20 jan, 2017 - 08:00 • Ricardo Vieira
Abigail Santana, 26 anos, é do Alabama, um estado rural que compara, de certa forma, ao Alentejo. “Tecnicamente republicana”, foi o amor que a trouxe a Lisboa. Casada com um português, é atleta de triatlo e criou a Ela Pedala, uma marca de equipamentos para elas.
Ashi Damvar, 29 anos, trocou o Texas por Lisboa e posiciona-se à esquerda do Partido Democrata, de Barack Obama e Hillary Clinton. É uma norte-americana com raízes iranianas e com mundo. Professora e tradutora, já viveu em Espanha, na Turquia e agora Portugal, onde está a tirar um mestrado.
Populista ou pragmático? Para Ashi, o Presidente eleito dos Estados Unidos, que toma posse esta sexta-feira, não passa de alguém que gosta de “dar espectáculo” e será um “fantoche” na Casa Branca.
“Há pessoas que vão estar atrás dele a fazer o trabalho. Trump só vai ser o fantoche, a dizer coisas chocantes de vez em quando, a escrever coisas ridículas no Twitter, a atrair multidões, mas, em termos das políticas concretas, quem faz os discursos dele é que tem o poder”, diz a texana de Austin, que abriu as portas da sua casa em Lisboa para falar sobre a nova era na América.
Sentada à sua frente num fim de tarde de Inverno, a amiga conservadora Abigail concorda. Não gosta do lado “sensacionalismo” de Trump e espera que o homem das mil e uma polémicas, que ameaça países e empresas pelas redes sociais, consiga vestir o fato de estadista.
“Trump deve apagar a conta do Twitter, se calhar, arranjar outro cabeleireiro. Agora a sério: acho que ele tem de aprender a pensar antes de falar, porque todas as coisas que ele diz têm impacto. Qualquer comentário pode começar uma coisa horrível. O resto do mundo vai dar um bocado de desconto porque sabe que ele não é deste sistema, vem de outra área, mas só até um ponto”, afirma Abigail, que se absteve nas eleições de Novembro passado devido a problemas burocráticos e porque não confiava em nenhum candidato.
Para a triatleta habituada a desafios, “Trump não pode dizer coisas sensacionalista sempre, tem que ficar mais sério, aceitar a responsabilidade e encarar o cargo com seriedade. Este é o trabalho mais difícil do mundo, não pode ser tratado como um jogo que ele ganhou”.
Ashi está politicamente longe de Abigail, mas reforça a ideia. Defende que a primeira prioridade de Donald Trump é deixar de ser um “animador”, que diz “coisas chocantes, e transformar-se num “Presidente a sério”, focado nas políticas necessárias a “fazer as coisas acontecer”.
“Ninguém devia gostar desta amizade de Trump com Putin”
O novo Presidente quer enterrar o machado da “guerra fria” com a Rússia e, se possível, cultivar uma boa relação com Vladimir Putin, acusado pelas secretas americanas de tentar influenciar as eleições nos EUA através de ataques informáticos.
“Não gosto desta amizade que o Trump tem com o Putin e ninguém devia gostar”, afirma a republicana Abigail Santana.
Ashi Damvar destaca que uma eventual aproximação de Washington a Moscovo pode ajudar a resolver o problema da guerra e da crise humanitária na Síria, que se arrasta há cinco anos e já provocou milhares de vítimas e refugiados.
“A dada altura na Síria podia ter sido pior se tivesses ido contra os russos e a boa relação que ele tem com Putin pode ser uma coisa boa, porque pode acabar com mais conflitos na região, ajudar a aproximar os dois lados para resolver algumas coisas, mesmo que não seja uma boa parceria por causa do que eles têm feito e dos seus interesses, mas, pelo menos, pode ajudar a evitar mais guerra”, defende a professora.
Mas simultaneamente, prevê Ashi, com Trump aos comandos os Estados Unidos vão relacionar-se de forma drasticamente diferente com o resto do mundo – criticou a ONU e desvalorizou a NATO – e vão deixar de ser, definitivamente, a maior potência mundial.
