da audiência, que enchia por completo a sala da Assembleia Geral das Nações Unidas.
António Guterres está entre estes últimos. Apesar de não afirmar nada de novo face ao seu programa de candidatura, soube cativar o auditório com a substância das suas propostas e com a fluência do seu discurso.
Duas mulheres e um homem protagonizaram a determinação em reformar a instituição, através de um discurso crítico em relação às práticas correntes, numa estratégia diferente da maioria.
Os rebeldes
A croata Vesna Pusic, ex-ministra dos Negócios Estrangeiros, entrou a matar, começando por falar do “cinismo” que caracteriza as relações internacionais e que contagia o funcionamento da ONU, o que gera profundos ressentimentos por todo o mundo.
Criticou a obsessão pela popularidade que caracteriza os líderes actuais e o consequente populismo que os leva à falta de coragem de assumir posições correctas só porque são minoritárias.
Definiu-se ainda como feminista para lamentar que, até hoje, a ONU tenha sido governada só por homens e, nessa medida, tenha perdido 50% da experiência humana.
Também a costa-riquenha Christiana Figueres, uma especialista em questões climáticas que apresentou a candidatura apenas na semana passada, se mostrou assertiva e crítica em relação ao funcionamento da organização.
Advogou “tolerância zero” para os abusos sexuais cometidos por tropas sob égide da ONU – “imunidade não pode ser impunidade” – e foi implacável com a responsabilidade da organização na epidemia de cólera no Haiti.
Foi a única no seu painel a levantar a mão quando os moderadores perguntaram se algum dos candidatos estava disposto a pedir desculpas públicas ao povo haitiano pelos milhares de mortes causados pela cólera naquele país, causada por pessoal que trabalhava para as Nações Unidas.
“Não foi intencional, mas devemos assumir a responsabilidade”, disse com firmeza, lamentando que a organização não estivesse em condições de pagar indemnizações pelos danos provocados. Figueres não poupou ainda a burocracia interna, considerando “inaceitável” que a contratação de pessoal demore 18 meses em média.
Um único homem ombreou com o criticismo destas duas candidatas. Foi o sérvio Vuk Jeremic, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo presidente da Assembleia Geral da ONU, que falou de “estagnação e falhanço” a exigirem “acção rápida em vez de retórica”.
Na delicada questão da reforma do Conselho de Segurança, não hesitou em afirmar-se a favor e foi mesmo ao ponto de dizer que, se os países membros querem as mesmas caras a governar a organização, “então não sou o vosso candidato”.
Acontece que numa organização que praticamente não se reforma desde a nascença, há 70 anos, fazer um discurso de ruptura com o “status quo” não parece ser a forma mais sensata de conquistar simpatias.
Os mais sólidos
A maioria dos candidatos optou por um discurso prudente, com observações críticas aqui e ali, mas sempre acompanhado por elogios à missão inigualável da ONU no mundo.
Discursos do sistema, com a típica retórica e dominados pelo debitar de lugares comuns sobre a paz, os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável e as mudanças climáticas.
Mas dentro dos prudentes, houve três candidatos que se destacaram pela solidez da argumentação e pela experiência evidenciada. Foram eles a argentina Susana Malcorra, a neo-zelandesa Helen Clark e o português António Guterres. Conseguiram evitar os lugares comuns, revelando estar bem por dentro dos problemas e ter soluções concretas para apresentar.
Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia e actual líder do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) teve mesmo a oportunidade de, a certa altura, censurar subtilmente a sua colega de painel Christiana Figueres, quando se referiu às responsabilidades da ONU na epidemia de cólera no Haiti.
Afirmou não lhe parecia “sensato” assumir antecipadamente tais responsabilidades quando o caso estava entregue aos tribunais. Um outro remoque revelou de novo a sua acutilância – quando se discutia a questão da rotatividade do cargo de secretário-geral entre diferentes regiões do mundo e os candidatos do Leste da Europa defendiam que esta era a sua vez, porque nunca houve ninguém daquela proveniência geográfica. Clark foi seca: “Precisamos do melhor” e não de quem venha desta ou daquela região.
Um argumento que, curiosamente, também se aplica à questão do género, conhecida que é a pressão para que seja uma mulher a ocupar o cargo de secretário-geral. Neste aspecto, seria um homem apresentar as propostas mais concretas para resolver a disparidade existente entre homens e mulheres no seio da ONU, onde mais de 80% dos cargos estão entregues a elementos masculinos.
Guterres tem sido muito claro sobre este ponto: se for eleito, compromete-se a atingir a paridade entre géneros, através de um roteiro que defina metas periódicas, promova avaliações independentes e coteje permanentemente os resultados com outras organizações multinacionais.
O candidato português vai mais longe e defende que só o fortalecimento das mulheres lhes dará acesso aos cargos de maior responsabilidade.
A ironia é que Guterres parece ter, entre os candidatos, as ideias mais elaboradas sobre como promover a igualdade de género, mas o facto de ser homem pode também afastá-lo do cargo.