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Cooperação portuguesa pôs os surdos de São Tomé a falar

19 fev, 2018 - 23:28 • Eunice Lourenço

O Presidente da República começa esta terça-feira uma visita de Estado a São Tomé e Príncipe, um país que serviu de alerta e de exemplo para o problema da surdez na África subsariana.

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Na Fundação para o Desenvolvimento, no bairro Bom-Bom da capital de São Tomé, não há luz elétrica. É só uma das dificuldades que aguçam o engenho de quem tenta ajudar os surdos são-tomenses a falar e a saírem da marginalização a que eram votados.

A vida para os surdos são-tomenses começou a mudar em 2010, quando começaram as consultas de otorrinolaringologia no âmbito do programa de cooperação Saúde para Todos.

“No âmbito da missão de otorrino, a equipa do professor João Paço verificou que três por cento da população tem défice auditivo. Ficou surpreendido porque a taxa normal é de três por mil. Daí, tentou-se descobrir a causa”, conta Ahmed Zaky, administrador executivo do Instituto Marquês de Vale Flor, uma instituição que participa em quase tudo o que são programa de cooperação neste país que, por estes dias, é visitado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

A causa era a alta incidência de rubéola nas mulheres grávidas, como descobriu a médica Cristina Caroça, no âmbito do seu trabalho de doutoramento. A vacinação obrigatória começou no fim do ano passado. E São Tomé acabou por servir de alerta e de exemplo para a Organização Mundial de Saúde.

“Praticamente todos os países da África subsariana, exceto a África do Sul, não têm vacina obrigatória contra a rubéola. O que acontece aqui em SãoTomé acontece noutros países de África e foi um alerta para a OMS”, diz Ahmed Zaky, orgulhoso do trabalho feito.

Entretanto, em 2013 começou um outro programa, que também envolveu o IMFV, assim como outras instituições – o programa Sem Barreiras – que veio dar capacidades de comunicação aos surdos são-tomenses, criando uma linguagem gestual própria, que já tem dicionário.

“Antes do dicionário, teve de haver uma emergência da língua. Trouxemos uma formadora – a Patrícia Carmo, que é surda – e ela através de materiais e imagens reuniu os surdos todos e começou a criar os gestos”, conta Ana Mineiro, professora da Universidade Católica Portuguesa.

“Ao fim de um tempo, esta língua já existe, eles já falam correntemente e já nem eu reconheço alguns dos gestos. A língua evoluiu e isso deve-se muito ao trabalho da Fundação para o Desenvolvimento, que tem insistido muito nesta aprendizagem, com poucos meios e com poucos recursos”, prossegue a professora que tem esperança que o programa “Sem Barreiras”, que terminou em 2015, tenha continuação, até para que seja feita uma edição revista e aumentada do dicionário de língua gestual são-tomense.

A Fundação para o Desenvolvimento é o parceiro são-tomense desta tarefa de aprendizagem e integração. A coordenar o trabalho está Avelino do Espírito Santo, que conta como era a vida de qualquer criança surda, antes de 2010. “Normalmente era relegada aos quatro cantos da casa ou nos quintais a fazer aqueles serviços menores. A grande maioria era considerada pessoas que não têm capacidade, não têm potencialidades, que não podem fazer nada”, conta Avelino. “Em África, as crianças que não são produtivas são geralmente excluídas”, já tinha dito Ahmed Zaky.

Por isso, nestes cinco anos houve um grande esforço de integração. “Com o nosso trabalho, a divulgação que temos feito… Temos feito uma série de atividades: não só a leitura escrita, mas também feito trabalhos com teatro, participação desportiva, outras atividades culturais, intercâmbio com outras escolas para mostrar aos alunos de outras escolas o que os nossos alunos podem fazer e isso tem alargado muito o leque de compreensão do que é a surdez”, avalia Avelino do Espírito Santo.

Um surdo a ensinar a falar

Na Fundação para o Desenvolvimento estão inscritos 70 alunos, sobretudo adolescentes e jovens, entre os 14 e os 30 anos. Mas também por lá passam crianças mais novas que deviam andar noutra escola, mas não têm como.

A ajudá-los está também um jovem português, que teve os mesmos problemas que eles, mas com recursos diferentes e uma “educação de qualidade” como ele próprio lhe chama consegue falar e ajudar outros a comunicar.

Sebastião Palha, um psicólogo de 26 anos, chegou a São Tomé há oito meses. “Vim para São Tomé para trabalhar com surdos. Vim por iniciativa própria, estou a trabalhar com professores e com jovens e adultos no sentido de promover a inclusão”, diz à Renascença, explicando que tenta sobretudo arranjar recursos e apoios para que aqueles jovens possam desenvolver competências e terem ferramentas para se integrarem na sociedade.

“O meu trabalho cá é passar o meu conhecimento, porque também já passei por isso e tive uma educação de qualidade e eles cá não têm nada disso. Então, vim para cá com esse objetivo: tentar que eles se possam tornar cidadãos ativos na sociedade”, continua Sebastião, que tenta perceber como melhorar a aprendizagem.

“Uma dificuldade é que aqui não há recursos visuais. E precisamos de recursos visuais porque eles aprendem muito através da visão e da imagem”, lamenta Sebastião numa sala com quadros de ardósia e imagens espalhadas pelas paredes. Em dia de visita de jornalistas e de membros da Presidência também lá está um computador portátil, mas é recurso raro porque não há eletricidade para o manter muito tempo a funcionar.

Sebastião também vai regularmente a Neves, uma localidade a cerca de 40 km da capital. “Há um grupo de surdos em Neves que nunca foram à escola, não sabem escrever o nome ou a idade, não sabem dizer onde é que vivem”, conta o jovem que tem alguma capacidade auditiva graças a um aparelho e que tem esperança que essa também seja a solução para um “miúdo sem família” que conheceu em Neves e que tem tentado ajudar num trabalho conjunto com a educação de infância.

No âmbito da visita de Estado que esta terça-feira o Presidente da República inicia a São Tomé e Príncipe, Marcelo tem um almoço com organizações não governamentais e um encontro com profissionais portugueses que trabalham em São Tomé na área da saúde e da educação.

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