05 abr, 2018 - 14:03 • João Carlos Malta (texto), Inês Rocha (vídeo)
“O Mecanismo” é uma série produzida em oito episódios pela Netflix, que tem como tema central a operação Lava Jato, com personagens inspiradas na realidade. Muitos dos nomes até são próximos dos reais e a caracterização de cada um não deixa dúvidas sobre quem são.
Lula da Silva e Dilma Rousseff são dois casos evidentes. Mas, no início de cada episódio, lê-se: “Esta é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”.
No entanto, a série, quer na construção narrativa quer nos personagens colados pela proximidade dos nomes escolhidos e pela caracterização, não permite esquecer a realidade. Não restam dúvidas de que Lula está lá, Dilma aparece, tal como a Petrobrás e a Petrobrasil, por exemplo. As reações não se fizeram esperar.
As críticas de deturpação e adulteração multiplicaram-se, sobretudo vindas de elementos ligados ao Partido Trabalhista (PT). Lula da Silva e o PT protestaram nas redes sociais pelo facto de a série ter atribuído ao personagem João Higino, que representa o ex-presidente, uma frase que na vida real foi dita pelo senador Romero Jucá (MDB-RR). A frase é famosa: Jucá fala em "estancar a sangria" das investigações de corrupção da operação Lava Jato.
Em entrevista por escrito ao Observatório do Cinema, o realizador José Padilha, também responsável por outra série de grande sucesso da Netflix “Narcos” (sobre os cartéis de droga da Colômbia) disse que a polémica em torno da frase "estancar a sangria" é idiota.
"(...) A repetição do uso de uma expressão idiomática comum, como 'estancar a sangria', não guarda qualquer significado. (O ex-senador) Delcídio (do Amaral) usou a expressão 'acordo'. Se Higino falar 'acordo' ele é o Delcídio? O fato de o Jucá ter usado a expressão 'estancar a sangria' não a interdita", disse ele.
Mas há outros exemplos em que a realidade e a ficção não se ligam. O “doleiro” (homem que no esquema de corrupção faz de intermediário para lavar dinheiro) Roberto Ibrahim é Alberto Youseff do processo Lava Jato.
Em “O Mecanismo”, ele aparece numa cena dentro do comité de campanha do "Partido Operário" - na vida real, o comité de Dilma Rousseff (PT).
"Você quer quanto? 500 mil reais resolve, para esta semana?", pergunta o personagem a um elemento do staff fictício. " 600 mil, meu amor. Para agora", responde ela.
Na vida real, esta cena jamais poderia ter acontecido, porque durante a campanha eleitoral de 2014, Alberto Youssef estava preso em Curitiba, no Paraná (ele foi detido na 1ª fase da Lava Jato, em 17 de março de 2014, e ficou detido até 17 de novembro de 2016.
As reações
A polémica saltou das redes sociais para a política e a ex-presidente Dilma Rousseff, que Lula lançou esta quinta-feira como candidata à presidência nas eleições de outubro, afirmou que a Netflix está a ser usada para fazer campanha.
“A Netflix não pode fazer campanha política. Vou falar para as lideranças políticas que eu encontrar. Acho importante que a gestão do Netflix perceba bem o que está fazendo. Não sei se sabe. A Netflix não está sabendo onde se meteu.”
Lula da Silva foi mais longe ainda e pôs a estação de televisão Globo ao barulho. “A TV Globo, embora seja o canal de maior audiência, não tem mais a mesma credibilidade. Agora eles fizeram um acordo com a Netflix, de contar uma mentira que a Globo não teve coragem de contar”, defendeu.
O realizador da série José Padilha já disse que apenas quis retratar o funcionamento do sistema de corrupção no Brasil, que passa por cima de siglas políticas e questões morais.
A dar força a este argumento temos o facto de vermos o adversário de Dilma nas eleições de 2014, Aécio Neves, do PSDB, a ser chamado de bandido e alcoólatra no sexto episódio de “O Mecanismo”.
“O fato de que o mecanismo não tenha uma ideologia é fundamental. Dá na mesma que sejam de esquerda ou direita, a corrupção apodrece todos os partidos. Em meu país, a Operação Lava Jato começou antes de que Lula e o Partido dos Trabalhadores chegassem ao poder... E continuou com ele! Por isso os intelectuais de esquerda não podem dar lições de moral. Não há discussões ideológicas na trama, porque os ideais foram superados pelo dinheiro sujo”, disse Padilha em entrevista.
É legitimo ficção retratar a realidade política próxima e adulterá-la?
Em Narcos, o realizador brasileiro também partiu da realidade do barão da droga Pablo Escobar para o ficionar. E se na altura houve críticas, elas não foram tão fortes como as que agora ecoam em “O Mecanismo”.
O critico de arte e consultor de Marcelo Rebelo de Sousa para a área da Cultura, Pedro Mexia, enquadra a polémica numa “espécie de guerra civil no Brasil que é cultural, mediática e também artística”.
Mexia argumenta que maioria dessa classe foi próxima durante muito tempo do PT e de Lula, “e de repente aparece uma série que tem outra orientação política”.
“Quando as coisas foram ao contrário e foi feito um filme biográfico sobre o Lula patrocinado pela Odebrecht [construtora envolvida na Operação Lava Jato] as pessoas que protestam agora, não protestavam. Faz parte do clima de guerra civil”, conclui.
O ex-secretário de Estado da Cultura e crítico da arte, Francisco José Viegas, enquadra a discussão afirmando que a série é inspirada numa reportagem jornalística e “num grande livro de investigação que é o Lava Jato do Vladimir Neto”.
“Essa investigação é pública e grande parte dos materiais de que se serve são públicos, contam do processo judicial. Isto é uma prática normal em outras séries e filmes baseados em factos reias e que foram dados como provados pelo sistema judicial brasileiro.” refere.
Para Viegas, Dilma não tem razão quando diz que “é um abuso total”, mas pensa que “há pormenores que fazem pensar nisso e acho-os muito criticáveis”.
“São abusos da própria realidade. São material que pode ser visto como propaganda anti-Lula”, argumenta.
Mexia defende que não há nenhum filme ou série com figuras históricas que resista ao escrutínio dos historiadores e dos especialistas.
“A partir do momento em que uma vida inteira é metida em 90 minutos como acontece nas biografias dos artistas, de políticos, há sempre escolhas, simplificações, truques cronológicos e outros e juntar duas pessoas numa”, refere.
“É sempre um produto ficcional que vai buscar alguma coisa à realidade. Pode-se é ser mais ou menos cauteloso na forma como se apresenta esse filme por razões diversas: deontológicas ou judiciais”, acrescenta.
Isto era possível em Portugal?
Poderia a ficção nacional fazer algo parecido com “O Mecanismo” em casos como a Operação Marquês que envolve o ex-primeiro ministro José Sócrates, ou o caso BES? Mexia diz que até era possível, mas improvável, e Viegas fala de falta de tradição por questões culturais.
O ex-secretário de Estado do governo de Passos Coelho pensa que Portugal por “atavismo e falta de coragem do audiovisual português” não está habituados a este tipo de série.
Mexia dá o exemplo do filme sobre o desastre Camarate que vitimou Sá Carneiro e a dificuldade de levar o projeto até ao fim.
“Não temos muita facilidade, porque nos conhecemos todos e somos o oposto do Brasil. Não somos conflituosos por natureza e somos eufemísticos e cautelosos”, rematou Pedro Mexia.