“Os EUA têm ocupado a liderança há bastante tempo e têm muito poder, mas com um palhaço como Chefe de Estado, alguém que se sente bem a agir desta maneira, acho que muitos países vão tratá-lo como uma criança.”
“Classe média ficou ferida com o Obamacare”
Trump anunciou que uma das suas primeiras medidas como Presidente vai ser “rasgar” o “Obamacare”, que deu acesso à saúde a cerca de 20 milhões de americanos pobres, e criar um novo sistema “muito melhor”.
Ashi tem “sentimentos contraditórios em relação ao ‘Obamacare’”, devido ao aumento dos encargos para a classe média. Conta que quando estava desempregada “tinha que pagar um valor elevado”, cerca de 150 euros por mês.
“Acho que o ‘Obamacare’ não está a resolver a situação de muitas pessoas. Foi bom para pessoas que não conseguiam ter seguro de saúde nos seus empregos. Isso foi bom. Mas depois há uma parte da classe média que ficou ferida, sem opções. É um bocado desequilibrado.”
Filha de um cirurgião que “aprecia” o “Obamacare”, Abigail considera que o actual plano de saúde “é impossível de pagar para a classe média”. E dá um exemplo próximo: “No actual sistema, a minha mãe e o meu padrasto têm que pagar 1.500 euros por mês para seguros, duas pessoas, sem mais ninguém. As empresas de seguros privadas estão a aproveitar o ‘Obamacare’ para enganar as pessoas e para aumentar os preços”.
“EUA não são uma democracia, mas uma oligarquia”
No seu discurso de despedida, em Chicago, Barack Obama falou na necessidade de cuidar e defender a democracia e prometeu estar vigilante.
Ashi considera que são meras “palavras para encher o discurso”, porque “os Estados Unidos não são uma democracia, são uma oligarquia”, e dá o exemplo do sistema de voto.
Abigail considera que os alertas de Obama são direccionados para os americanos que, por acção ou falta dela, ajudaram “criaram o monstro” Trump.
“Não foi feito só por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Foi feito pelos média, pelos média sociais, pelas pessoas que achavam que a Hillary era uma candidata imbatível, pelos republicanos que não disseram não, que não foram contra o Trump em situações em que podiam”.
A mulher do Alabama concorda que os EUA são uma oligarquia. Para haver uma democracia a sério é preciso “criar um ambiente para deixar participar mais pessoas”.
“Da minha universidade de Georgetown, em Washington, vão muitas pessoas para o poder, muitas pessoas que estão a trabalhar com os políticos, mas sei bem que não são as pessoas do meu estado. Se nos sentíssemos mais representados, isto se calhar não acontecia”, sublinha.
Travões a Trump
Apesar das críticas ao sistema, as duas amigas americanas acreditam que os eventuais excessos de Donald Trump pode ser travados através do Congresso e da vigilância dos norte-americanos.
“Espero que os congressistas continuem a pensar no melhor para as pessoas que eles estão a representar, apesar do partido a que pertencem. Ainda há muitos congressistas que estão contra o Trump e não vão beijar os pés do Trump só porque ele é Presidente”, acredita Abigail.
Ashi vê uma “luz ao fundo do túnel”. A dura corrida eleitoral que culminou com a eleição de Trump mobilizou muitos americanos que não queriam saber de política.
O novo Presidente não vai ter margem de manobra nem estado de graça e “tem que responder ao povo”, que vai estar vigilante.
“Obama e outros presidentes, talvez, pudessem fazer coisas fora do escrutínio público, porque as pessoas estavam mais apáticas. Talvez não gostassem do Presidente, mas pensavam: ‘Ele ganhou e não posso controlar isto’. Mas agora as pessoas dizem: ‘Nós podemos fazer alguma coisa e temos que fazer alguma coisa, porque esta é a última oportunidade da política, porque é demasiado maluco e temos que fazer alguma coisa’. É o lado positivo. Gosto do que vejo na maioria das pessoas”, conclui Ashi Damvar, uma americana em Lisboa.