26 jun, 2017 - 17:42 • Filipe d'Avillez
E depois de Mossul?
Em 2014, o mundo acordou para a ameaça que era o Estado Islâmico com a estrondosa queda de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque. Os militantes jihadistas – cuja crueldade fazia a Al-Qaeda parecer moderada – tomaram a cidade no espaço de quatro dias, executando a sangue frio milhares de soldados em fuga e inaugurando um regime de terror que se espalharia aos territórios circundantes.
Para as minorias religiosas no Iraque esta era a pior notícia possível. Depois de mais de uma década de perseguição crescente em quase todo o país, muitos cristãos tinham regressado às suas terras ancestrais, na planície de Nínive. Receberam três escolhas: converterem-se ao Islão, pagar um imposto incomportável ou fugir. Alguns foram mortos logo, os restantes fugiram e, na maioria, não pararam até chegar a Erbil, capital do Curdistão.
Em breve juntaram-se os yazidis, vistos como adoradores de Satanás pelos jihadistas. A esses não foi dada escolha nenhuma. Os homens capturados foram todos mortos, as mulheres levadas para serem vendidas como escravas sexuais.
Com o exército iraquiano despedaçado, restavam os peshmerga – aqueles que enfrentam a morte, em curdo – soldados curdos, homens e mulheres, que durante meses foram os únicos a fazer frente aos terroristas, impedindo o seu avanço.
Quase três anos mais tarde tudo mudou. Mossul está prestes a ser libertada por uma coligação composta pelo Exército iraquiano, peshmergas e milícias xiitas e cristãs, e isso é visto como um golpe de morte ao Estado Islâmico e às suas pretensões de estabelecer um califado.
Depois de Mossul
Mas o que virá depois da libertação de Mossul? Com todos os olhos postos na luta pela cidade, poucos falam do conflito que muito possivelmente atingirá a região, opondo árabes a curdos, com cristãos e yazidis apanhados exactamente no meio.
Em causa estão as pretensões independentistas dos curdos iraquianos e as chamadas “áreas disputadas” entre Bagdad e Erbil, precisamente as áreas onde vivem as minorias religiosas.
“A independência é o sonho de todos os curdos. Enquanto parte do Iraque nunca conseguimos ter os nossos direitos. Atrocidades, massacres, genocídios, armas químicas, tudo tem sido feito contra os curdos por sucessivos regimes iraquianos. Tentámos fazer parte da federação democrática, mas nunca conseguimos os nossos direitos básicos. Para evitar mais sangue, é necessária outra posição”, explica Mohammedali Taha, deputado no Parlamento do Curdistão iraquiano pelo partido KDP, que domina a política curda.
Questionado directamente sobre a possibilidade de um conflito com Bagdad depois da libertação de Mossul, o jovem político responde prontamente: “Espero que não aconteça, mas é muito provável”.
“De acordo com a Constituição do Iraque devíamos ter tido um referendo nas áreas disputadas até Dezembro de 2007. Nunca aconteceu, porque Bagdad não permitiu. Por nós, gostaríamos que fossem as pessoas que vivem nessas áreas a decidir o seu próprio destino.”
Os curdos continuam a promover um referendo, dizem, mas ao mesmo tempo Mohammedali afirma que na prática já não existem áreas disputadas, um dos efeitos da luta contra o Estado Islâmico. “Tínhamos um problema com o Iraque por causa das áreas disputadas, mas agora, depois do Estado Islâmico, não temos, porque controlámos todas essas áreas entre o Curdistão e o Iraque”.
Que pensa Bagdad? “Claro que Bagdad discorda, sempre, mas isso não afecta a realidade.”
Taha não é a única pessoa na zona a pensar que já não existem áreas disputadas. Metin Rhawi identifica-se como siríaco, um dos três nomes pelos quais são conhecidos os cristãos que vivem na planície de Nínive e áreas circundantes. Outros identificam-se como caldeus ou como assírios, embora todos reconheçam que se trata de um só povo, dividido em diferentes igrejas e tendências políticas.
“A Planície de Nínive não é uma área disputada, por mais que Bagdad e Erbil tentem dizer o contrário. Esta é a terra dos nossos antepassados há milhares de anos. A cidade de Bartella, por exemplo, já era habitada por siríacos cinco mil anos antes de Cristo. Como é que pode ser uma área disputada?”, diz o líder actual da União Siríaca Europeia, que vive na Suécia mas viaja frequentemente para o Iraque.
A preocupação é partilhada por Mirza Dinnayi, um activista yazidi. O que se passa com o seu povo é paradigmático das divisões que existem no país. Em 2014 o Estado Islâmico encurralou dezenas de milhares de yazidis no Monte Sinjar, considerado sagrado por esta religião. Quem os libertou foram soldados curdos, mas da Síria, que depois se mantiveram no local e recrutaram yazidis para as suas fileiras. Entretanto essas milícias curdas da Síria entraram na órbita do PKK, o principal movimento curdo da Turquia, que se opõe ao Governo do Curdistão iraquiano.
“O problema é que nestas áreas disputadas temos dois tipos de conflito. Um é entre o Curdistão e o Governo central, sobre a futura administração. O segundo é um conflito entre curdos, com influências da Turquia e do Irão. Há forças curdas que são apoiadas pela Turquia e outras são apoiadas pelo Irão e estão a lutar umas contra as outras. Isto é mais perigoso que o conflito entre o Iraque e o Curdistão”, explica.
