06 nov, 2016 - 12:39 • Rosário Silva
“Skaramangas, Grécia: 3.200 refugiados, 60% sírios, 20% yazidis turcos, 20% afegãos. Um garoto com um equipamento chinês da seleção portuguesa de futebol acelera numa trotineta. Uma adolescente de olhos enormes e mãos estendidas: "Nice to meet you. Where are you from? I'm from Syria. What's your name? Thank you for being here."
Assim começa uma espécie de diário que Sofia Lobo foi actualizando na sua página do Facebook, em Agosto passado, quando decidiu colaborar como voluntária com a “Drop in the Ocean”, uma pequena organização não-governamental (ONG) norueguesa.
A actriz portuguesa largou tudo e tirou férias para ajudar no campo de refugiados, uma das mais fortes experiências dos seus 50 anos de vida.
“Foi uma prova muito intensa em termos emocionais e eu que não acredito que o mundo vai melhorar, sou uma céptica, acabei por constatar que a esperança e a fé são para muitas destas pessoas a única coisa que ainda as move”, conta à Renascença a actriz da companhia de teatro Escola da Noite, de Coimbra.
"Girls will be girls. Na Grécia, na Síria onde for". Foto: Sofia Lobo
Sofia não foi representar nem realizar qualquer actividade ligada à sua profissão. Foi, como ela própria diz, “simplesmente, para estar”.
Permaneceu no apoio crianças. “Alguns de nós andávamos pelo campo com música bem alto e os miúdos iam-se somando, davam-nos as mãos, saltitavam à nossa frente. Já no descampado de cimento, fazíamos uma roda, cantávamos (em inglês, árabe e farsi) e baloiçávamos um maravilhoso arco-íris que os garotos adoravam”, lembra com saudade.
O tempo era preenchido em actividades lúdicas. No chão, estendiam-se tapetes e em conjunto faziam “pulseiras, colares, desenhos, recortes, jogamos à bola, saltamos à corda”.
"Fazíamos uma roda cantávamos e baloiçávamos um maravilhoso arco-íris que os garotos adoravam". Foto: Sofia Lobo
Aos miúdos, nem sempre os mesmos, juntavam-se, por vezes algumas mães. Um dia, uma progenitora pediu que, com os meios que dispunha, fizesse eco da sua história. E Sofia contou-a para o mundo virtual.
“Zozan Ramadan e Massoud Abdoulah são sírios, chegaram a Skaramangas no dia 12 de Março. Decidiram fugir da Síria quando uma bomba fez desabar o telhado do prédio em que Zozan estava a trabalhar e muitas pessoas morreram. Viviam bem em Damasco. Ela é dentista, ele engenheiro, tinham casa, carro, ouro. Têm três rapazes adolescentes e a menina, uma pequenita linda que pouco sorri”. Assim começou o “post” no Facebook.
“Há um ano, o filho mais velho, de 17 anos, decidiu emigrar para a Alemanha. Está perdido sem papéis algures em Hamburgo. Está doente, diz a mãe, e não sabem como o recuperar. Zozan tem um irmão médico em Berlim, mas que não procura o sobrinho talvez com medo de perder o emprego”.
“Zozan e Massoud andam de cá para lá e dizem-lhes que sem papéis é difícil e que a questão é entre os governos grego e alemão. Zozan pergunta-me inocentemente se não posso passar pela Alemanha a caminho de Portugal à procura do seu filho. Zozan não dorme, nem com os comprimidos que lhe dão na Cruz Vermelha.”
“Não fazem nada no campo, exceto ver os dias passar. Não gostam da comida que lhes dão, mas não têm dinheiro para comprar outra. Sentem os filhos, que eram bons alunos, definhar, sem escola, sem futuro, sem presente. Perdidos numa imensidão de cimento à beira-mar, Zozan chora, chora muito. ‘O meu cérebro já não funciona. Só tenho água dentro da cabeça.’ Pedem-me ambos desculpa por me estarem a incomodar e Massoud quer ainda oferecer-me mais bolachas, uma maçã, chá. São apenas uma família entre os 3.200 habitantes de Skaramangas. Não são números, são pessoas. Pessoas concretas, desesperadas, num mundo árido de betão”, escreveu Sofia, no dia 25 de Agosto.
