31 mai, 2017 - 06:53 • Catarina Santos
A história dela congelou uma plateia de adolescentes, nas Conferências do Estoril. Não há conversa paralela que se possa manter perante uma rapariga que conta, em lágrimas, como conseguiu fugir e sobreviver ao Estado Islâmico, depois de ter visto o pai e um irmão serem mortos, depois de ter sido vendida como gado, depois de ter sido abusada vezes sem conta, depois de se ter tentado suicidar, depois de suportar os olhares envergonhados da comunidade quando finalmente fugiu - porque uma yazidi violada é uma desonra para a família.
Fareeda Khalaf (nome fictício) tinha 19 anos quando viu a sua aldeia, Kocho, no norte do Iraque, ser atacada. Desfizeram-lhe os sonhos de um dia ensinar matemática na mesma escola onde estudava. Aquele espaço de ambição transformou-se, ao invés, num lugar de horror. Fareeda quer lá voltar um dia, mas não sozinha. Quer levar com ela os olhos do mundo para que ninguém esqueça o que aconteceu e para que não tenham receio de lhe chamar genocídio.
Em entrevista à Renascença, conta que se sente segura na Alemanha, onde vive agora com a família que sobreviveu, mas diz que nunca poderá seguir uma vida normal enquanto houver uma só mulher yazidi em cativeiro. Por isso se sujeita a reviver tudo o que passou, de cada vez que conta de novo a sua história. Está tudo reunido no livro "A rapariga que derrotou o Estado Islâmico", da jornalista alemã Andrea C. Hoffmann.
Já contou a sua história várias vezes. Na apresentação que fez nas Conferências do Estoril, ficámos com a sensação de que é sempre como se fosse a primeira vez. É isso que sente?
Não é fácil contar a minha história uma e outra vez, mas estou a tentar. De cada vez que o faço, não me limito a imaginar, eu revivo mesmo aqueles momentos. É como se ainda estivesse em cativeiro. E penso nas outras mulheres e raparigas que ainda lá estão. Sei que estão a sofrer o mesmo ou ainda pior do que o que eu sofri. É difícil para mim, porque sei exactamente o que estão a sentir.
E porque se força a continuar a passar por isto?
Não é fácil, mas tenho de o fazer. Quando conto a minha história, a comunidade internacional fica a saber quão grande é este problema, fica a saber como a minha comunidade e outras minorias sofrem. Tento encontrar ajuda para as que ainda estão em cativeiro, a sofrer. Penso nelas, não em mim.
Conseguiu emocionar toda a plateia aqui - e é algo que acontece frequentemente por onde passa. Esperava também mais empatia - e mais acção - da comunidade internacional em relação aos yazidis?
Houve alguns países, a começar pela Alemanha, que fizeram alguma coisa. Acolheram mais de mil mulheres e raparigas yazidis. Alguns países já reconheceram o que aconteceu aos yazidis como genocídio, mas espero que mais países por todo o mundo o façam também.
Como é a sua vida na Alemanha, agora?
Posso dizer que estou bem na Alemanha. A minha vida nunca será como antes do ataque à minha aldeia. Só quando não houver uma só pessoa da minha comunidade em cativeiro e quando vir a comunidade internacional reconhecer que aconteceu um genocídio é que poderei dizer que tenho uma vida normal. Os alemães são muito bons, agradeço ao povo e ao governo. Sinto-me segura e estão a ajudar-me, mas a minha vida ainda não é normal.
A sua aldeia foi atacada pelo Estado Islâmico há três anos. Faz um esforço para substituir aquelas memórias horríveis por outras imagens? Ou faz questão de não esquecer?
Não sei como esquecer. Não é fácil esquecer aquele lugar e todos os sítios da minha aldeia. A escola onde estudei e onde sonhei continuar a minha educação… Foi lá que me separaram da minha família. Nesse e noutros locais há muitas valas comuns. O meu pai, o meu irmão e muitos outros foram mortos ali. Como posso esquecer? Quero voltar lá, mas não só para ver: quero o apoio da comunidade internacional para poder provar o que aconteceu. Quero voltar, mas não sozinha. Não me quero sentir sozinha outra vez.
Quando olha em frente, como se imagina no futuro?
Quando penso no meu futuro, nunca é só o meu. O meu futuro está ligado ao futuro dos yazidis. Mas continuo a dizer que sou forte e continuarei a ser forte no futuro. Nunca desistirei, vou continuar a tentar, mas não sei se o conseguirei fazer se não tiver apoio.