02 mai, 2017 - 19:27 • Sérgio Costa
No dia em que no Centro Cultural de Belém (CCB) tem início o ciclo de conferências sobre a Convenção de Filadélfia de 1787 e a Constituição Federal Norte-Americana, a Renascença falou com Viriato Soromenho-Marques sobre a importância do documento.
O principal orador do ciclo de conferências do CCB lembra que o documento está na génese do Estado de Direito e poderá ser um modelo inspirador para a reforma da União Europeia onde há um “republicanismo imperfeito”.
O ciclo de conferências sobre a Convenção de Filadélfia tem início esta terça-feira às 18h00.
Qual é a importância actual da Constituição Federal Norte Americana?
É um documento extraordinariamente importante a vários títulos. Foi a primeira constituição moderna – antecedeu a constituição francesa alguns anos. É, digamos, o “software” político.
Os princípios que animam a constituição são hoje perfeitamente universais: o princípio da soberania popular, o princípio de que todo o poder deve ser representativo e baseado em eleições, a separação de poderes, a importância do poder judicial – a constituição federal americana é a primeira constituição do mundo que introduz um conceito de tribunal constitucional – e, sobretudo, a noção de Estado de Direito (a lei fundamental de um país não deve ser apenas feita para dar poder às maiorias, mas sobretudo para defender os direitos das minorias e os direitos individuais).
Diria que há um complemento para nós europeus particularmente importante porque esta constituição é republicana, baseada na separação de poderes, mas também é federal. Ou seja: na constituição americana, temos o núcleo funcional mais completo e, ao mesmo tempo, mais eficiente, na medida em que tem resistido à prova do tempo, para criar um sistema de governo democrático baseado não apenas numa união de cidadãos, mas também numa união de estados.
Num momento de divisões na Europa e em que se fala na necessidade de reformular o projecto europeu, quer dizer que a constituição federal americana seria um bom ponto de partida para esse debate?
Seria um excelente ponto de partida, não no sentido de uma imitação total, mas sobretudo no conjunto de princípios que são universais. Só poderemos ter um bom governo representativo se efectivamente ele reflectir uma discussão, um debate democrático profundo e fundamentado que envolva todos os cidadãos. A ideia de que a cidadania numa união de estados – como é o caso dos Estados Unidos e da União Europeia – implica que o cidadão seja capaz de desempenhar vários papéis consoante os níveis de governo em que nos encontramos. Nesse aspecto, na União Europeia, temos uma grande deficiência: só somos verdadeiramente cidadãos ao nível dos governos nacionais e, nesta altura, os governos nacionais, devido a um conjunto de tratado internacionais, têm uma capacidade de produzir resultados políticos muito escassa.
Em contrapartida, no plano da União Europeia – onde, neste momento, se encontra uma chave muito importante do poder e da vida de todos nós – não temos efectivamente capacidades democráticas, exceptuando as escassas capacidades que temos ao nível da eleição dos deputados do parlamento europeu. Temos aqui uma assimetria, uma democracia incompleta, um republicanismo imperfeito na Europa que beneficiaria se fôssemos capazes de olhar com olhos críticos e olhos de aprender também para a experiência norte-americana.
Mas os Estados Unidos eram um país em formação. A Europa está dividida, persistem diferenças. Como é possível ultrapassar estas diferenças?
As diferenças existem e existiam nos Estados Unidos também. Temos uma noção de homogeneidade que não corresponde à verdade. Se há alguma coisa que aprendemos com o senhor Trump, neste momento, é a verificar as contradições e as diferenças que ainda hoje existem nos Estados Unidos. Estamos a falar de estados que têm tradições, uma cultura própria e um grande orgulho, como nós também temos em sermos portugueses ou alemães ou italianos.
A resposta é aquela que fazemos quando temos dificuldades pela frente como indivíduos: quais são os problemas que temos? Quais são as tarefas que nós, europeus, temos que enfrentar?
E, se analisarmos as dificuldades que temos (desde a garantia da paz e da estabilidade económica, o emprego para os jovens, o combate contra as ameaças ambientais e climáticas, a necessidade de combater a crise do sistema financeiro, a necessidade de regular o capitalismo selvagem), chegaremos à mesma conclusão que os norte-americanos chegaram quando criaram a sua constituição federal. Quer os problemas que os europeus têm hoje, quer os problemas que os norte-americanos tinham na altura no final do século XVIII, quando estavam a sair de uma luta contra o Império Britânico, é que só em conjunto é que nós poderemos ter alguma possibilidade de ter sucesso.
Nenhum país da Europa solitariamente o pode fazer. Nem a Alemanha pode enfrentar estas dificuldades todas sozinha. Como é que vamos fazer esta luta conjunta? Vamos fazer numa situação em que há uns países que dominam outros ou vamos fazer isto de uma forma republicana, ou seja, baseada no princípio de igualdade de direitos fundamentais e de uma responsabilidade também idêntica para todos os cidadãos e para todos os estados.
Este é também um momento em que assistimos à ascensão de Trump, a subidas de popularidade de Marine Le Pen e de outros movimentos nacionalistas. A perda desses valores que vêm da Constituição Federal dos Estados Unidos não é culpa também dos próprios líderes e agentes políticos?
A história humana tem forças muito poderosas e é oscilatória. Estamos a viver um momento muito difícil de desagregação e desvalorização de princípios que considerávamos fundamentais. Há, de facto, uma entropia, uma desorganização muito grande. É precisamente nestes momentos que, sem deixarmos cair os braços e sem termos uma atitude fatalista perante a História (porque a História está ainda por escrever), devemos ir ao baú dos nossos princípios, das nossas tradições, dos utensílios e das conquistas do ponto de vista político e constitucional. Para inverter o ciclo. Este ciclo de desagregação não vai durar sempre e quanto mais cedo conseguirmos invertê-lo melhor. Eu diria que, apesar de tudo, há alguns sinais de esperança, mesmo nesta situação em que os aspectos negativos parecem prevalecer sobre os positivos.
Recordaria que, depois da eleição de Trump, já tivemos uma derrota de um candidato presidencial na Áustria, apesar de as sondagens indicarem que ele iria ganhar, tivemos a derrota da extrema-direita na Holanda, vamos ter, estou seguríssimo, a derrota de Marine Le Pen em França.
No entanto, não precisamos apenas de derrotar os adversários da democracia representativa. Temos de agir proactivamente. É isso que só poderá ser feito se tivermos uma visão estratégica e uma base constitucional. Se formos capazes de perceber que as grandes conquistas e as grandes causas só conseguem ser vencidas se formos capazes de ir àquilo que é o coração de uma democracia representativa: a sua constituição.
O estudo da Constituição Federal norte-americana é um auxílio muito precioso para que um dia os europeus possam ter a coragem de olhar para si próprios e de, em vez de tratados intergovernamentais como temos hoje, construirmos uma verdadeira constituição dos Estados Unidos da Europa.