Campo de refugiados de Skaramangas. Foto: Sofia Lobo
A história de Zozan e Massoud foi uuma das muitas que a actriz, no papel real enquanto voluntária, ouviu nas duas semanas que passou na Grécia. Na memória, a vivência de um dos miúdos sírios que demorou cinco meses a chegar ao campo com a mãe e os três irmãos. Todos rapazes com 3, 10, 11 e 13 anos. Na ocasião aguardavam, ansiosos, a chegada do pai que estava da Alemanha. Na Síria os pais eram professores, ele de inglês, ela de árabe.
Um dia, no final das actividades “disse-me "wait here" e voltou com um pequeno bloco de apontamentos. Estava a aprender grego. "Tomorrow you'll come, yes? So I'll teach you some greek", relembra Sofia Lobo que mostra os seus braços cheios de pulseiras. “Não consigo tirá-las. Vão ficar aqui até se desfazerem”, afiança, sorrindo.
Pulseiras, desenhos, canções, choros e risos, o pouco de muito que Sofia recebeu. Não havia dedo das mãos que chegasse para cada uma das crianças que pediam atenção, afecto.
O coração ficou, de modo particular, com um garoto cuja história não quer revelar por “respeito e pudor”.
Mas recorda a sua fiel companhia desde o primeiro dia. “Ajudava-me com os pequenitos, tomava conta dos meus pertences. Fez-me pulseiras (uma com as cores da bandeira portuguesa), desenhos, bonecos, flores de enorme criatividade e talento. Raramente sorria ou falava, mas fomos sempre cúmplices nos silêncios e nos abraços. Um dia contou-me a sua história e ficar-lhe-ei eternamente grata pela confiança. Sabemos que não devemos ligar-nos aos miúdos, que sofreremos nós mas mais eles no momento da nossa partida. Mas este, este garoto extraordinário enche-me de saudades e faz-me pingar o coração”, havia de escrever no seu diário a poucos dias de regressar a Portugal, onde chegou no final de Agosto com o “coração meio estraçalhado, mas de alma cheia.”
“Estas pessoas são boas para quem lhes quer bem, para quem as olha nos olhos e lhes sorri e lhes aperta a mão” prossegue.
“Deixaram tudo o que tinham para trás, algumas delas passaram por atrocidades inimagináveis e só querem uma oportunidade e um pouco de carinho. São imensamente generosos, mesmo os miúdos.”
Menino sírio aprende grego com o seu bloco de notas. Foto: Sofia Lobo
Preocupada, a actriz alerta para o facto, “destas pessoas estarem aqui, à nossa porta e necessitarem de segurança, comida, educação, um tecto, um emprego.”
Tímida assumida, uma característica muito comum nos actores, quer, contudo partilhar esta sua experiência e despertar os portugueses para uma realidade que um dia pode ser “de cada um de nós”.
“Negar-lhes estes direitos fundamentais é incitá-los à tal violência de que temos medo. Perseguidos nos seus países, rejeitados nos nossos, que mais podemos esperar do que a sua revolta? Aceitá-los, protegê-los, estimulá-los, deixá-los participar na construção de um mundo que desejamos de paz é, não tenho qualquer dúvida, a única via”, reforça.
Perguntamos o que mudou na sua vida de então para cá. “Eu tenho mau feitio” diz a rir, mas “agora sinto-me mais tolerante e afectuosa. Recebi muito mais do que dei e se pudesse teria ficado mais tempo”.
Sofia Lobo no campo de refugiados de Skaramangas
Skaramangas é um dos 35 campos de refugiados existentes na Grécia. Perto de três mil migrantes encontraram abrigo numa base da marinha helénica, um número que vai variando consoante o encerramento de acampamentos provisórios.
Os militares distribuem alimentos e água três vezes por dia e a Cruz Vermelha grega mantém em funcionamento um posto clínico, além de também dispensar bens alimentares e produtos higiénicos. Outras organizações não-governamentais estão no terreno e, com os seus voluntários, asseguram actividades diversas, sobretudo para as crianças e mulheres que sabem quando chegaram, mas não quando vão partir.