“O KDP diz que Sinjar lhes pertence e que as milícias que não lhes são submissas não são legais, por isso devem partir. Mas estas pessoas são de Sinjar, não são de fora.”
Várias divisões
Não é possível falar dos yazidis e dos cristãos como entidades monolíticas. Só os cristãos dividem-se entre mais de uma dúzia de partidos políticos (alguns mais próximos de Erbil e outros mais próximos de Bagdad), cinco dos quais têm as suas próprias milícias. Mas há algum consenso em ambas as comunidades no sentido de se criar um território autónomo, mas não necessariamente independente, onde as minorias se possam governar a si mesmas. Idealmente, isto aconteceria no contexto de um Iraque federal, mas todos sabem que há um perigo real de serem apanhados no meio de um conflito e querem evitar ao máximo ter de tomar partido.
“Compreendemos que há um desejo por independência por parte dos curdos, mas a única maneira de declarar independência seria de forma pacífica, porque uma guerra danificaria a nossa comunidade”, diz Mirza Dinnayi.
“Naturalmente devíamos estar mais próximos de Bagdad, mas com excelentes relações com Erbil”, diz Metin Rhawi. “É evidente que o nosso povo precisa do apoio de ambos os lados. Mesmo se o Curdistão declarar independência, para nós o importante é ter boas relações com ambos. A ter de optar, não sei que parte é que o povo escolheria, porque tivemos más experiências com ambos os lados”, recorda.
Mohammedali Taha diz que compreende o desejo de autonomia das minorias locais, mas aponta para o passado recente. “Todas essas comunidades, os turcómanos, os assírios, os árabes, os arménios, os curdos… Se alguma coisa lhes acontece, procuram refúgio no Curdistão”, diz, dando a entender que o único futuro em segurança é sob protecção dos curdos.
Será possível travar um eventual conflito? A situação no terreno no Médio Oriente é frequentemente imprevisível, mas neste caso há duas potências que têm todo o interesse em que a paz se mantenha. Os Estados Unidos têm apoiado o Curdistão, apontando o território como um exemplo de que é possível criar um Estado funcional na região, mas não querem que o projecto de um Iraque democrático seja dado como morto.
Por outro lado, há a vizinha Turquia, que tem excelentes relações com o Curdistão Iraquiano, o que ao mesmo tempo ajuda a explicar as más relações entre os curdos do Iraque e o PKK. “Se chegar a esse ponto a Turquia teria um grande problema a resolver, porque por um lado tem boas relações com a região do Curdistão, mas por outro quer preservar as relações com Bagdad, que têm oscilado também e que hoje em dia não são muito boas”, explica André Barrinha, professor de Relações Internacionais na Universidade de Canterbury e especialista na Turquia. “Ancara vai querer evitar que se chegue a essa situação. Também os EUA vão querer, mas isso seria um cenário de pesadelo para a Turquia.”
"Bons sinais" e "riscos"
Se turcos e americanos unirem esforços poderá evitar-se um conflito, mas fica por resolver a situação das minorias. Uma região autónoma parece politicamente viável e tem aliados, tanto nos Estados Unidos como na Europa. O eurodeputado Lars Adaktason, da Suécia, tem assumido esta causa como sua. “Tenho falado com as comunidades interessadas, os yazidis e os cristãos, e penso que é verdadeiramente necessário apoiar esta solução porque se queremos que estas pessoas possam voltar um dia às suas terras ancestrais temos de os ajudar com as questões de segurança e a serem autónomos”.
O eurodeputado acredita que será possível conseguir o apoio dos Estados Unidos, desde que a Constituição iraquiana seja respeitada, mas reconhece que existe um perigo de conflito. “Claro que existem tensões e se não tivermos uma estratégia e um plano claro para o que acontece depois de Mossul, existe um grande risco de conflito. Mas estou convencido, com base nas minhas conversas com as diferentes partes, que pelo menos os cristãos, os yazidis e os turcómanos estão dispostos a colaborar e dialogar sobre o seu futuro. Diria que há bons sinais, mas também há riscos.”
E há também dificuldades financeiras. “Toda a gente, desde as Nações Unidas a diferentes estados ocidentais, nos diz que temos razão, que precisamos de uma zona autónoma, mas toda a gente nos pergunta quem é que irá financiá-la. É este o problema que temos agora. Temos alguma solidariedade dos países ocidentais, mas até agora ninguém está disposto a fazer um projecto. Penso que a responsabilidade cabe à comunidade internacional por inteiro”, considera Mirza Dinnayi.
Metin Rhawi, representante dos cristãos, sonha com um acordo entre todos. “O que gostaríamos era de ver o Curdistão dizer ‘tudo bem, se é isto que os assírios querem, esta não é uma área disputada, é vossa, fiquem com ela, podemos ajudar-vos, do que é que precisam?’ E o mesmo de Bagdad. Aí penso que o Parlamento Europeu, os EUA e até os russos compreenderiam que está bem, é uma boa solução e também podem apoiar e ajudar”.
Actualmente curdos, árabes sunitas e xiitas e milícias cristãs e de outras minorias estão unidos no combate ao inimigo comum que é o Estado Islâmico, mas as forças xiitas, apoiadas por Bagdad e pelo Irão já disseram que estão dispostos a permanecer na região para defender terras árabes das pretensões turcas, nomeadamente na zona de Kirkuk. O tempo dirá se, ganha a batalha de Mossul, as munições, as armas e o entusiasmo dos militares no terreno serão controláveis ou se encontrarão outra causa pela qual verter sangue.